Os contratos inteligentes, uma inovação disruptiva nas relações contratuais, merecem uma análise de suas bases teóricas, práticas e o contexto normativo brasileiro. A revolução digital tem transformado a forma de firmar e executar acordos, e os smart contracts representam um avanço significativo nesse processo. Este trabalho propõe uma análise, sob a ótica dos operadores do direito, sobre sua natureza técnica, conectando os princípios desses contratos com a legislação brasileira, incluindo o Código Civil, a Lei de Liberdade Econômica e a Medida Provisória nº 2.200-2/2001.
Essencialmente, um contrato inteligente não é um contrato tradicional, mas um programa de computador executado em uma rede blockchain. Ele contém regras predefinidas que se autoexecutam quando as condições são atendidas, eliminando a necessidade de intermediários como advogados ou cartórios. A tecnologia blockchain
automatiza o cumprimento dos termos do contrato, proporcionando segurança e transparência.
A analogia com a “máquina de refrigerantes” ilustra a lógica “se… então”. Por exemplo, em um contrato de aluguel, o pagamento ao proprietário só ocorre após a confirmação de que o inquilino recebeu as chaves, sem intervenção de terceiros. A principal vantagem dessa tecnologia é a automação e a imutabilidade dos contratos, prevenindo fraudes e eliminando burocracia, já que uma vez inserido na blockchain, o contrato não pode ser alterado.
Este estudo visa identificar os desafios da aplicação dos contratos inteligentes e avaliar sua validade jurídica à luz dos princípios contratuais tradicionais. A hipótese defendida é favorável ao reconhecimento jurídico dos smart contracts no Brasil, desde que respeitados os requisitos essenciais para a formação e execução de contratos.
A validade dos contratos inteligentes no Brasil, embora sem regulamentação específica, pode ser defendida com base no Código Civil, na Medida Provisória nº 2.2002/2001 e na Lei da Liberdade Econômica, que garantem a autenticidade e validade jurídica de documentos eletrônicos. A MP nº 2.200-2/2001, por exemplo, criou a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), que pode ser estendida aos smart contracts, mesmo em ambientes descentralizados.
A pesquisa será realizada com uma abordagem metodológica mista, combinando revisão bibliográfica e análise documental das normas pertinentes. A análise crítica buscará avaliar a compatibilidade entre a tecnologia blockchain, conforme as concepções de Szabo (1996) e Tapscott & Tapscott (2016), e a legislação brasileira relacionada à manifestação de vontade e execução das obrigações contratuais.
A tecnologia blockchain é a base dos contratos inteligentes, funcionando como um livro-razão descentralizado e imutável que registra transações com segurança e sem necessidade de uma autoridade central. Sua estrutura garante integridade por meio de criptografia e consenso da rede. Para Tapscott & Tapscott (2016), essa tecnologia representa uma mudança de paradigma, inaugurando a “internet do valor”, ao possibilitar a transferência segura de ativos.
Nick Szabo (1996) definiu os contratos inteligentes como protocolos que executam automaticamente cláusulas contratuais pré-programadas. No entanto, como destacam Cavalcanti e Nóbrega (2020), esses contratos não são “inteligentes” no sentido jurídico, mas algoritmos que automatizam obrigações.
No Brasil, entende-se que os contratos inteligentes não substituem os tradicionais, mas os complementam, automatizando cláusulas específicas para reduzir burocracia, aumentar eficiência e mitigar fraudes. Embora não regulamentados especificamente, esses contratos podem atender aos requisitos de validade do Código Civil — agente capaz, objeto lícito e forma legal — desde que corretamente codificados por profissionais qualificados.
Um desafio relevante é a possível divergência entre a linguagem jurídica e a lógica binária dos códigos. Engelmann, Cantali e Simões (2023) sugerem o uso de “termos de uso” e interfaces que alinhem a vontade das partes à execução automatizada. Além disso, a automação não deve comprometer princípios como a boa-fé objetiva e a função social do contrato, exigindo transparência e responsabilidade na programação das obrigações.
