O Direito é, antes de tudo, uma linguagem. Mais do que um conjunto de normas, constitui um sistema de significados que expressa valores, relações de poder e representações sociais. Quando se afirma que a justiça fala, fala-se, na verdade, de um discurso — e como todo discurso, ele é construído, seletivo e carregado de sentidos históricos.
A linguagem jurídica, ao longo do tempo, foi moldada a partir de uma lógica masculina e elitista, cuja pretensa neutralidade frequentemente escondeu a exclusão de grupos sociais, em especial das mulheres. “Justiça humanizada”, neste contexto, significa reconhecer o sujeito em sua integralidade, acolhendo sua experiência emocional e social como parte essencial do processo decisório. Já “linguagem judicial” deve ser compreendida como instrumento simbólico de poder, que tanto pode reproduzir hierarquias quanto promover a inclusão e o reconhecimento.
Nas últimas décadas, o debate sobre a perspectiva de gênero ganhou espaço na esfera jurídica, impulsionado por movimentos feministas, pela produção acadêmica e pelo reconhecimento internacional dos direitos humanos das mulheres. No entanto, a formação jurídica brasileira ainda se mostra pouco permeável a essa pauta, mantendo currículos e metodologias que reproduzem desigualdades e naturalizam hierarquias.
O presente artigo parte da hipótese de que a educação jurídica com perspectiva de gênero é elemento fundamental para a humanização da justiça e a transformação das práticas forenses. Para tanto, propõe-se discutir o papel da linguagem judicial na reprodução de desigualdades e refletir sobre como o ensino jurídico pode contribuir para um sistema de justiça mais sensível, inclusivo e democrático.
Pierre Bourdieu (1989) ensina que o poder simbólico é aquele que “faz crer”, isto é, que estrutura a percepção da realidade de modo a tornar o arbitrário socialmente legítimo. A linguagem jurídica, com seu vocabulário técnico e formalismo ritualizado, constitui uma das expressões mais evidentes desse poder. Ao monopolizar o discurso legítimo sobre o que é considerado justo ou verdadeiro, o Direito transforma desigualdades em normas e naturaliza hierarquias.
Michel Foucault (1996) demonstra que o discurso é instrumento de controle, pois define quem pode falar e o que pode ser dito. No campo judicial, essa dinâmica se materializa na forma como mulheres são frequentemente silenciadas ou deslegitimadas em suas falas — seja em audiências, depoimentos ou decisões judiciais. A linguagem, nesse contexto, não apenas comunica, mas constitui práticas de exclusão.
Warat (1995) também alerta que a linguagem jurídica, ao buscar a objetividade absoluta, perde a dimensão humana do conflito e transforma o sofrimento em “caso”. Essa desumanização do discurso judicial impacta especialmente as mulheres, cujas experiências — como a violência doméstica, a desigualdade no trabalho ou a invisibilidade na política — são frequentemente reduzidas a categorias formais que não captam suas complexidades emocionais e sociais.
Por exemplo, ao referir-se a uma mulher vítima de violência como “envolvida em conflito conjugal”, algumas decisões acabam por minimizar a gravidade da agressão, reproduzindo estereótipos e invisibilizando o contexto de vulnerabilidade. Compreender a linguagem judicial como forma de poder é, portanto, reconhecer que a justiça não se expressa apenas por sentenças, mas também pelas palavras que as compõem. A escolha vocabular, o modo de tratar a vítima, o tom da decisão — tudo isso comunica valores e reforça (ou rompe) estruturas de dominação.
Apesar dos avanços teóricos e legislativos em matéria de gênero, a formação jurídica brasileira ainda se mantém presa a um modelo positivista, normativista e distante das realidades sociais. Poucas faculdades de Direito incorporam conteúdos obrigatórios sobre direitos das mulheres, diversidade ou interseccionalidade. O resultado é a reprodução de uma cultura jurídica insensível às desigualdades e pouco preparada para lidar com as múltiplas formas de violência e exclusão.
Scott (1995) define gênero como uma categoria útil de análise histórica, pois revela as relações de poder que estruturam as instituições. Aplicar essa categoria ao ensino jurídico significa revisitar currículos, metodologias e práticas pedagógicas à luz das desigualdades estruturais. Uma educação jurídica sensível ao gênero precisa reconhecer que o Direito não é neutro — e que, portanto, deve ser continuamente revisitado a partir das vozes e experiências das mulheres.
Além disso, a formação jurídica deve estimular a escuta e a empatia como competências profissionais. O advogado ou advogada que compreende o contexto social e emocional de quem busca a justiça atua com maior sensibilidade e responsabilidade ética. Essa dimensão humanizada do ensino contribui para uma prática jurídica comprometida não apenas com a letra da lei, mas também com a dignidade das pessoas.
