Sob o pretexto de modernizar o Judiciário e alinhar-se à Lei Geral de Proteção de Dados, o Conselho Nacional de Justiça editou resolução que regulamenta a gravação de audiências, sessões de julgamento e plenários do júri. Lamento discordar daqueles que entenderam esse ato como uma “avanço”. Parece-me, na verdade, de um retrocesso sutil e perigoso, que transforma um direito fundamental em uma concessão discricionária.
Episódios recentes da casuística forense revelam inúmeros episódios em que advogados foram impedidos de gravar audiências. O caso mais emblemático envolveu o então juiz Sérgio Moro, que proibiu o então advogado Cristiano Zanin de registrar uma sustentação oral. Não se tratava de capricho profissional, mas do exercício de uma prerrogativa constitucional fundamental para a defesa técnica adequada.
A Constituição é cristalina ao assegurar no artigo 5º, inciso LV, a ampla defesa “com os meios e recursos a ela inerentes”. A gravação audiovisual de atos processuais é, inequivocamente, um desses meios. Permite verificar a fidedignidade de depoimentos, documentar perguntas indeferidas e registrar a própria postura das autoridades – elementos vitais para instruir recursos e evitar o cerceamento de defesa.
A nova resolução, contudo, condiciona esse direito à demonstração de “finalidade legítima” e submete-o ao crivo subjetivo de magistrados. Inverte-se a lógica jurídica: o que antes era um direito inerente à advocacia torna-se uma concessão dependente de justificação prévia. É como exigir que o médico prove a necessidade do estetoscópio ou que o engenheiro justifique o uso da régua.
O argumento central da resolução baseia-se na proteção de dados pessoais, invocando a Lei Geral de Proteção de Dados. Trata-se de uma cortina de fumaça. A própria LGPD prevê expressamente que o tratamento de dados pode ser realizado para o “exercício regular de direitos em processo judicial”. A gravação pelo advogado enquadra-se perfeitamente nesta hipótese. Mais grave: utilizar a LGPD para restringir a gravação subverte a própria essência da lei, que visa proteger o cidadão do poder estatal. No contexto processual, a gravação pela defesa é justamente um mecanismo de proteção contra eventuais abusos de autoridade. Transformar lei protetiva em instrumento de controle da informação representa uma inversão perversa de valores. A regulamentação mostra-se particularmente deletéria no âmbito do Tribunal do Júri. Por sua natureza, o rito do júri dispensa a fundamentação das decisões pelos jurados. A única forma de fiscalizar a lisura do procedimento é através do registro audiovisual integral dos atos.
A sustentação oral no plenário – momento crucial para a formação da convicção dos jurados – precisa ser documentada para fins recursais. Impedir ou dificultar essa gravação transforma o julgamento do júri em uma “caixa-preta” processual, incompatível com as exigências de transparência do Estado Democrático de Direito.
A resolução cria algo ainda mais pernicioso: a coação psicológica. Ao ameaçar com sanções civis e penais a gravação considerada “abusiva” ou “clandestina” – conceitos propositalmente vagos –, a norma induz o advogado à autocensura. O profissional, temeroso das consequências, opta por não gravar, calando-se de forma indireta.
O objetivo da medida é deixar a gravação tão precária e arriscada que o advogado desista do exercício do direito. O silenciamento se dá por intimidação, método mais eficaz que a proibição explícita.
O Estatuto da Advocacia é taxativo: não há hierarquia entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público. A possibilidade de um juiz restringir discricionariamente a gravação viola frontalmente esse princípio, criando uma subordinação incompatível com o Estado de Direito.
Diante desse cenário, impõe-se à advocacia militante uma postura de resistência democrática. Devemos continuar exercendo o direito de gravar audiências, fundamentando-o diretamente na Constituição Federal, no Estatuto da Advocacia e na sólida jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria.
Qualquer tentativa de cercear esse direito deve ser impugnada imediatamente, com a devida fundamentação jurídica. A luta pela liberdade da advocacia transcende interesses corporativos – é a luta pela própria liberdade do cidadão.
A resolução do CNJ, vendida como avanço, revela-se um Cavalo de Troia. Sob a promessa de transparência, introduz mecanismos sutis de controle e censura. Cabe à advocacia consciente desmascarar essa farsa e defender, com a veemência necessária, as prerrogativas que são, antes de tudo, garantias democráticas.
O preço da liberdade é a eterna vigilância. E vigilância pressupõe o direito de ver, ouvir – e gravar.
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