O ordenamento brasileiro já oferece instrumentos que apoiam essa tecnologia. A Lei nº 13.874/2019 estimula soluções digitais, e a MP nº 2.200-2/2001, ao instituir a ICPBrasil, fornece a estrutura necessária para garantir autenticidade jurídica a documentos eletrônicos.
A integração de dados externos via “oráculos” permite que contratos inteligentes interajam com o mundo real, mas também introduz riscos, como manipulação de dados. Ainda assim, a blockchain garante rastreabilidade e transparência, contribuindo para maior confiança nas relações digitais.
Portanto, embora existam desafios técnicos e jurídicos, os contratos inteligentes são compatíveis com o sistema legal brasileiro. Para sua adoção segura, é essencial alinhar os aspectos técnicos aos princípios jurídicos, com uso responsável de oráculos e respaldo da ICP-Brasil. Assim, a tecnologia blockchain se revela uma aliada promissora na evolução do direito contratual.
A validade jurídica dos contratos inteligentes no Brasil tem sido um tema de crescente relevância, e apesar da ausência de uma legislação específica, não há impedimentos para seu reconhecimento no ordenamento jurídico. A argumentação em favor da legalidade dos smart contracts se fundamenta em um conjunto de normas que, embora não os mencionem diretamente, oferecem um respaldo robusto para sua aplicação, especialmente no que diz respeito à autonomia da vontade das partes, à utilização de meios eletrônicos e à legalidade dos contratos digitais.
Um dos pontos centrais dessa discussão é a admissibilidade da tecnologia blockchain como meio de prova. De acordo com o art. 369 do Código de Processo Civil (CPC), são admitidos “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”. Como a blockchain é uma tecnologia que não envolve ilicitude e assegura a integridade dos dados, os registros gerados por meio dessa tecnologia podem ser considerados uma forma de prova atípica. Além disso, as partes têm a liberdade de ajustar previamente que a comprovação de um fato se dará por meio dos dados armazenados na blockchain, configurando um exemplo de negócio jurídico processual lícito (art. 190 do CPC).
Entretanto, a validade probatória dos dados armazenados em blockchain ainda enfrenta desafios práticos. O principal obstáculo é a falta de previsão legal explícita, o que significa que, atualmente, os dados registrados não possuem fé pública. Isso exige uma análise criteriosa por parte do Judiciário, especialmente no que diz respeito à confiança na tecnologia e à distribuição do ônus da prova. Considerando que a blockchain tem baixa probabilidade de adulteração, seria razoável que o ônus da prova recai sobre a parte que alegar adulteração dos dados. No entanto, já existem decisões que destacam a complexidade dessa questão. Um exemplo disso é o acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Apelação Cível nº XXXXX-06.2018.8.13.0704)[1], que, embora não tenha abordado diretamente um contrato inteligente, reconheceu que a tecnologia de blockchain pode ser aplicada a diversas formas de contratação, incluindo smart contracts. No entanto, o tribunal ressaltou que a imutabilidade da blockchain não substitui a necessidade de comprovação da manifestação de vontade das partes, o que coloca em evidência um ponto crítico: a veracidade da tecnologia não pode se sobrepor à necessidade de provar a autenticidade e a validade da contratação.
Nesse sentido, a jurisprudência brasileira já começa a formar entendimentos importantes para a análise de smart contracts. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, discutiu o uso de um contrato inteligente em um processo envolvendo um “contrato particular de aluguel inteligente de veículos com cashback”. Embora a decisão tenha se baseado em aspectos do Código Civil e dos direitos de propriedade, ela demonstra a disposição do Judiciário de lidar com questões relacionadas à validade e à interpretação desses contratos, mesmo sem uma regulamentação específica.
