Seguindo a análise iniciada na primeira parte desse estudo, na publicação anterior, temos que o reflexo narcísico que Bentinho encontrou no olhar cruzado de Capitu foi na realidade um processo de magnetismo, preparatório para um momento especialmente narrado por Machado de Assim, pela riqueza de detalhes e pela sensibilidade na escolha das palavras: o primeiro beijo.
Nessa cena, Machado de Assis usa, creio que conscientemente, a metáfora do espelho. No capítulo intitulado “O Penteado” (ASSIS, 2006, p. 49-50), Bentinho oferece-se para pentear o cabelo de Capitu, e o faz num lento processo eivado de erotismo juvenil. Ao terminar e amarrar suas tranças com um “triste pedaço de fita enxovalhada”, que encerrava suas volúpias ao agraciar os cabelos dela, deu por encerrada a obra-prima e exclamou: “– Pronto! Estará bom? Veja no espelho.” Mas o espelho que Capitu utilizou não foi o pequeno objeto que tinha em seu quarto, mas o espelho dos olhos dele, para quem estava de costas e, ainda sentada, e ele de pé, ela inclinou sua cabeça para traz, ele temendo que se machucasse, amparou-lhe e, conforme nos narra o próprio protagonista: “[…] inclinei-me depois sobre ela rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma linha da boca do outro”. Nesse contexto, mesmo advertindo-a que estaria feia naquela posição, ela não retrocedeu e quando ela “abrochou os lábios” ele desceu os dele e aconteceu o primeiro beijo então apaixonado.
Esse episódio do primeiro beijo, como se passou, onde, tal qual num espelho, ele se viu nela, causou-lhe euforia pela afirmação de seu papel de “macho”, ao ver seu reflexo invertido nela e essa sensação patriarcal se ratificou quando ele retomou os sentidos, as vistas escuras ao poderem enxergar de logo viram Capitu de olhos ao chão, denotando recato, vergonha pelo beijo que aconteceu, postura louvável numa mulher ideal, que se adapte ao estereótipo aceito socialmente.
Ou seja, apesar de não impedir que o beijo acontecesse, Capitu não avançou em disparada de beijar-lhe, apenas deu-lhe todas as condições para que o fizesse, mas a narrativa deixa claro que o último passo dado no intuito de beijar, foi dado por Bentinho. E o recato de Capitu após o acontecido redime-a de qualquer mácula que lhe recaísse nesse processo erótico que viveram, do primeiro beijo.
Esse imaginário de fêmea passiva e sedenta para compensar sua incompletude fálica causou em Bentinho o sentimento de afirmação de sua masculinidade. Tanto é assim que o capítulo que sucede este é “Sou Homem”. Destaque-se nesse item a seguinte passagem: – Sou homem! Quando repeti isso pela terceira vez, pensei no seminário, mas como se pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue era da mesma opinião. (ASSIS, 2006, p. 50-52).
Nesse momento, tomou força a perfeita sintonia entre o casal. Bentinho afirmara seu papel de macho, dantes incerto para ele mesmo, pelo risco de se tornar padre, pela promessa feita por outra mulher, Dona Glória, sua mãe. Assim, enquanto uma mulher (sua mãe) condenara-lhe a não assumir sua suposta natureza instintiva de “ser homem”, surgira outra para lhe resgatar dessa zona de não existência (ser padre) e possibilitar-lhe o status de “ser homem”. E tanto foi assim que além de despertar-lhes os instintos sexuais que lhe fizeram sentir macho, foi Capitu quem idealizou a solução para que não cumprisse a condenação dada por sua mãe, de não ser homem, mas ser padre.
Por um plano de sua heroína amada, pôde sair do seminário e assumir socialmente seu papel de varão, ao lado dela. Mas, voltando ao episódio do primeiro beijo, onde Bentinho viu-se no espelho dos olhos de Capitu, o que lhe deu a ilusão de completude, que, como Lacan alertou, não existe na realidade, essa sensação só perduraria enquanto os reflexos retratassem apenas a perfeição dele, enquanto narciso.
Segue a parte final da análise na próxima publicação! Como está indo a leitura de Dom Casmurro enquanto isso?
A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.
Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.