Michele Karine Carvalho Carneiro da Cunha

O Recurso especial e o IRDR: A reafirmação da “Causa Decidida” como pilar da competência Constitucional do STJ

Postado em 12 de novembro de 2025 Por Michele Karine Carvalho Carneiro da Cunha Advogada, inscrita na OAB/PE sob o nº 64904, pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela UNINASSAU. Psicanalista clínica e didata, com sólida formação humanística e técnica, integra a prática jurídica a escuta qualificada fortalecendo mediações.
  1. Introdução:

O Contexto do CPC/2015 e o Sistema de Precedentes

O Código de Processo Civil de 2015 representou um marco na história do direito processual brasileiro, não apenas por modernizar procedimentos, mas por promover uma mudança de paradigma na cultura jurídica nacional. Diante de um cenário de litigiosidade em massa e da consequente crise de eficiência do Poder Judiciário, o legislador buscou inspiração em sistemas da common law para instituir um robusto sistema de precedentes judiciais vinculantes. O objetivo era claro: garantir isonomia, previsibilidade, segurança jurídica e celeridade processual.

Nesse contexto, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), previsto nos artigos 976 a 987 do CPC, surgiu como uma das ferramentas mais fortes para a gestão de processos repetitivos. Ao permitir que os tribunais locais fixem teses jurídicas uniformes para questões de direito idênticas, o IRDR visa pacificar controvérsias de forma concentrada. Contudo, a interação desse novo instituto com os recursos excepcionais gerou uma controvérsia de alta complexidade, cuja solução definiria os contornos da própria atuação do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

2. A Mecânica do IRDR e a Origem da Controvérsia

Para entender a questão, é crucial revisitar a mecânica do IRDR. O incidente é admitido quando há, simultaneamente, a efetiva repetição de processos sobre a mesma questão unicamente de direito e o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. Uma vez instaurado, o julgamento do IRDR promove uma cisão cognitiva:

Julgamento da Tese (Abstrato): Primeiramente, o órgão colegiado competente analisa a questão jurídica de forma desvinculada de um caso específico, fixando uma tese que se tornará um precedente obrigatório (art. 927, III, CPC) no âmbito da jurisdição daquele tribunal.

Julgamento da Causa (Concreto): Em um segundo momento, essa tese é aplicada para solucionar o caso concreto que serviu de “piloto” para a instauração do incidente, bem como todos os demais processos que estavam suspensos.

A controvérsia nasceu da redação do art. 987 do CPC, que dispõe: “Do julgamento do mérito do incidente caberá recurso extraordinário ou especial, conforme o caso”. A interpretação literal sugeria que o simples ato de fixar a tese – o “mérito do incidente” – já seria, por si só, uma decisão recorrível ao STJ. Essa leitura, contudo, colide frontalmente com a arquitetura constitucional da competência das Cortes Superiores.

3. O Cerne da Questão: A Tensão entre a Norma Processual e a Competência Constitucional do STJ

A questão central pode ser resumida na seguinte pergunta: pode uma lei ordinária (o CPC) ampliar a competência do STJ para além dos limites estabelecidos pela Constituição Federal? A resposta, consolidada pela jurisprudência, é negativa.

O sistema de controle de legalidade brasileiro, exercido pelo STJ via Recurso Especial, é, por essência, um controle concreto e incidental. Isso significa que a função do Tribunal não é a de emitir pareceres ou validar teses jurídicas em abstrato, mas sim a de solucionar um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida (uma lide), que se materializa em uma “causa”. O acórdão que fixa a tese em um IRDR, quando analisado isoladamente, não soluciona uma lide. Ele possui uma natureza muito mais normativa do que jurisdicional-contenciosa; ele cria uma regra, um precedente vinculante, mas não declara o direito de uma parte específica em detrimento de outra.

Nesse contexto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça evoluiu para reafirmar sua missão constitucional. A Corte compreendeu que admitir um Recurso Especial contra a tese em abstrato seria subverter seu papel, transformando-o em uma espécie de “tribunal de consulta” ou em uma terceira instância legislativa, o que seria incompatível com o desenho institucional brasileiro.

Portanto, a solução encontrada foi a de interpretar o sistema de forma a harmonizar o novo instituto processual com a Constituição. O entendimento consolidado é que:

O pronunciamento que se limita a fixar a tese jurídica em abstrato no IRDR não configura uma “causa decidida” para os fins do art. 105, III, da Constituição. A “causa” só se perfaz quando essa tese é efetivamente aplicada para solucionar o conflito de interesses do caso-piloto ou de qualquer outro processo que estava sobrestado.

Assim, o recurso excepcional somente é cabível contra o acórdão que, ao aplicar a tese, resolve a lide, pois é nesse momento que a atividade jurisdicional em seu sentido estrito se completa, julgando um caso concreto e gerando uma “causa decidida” passível de reexame pela Corte Superior. Essa linha de raciocínio encontra forte amparo, por analogia, na Súmula 513 do STF, que há muito tempo estabelece que o recurso cabível não é contra a decisão que resolve o incidente de inconstitucionalidade, mas sim contra a decisão do órgão que, aplicando aquele entendimento, completa o julgamento do feito.

4. Implicações Práticas e Estratégicas para a Advocacia

A consolidação desse entendimento pelo STJ traz clareza e define importantes balizas para a atuação dos advogados:

Foco no Caso Concreto: A estratégia recursal deve se concentrar não no acórdão que fixa a tese, mas na decisão que a aplica ao caso concreto do cliente. É contra esta última que o Recurso Especial deve ser manejado.

Dupla Possibilidade de Argumentação: No Recurso Especial, o advogado poderá atacar em duas frentes: (a) questionar a própria tese fixada, argumentando sua ilegalidade ou inconstitucionalidade; e (b) demonstrar que a tese, embora válida, foi aplicada de forma equivocada ao caso concreto realizando o distinguishing ou que já foi superada overruling.

Racionalidade Recursal: A orientação evita a interposição de recursos prematuros e manifestamente inadmissíveis, que seriam barrados por ausência de um requisito constitucional. Isso otimiza o trabalho da advocacia e contribui para a racionalidade do sistema recursal.

5. Conclusão: A Maturidade Institucional e a Reafirmação do Papel do STJ

A solução dada à controvérsia sobre o cabimento do Recurso Especial em face de teses de IRDR é um exemplo de maturidade institucional. Ao invés de se ater a uma interpretação literal e isolada de um dispositivo do CPC, o Superior Tribunal de Justiça realizou uma interpretação sistemática e constitucional, reafirmando seu papel de Corte de cassação, cuja função é garantir a unidade da interpretação da lei federal por meio do julgamento de causas concretas.

A decisão não enfraquece o sistema de precedentes; pelo contrário, ela o fortalece, ao garantir que os pronunciamentos do STJ derivem da análise de fatos e de conflitos reais, e não de deliberações abstratas. Para a advocacia, a mensagem é clara: o caminho para as Cortes Superiores continua a exigir a existência de uma lide resolvida, uma “causa decidida”, pilar fundamental do Estado Democrático de Direito e da própria jurisdição.

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