O marco legal existente também oferece bases para o reconhecimento dos contratos digitais no Brasil. O Código Civil, em seu artigo 104, estabelece os requisitos para a validade de um negócio jurídico: agente capaz, objeto lícito, possível e determinado, e forma prescrita ou não defesa em lei. Os contratos inteligentes atendem a esses requisitos, desde que reflitam a manifestação inequívoca da vontade das partes, mesmo em formato digital. Além disso, a Lei nº 13.874/2019, a Lei de Liberdade Econômica, reforça a liberdade de contratar por meios eletrônicos, criando um ambiente jurídico favorável para a adoção de tecnologias como os smart contracts. Essa lei também assegura a boa-fé e a liberdade de negociação, desde que respeitados os limites legais.
Outro pilar fundamental para a validade jurídica dos contratos digitais no Brasil é a Medida Provisória nº 2.200-2/2001, que criou a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil). Essa medida tem como objetivo garantir a autenticidade e a
integridade de documentos eletrônicos por meio da certificação digital, assegurando-lhes a mesma validade jurídica dos documentos físicos. Embora os smart contracts não dependam diretamente da ICP-Brasil para funcionar, a lógica jurídica da MP é fundamental, pois fornece uma base para defender a validade dos contratos inteligentes, especialmente quando associados a mecanismos de autenticação digital. A lógica por trás da certificação digital, conforme estabelecido pela MP, pode ser estendida aos contratos inteligentes, reforçando a ideia de que a tecnologia blockchain, mesmo sendo descentralizada, pode ser compatível com as normas jurídicas do Brasil.
A evolução do ambiente regulatório também é um fator importante que fortalece a posição dos contratos inteligentes no sistema jurídico brasileiro. A recente Lei nº 14.478/2022, o Marco Legal dos Criptoativos, embora não trate diretamente dos smart contracts, representa um avanço significativo na adaptação do Direito à realidade das tecnologias digitais. Essa abertura regulatória reflete a disposição do legislador em criar um ambiente mais seguro para o uso de tecnologias como a blockchain e os contratos inteligentes, o que facilita a consolidação dessas tecnologias no sistema jurídico e nas relações comerciais.
Por fim, os debates e as decisões judiciais sobre a validade dos contratos inteligentes estão cada vez mais presentes no cenário jurídico brasileiro. Casos concretos, como os julgados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, São Paulo (Processo nº: 1003342-13.2022.8.26.0428[2]), e Pernambuco (Recurso Inominado Cível: 00027297120248178226)[3], além de processos envolvendo questões relacionadas à validade e à execução desses contratos, mostram que o sistema jurídico brasileiro está em processo de adaptação. O Judiciário tem se mostrado capaz de lidar com essas inovações, interpretando as normas já existentes à luz da nova realidade digital.
A tendência é que a jurisprudência continue a se desenvolver, oferecendo maior segurança jurídica para a aplicação dos smart contracts e permitindo que a tecnologia blockchain seja integrada de forma mais ampla no direito contratual brasileiro. Assim, o reconhecimento jurídico dos contratos inteligentes no Brasil se fortalecerá, à medida que o sistema jurídico evolui para acompanhar as inovações tecnológicas e oferece um ambiente mais seguro e adequado para as transações digitais.
Os contratos inteligentes trazem grandes avanços tecnológicos, oferecendo vantagens como automação, redução de burocracia e maior transparência, especialmente em áreas como compras públicas, onde já há exemplos de sucesso no México e nos EUA. Eles eliminam intermediários, reduzindo custos e tornando transações mais seguras e eficientes. Esse potencial pode transformar modelos de negócios e a operação das instituições.
No entanto, sua implementação enfrenta desafios, como a inflexibilidade. Por serem autoexecutáveis, não permitem mudanças após a implementação na blockchain, o que pode ser um problema em contratos complexos. A falta de regulamentação no Brasil gera incertezas sobre como o Judiciário lidaria com disputas envolvendo esses contratos.
Além disso, a dependência de dados externos (os “oráculos”) é uma vulnerabilidade, pois dados incorretos ou manipulados podem resultar em execuções erradas.