Iniciativas como núcleos de prática jurídica voltados a mulheres em situação de vulnerabilidade, clínicas de direitos humanos e disciplinas interdisciplinares têm mostrado que é possível formar profissionais conscientes do papel social do Direito. A educação jurídica, portanto, é espaço privilegiado de transformação cultural e institucional.
A advocacia é, por excelência, um exercício de linguagem. É por meio da palavra que se argumenta, convence e promove o acesso à justiça. Nesse sentido, a mulher advogada tem papel duplo: como operadora do Direito e como educadora social. Ao atuar em causas de gênero, ela transforma o espaço jurídico em um campo de aprendizado coletivo, ensinando pela prática que o Direito pode (e deve) servir à igualdade.
A presença feminina na advocacia e no magistério jurídico desafia estruturas históricas de exclusão. Durante o século XX, mulheres como Carlota Pereira de Queirós — primeira deputada federal eleita no Brasil em 1933 — abriram caminho em um cenário jurídico e político majoritariamente masculino. Ainda assim, apenas nas últimas décadas a participação feminina tem se consolidado em posições de liderança, inclusive na magistratura e na docência jurídica.
Contudo, cada vez mais as mulheres ocupam esses espaços com novas perspectivas, trazendo sensibilidade, escuta e compromisso ético com a diversidade. A advocacia feminista, ao problematizar as práticas judiciais e denunciar a violência institucional, atua também como agente educativo. O exemplo de uma advogada que acolhe, explica e traduz o juridiquês para sua cliente é, em si, um ato pedagógico e político. Ao desmistificar o Direito, aproxima-o das pessoas e devolve humanidade à justiça.
Nesse contexto, a formação jurídica precisa ser entendida não apenas como etapa acadêmica, mas como processo contínuo de reflexão. A atualização profissional, a participação em comissões temáticas da OAB e a produção acadêmica são formas de educação permanente que reforçam o compromisso com uma advocacia transformadora.
A presença de mulheres em comissões como as de Igualdade Racial e Mulher Advogada da OAB/PE representa justamente esse movimento de intersecção entre gênero, raça e educação jurídica — um esforço coletivo para que a advocacia seja espaço de promoção de direitos e de reeducação social.
Por fim, é preciso compreender que a transformação da linguagem jurídica não se dá apenas por decretos ou resoluções, mas pela prática cotidiana. Cada petição, cada audiência, cada sustentação oral pode ser um ato de resistência simbólica. Falar com empatia e escutar com respeito são formas de humanizar o Direito.
A linguagem é o espelho da justiça. Se a justiça ainda reflete desigualdades, é porque a linguagem que a sustenta continua marcada por visões excludentes. Humanizar a linguagem jurídica é, portanto, um caminho para humanizar a própria justiça. O artigo demonstrou que a neutralidade da linguagem judicial é ilusória: ela expressa um poder simbólico que legitima desigualdades e silencia vozes.
Se por um lado há quem defenda a neutralidade da linguagem jurídica como garantia de imparcialidade, este trabalho sustenta que tal neutralidade é ilusória, pois invisibiliza a dimensão social e simbólica do Direito. Nesse contexto, a educação jurídica aparece como instrumento indispensável de transformação, pois forma os sujeitos que produzirão o discurso jurídico do futuro.
Ao incorporar a perspectiva de gênero nos currículos, nas práticas pedagógicas e na advocacia, abre-se espaço para um Direito mais empático, plural e sensível à realidade social. A mulher advogada, ao ocupar esse lugar de fala e ação, contribui não apenas para a defesa de direitos individuais, mas para a reeducação simbólica da própria justiça.
Conclui-se, assim, que a transformação do sistema jurídico exige mais do que novas leis: requer novas linguagens, novos olhares e novas práticas educativas. Somente quando o Direito aprender a falar com igualdade, a justiça poderá realmente ser chamada de humanizada.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
BRASIL. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília: MEC, 2006.
CARRIJO, Maria Lúcia. Direito e Linguagem: o discurso jurídico e a produção de verdades. São Paulo: Atlas, 2018.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
MACHADO, Marta. Gênero e Justiça: desafios na formação jurídica brasileira. Revista Brasileira de Estudos de Gênero, v. 7, n. 2, 2021.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, 1995.
WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e Linguagem. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995.
BRASIL. Carlota Pereira de Queirós (1892-1982). Médica e política: primeira mulher eleita deputada federal no Brasil. Portal Memória, Brasília, DF. Disponível em:
https://memoria.cnpq.br/web/guest/pioneirasview//journal_content/56_INSTANCE_a6MO/10157/1144271. Acesso em: 07 nov. 2025.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Aberto prazo de indicações ao Diploma Mulher-Cidadã Carlota Pereira de Queirós 2023. Secretaria da Mulher, 31 mai. 2023. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-da-mulher/noticias/aberto-prazo-de-indicacoes-ao-diploma-mulher-cidada-carlota-pereira-de-queiros-2023 . Acesso em: 07 nov. 2025.
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