A regulamentação global está avançando, com países como Estônia e Austrália liderando a adoção de smart contracts. A Estônia, por exemplo, já utiliza blockchain em serviços públicos, enquanto a Austrália criou a Australian National Blockchain, permitindo uma gestão digital eficiente de contratos. Esses exemplos demonstram que a adoção de smart contracts é viável e pode impulsionar inovação.
No Brasil, iniciativas como o Sistema de Contratos Distribuídos (SCD) do Serpro mostram que a tecnologia já está sendo aplicada. A evolução legislativa e a adaptação do Judiciário serão fundamentais para consolidar a blockchain como ferramenta essencial no direito contratual.
Em resumo, os contratos inteligentes baseados em blockchain podem ser considerados válidos no Brasil, alinhando-se ao Código Civil, à Lei de Liberdade Econômica e à MP nº 2.200-2/2001. A autonomia da vontade e a aceitação dos meios eletrônicos já consolidados no ordenamento jurídico brasileiro abrem caminho para seu uso pleno.
Contudo, existem desafios, como a necessidade de alinhar a lógica algorítmica com a interpretação jurídica, especialmente em casos de ambiguidades entre código e cláusulas contratuais. A inflexibilidade do código pode entrar em conflito com princípios do Direito Contratual, como a boa-fé e a função social do contrato.
Embora a Lei nº 14.478/2022 tenha simplificado processos eletrônicos, ainda falta uma regulamentação específica sobre oráculos, certificação digital e falhas de programação. Essa ausência não deve ser vista como um obstáculo, mas como uma oportunidade para adaptar o sistema jurídico.
A adoção dos contratos inteligentes oferece benefícios como redução de custos, maior segurança e democratização dos serviços contratuais. Para aproveitar esse potencial, é essencial que a academia, advogados e operadores do Direito se preparem tecnicamente.
Em última análise, o diálogo entre juristas, tecnólogos e legisladores é crucial para conciliar a inovação com os princípios de segurança jurídica, ética e equidade. Este estudo contribui para a compreensão crítica do tema e abre caminhos para futuras pesquisas sobre governança de blockchain e jurisdição digital.
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
BRASIL. Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019.
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BRASIL. Lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022.
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TJ-MG – Apelação Cível: XXXXX-06 .2018.8.13.0704 1 .0000.24.195032-8/001,
Relator.: Des.(a) Marcelo de Oliveira Milagres, Data de Julgamento: 04/06/2024, 18ª
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TJ-PE – Recurso Inominado Cível: 00027297120248178226, Relator.: CARLA ADRIANA DE ASSIS SILVA ARAUJO, Dxata de Julgamento: 09/06/2025, 2º Gabinete da Primeira Turma Recursal Juizados – JECRC- Petrolina. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj–pe/4027642086/inteiro–teor–4027642099.
Acesso em: 22 de agosto de 2025.
TJ-SP – Sentença: 1003342-13.2022.8.26.0428, Relator: Vanessa Miranda Tavares de Lima, Data de Julgamento: 05/12/2024, 7ª Vara Cível, Campinas. Disponível em: < https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/2923683554/inteiro-teor2923683560>. Acesso em: 22 de agosto de 2025.
[1] (TJ-MG – Apelação Cível: XXXXX-06 .2018.8.13.0704 1 .0000.24.195032-8/001, Relator.: Des.(a)
Marcelo de Oliveira Milagres, Data de Julgamento: 04/06/2024, 18ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 05/06/2024)
[2] (TJ-SP – Sentença: 1003342-13.2022.8.26.0428, Relator: Vanessa Miranda Tavares de Lima, Data de Julgamento: 05/12/2024, 7ª Vara Cível, Campinas)
[3] (TJ-PE – Recurso Inominado Cível: 00027297120248178226, Relator.: CARLA ADRIANA DE ASSIS
SILVA ARAUJO, Dxata de Julgamento: 09/06/2025, 2º Gabinete da Primeira Turma Recursal Juizados – JECRC – Petrolina)
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