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A conta não fecha: deficiência, custos invisíveis e justiça social

Postado em 15 de outubro de 2025 Por Ricardo A S Von Sohten Ricardo Amaro da Silva Von Sohsten é acadêmico do décimo semestre do curso de Direito pela Faculdade Imaculada Conceição do Recife (FICR). Com uma visão sensível e transformadora sobre o papel do Direito, acredita que a justiça nasce do encontro entre a empatia e o conhecimento. Autor do artigo “A conta não fecha: deficiência, custos invisíveis e justiça social”, dedica-se à defesa dos direitos humanos e à construção de uma sociedade mais inclusiva e igualitária.

As famílias de pessoas com deficiência enfrentam, diariamente, uma realidade marcada por obstáculos que transcendem o aspecto material. A busca por terapias adequadas, o enfrentamento de um transporte público precário e a luta contra o preconceito social formam um cenário de sobrecarga física, emocional e financeira. Essa dura rotina revela que a questão da deficiência não se limita a um debate jurídico ou econômico, mas a um verdadeiro desafio de dignidade humana.

Nesse contexto, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) surge como instrumento vital de proteção social. Previsto no art. 203, V, da Constituição Federal (CF) e regulamentado pela Lei nº 8.742/1993, o BPC assegura um salário-mínimo à pessoa com deficiência que não possa prover seu sustento. Contudo, a exigência de comprovação de renda familiar per capita inferior a 1/4 do salário-mínimo tem se mostrado um critério injusto e excludente. A deficiência, por si só, impõe despesas extraordinárias muito além do valor que é disponível.

A realidade comprova que muitas famílias, mesmo possuindo alguma renda, não conseguem arcar com os custos de terapias multidisciplinares, medicamentos, exames, equipamentos de apoio e adaptações necessárias. A manutenção do critério financeiro acaba marginalizando exatamente aqueles que o Estado deveria proteger. Trata-se de uma falácia que distorce a finalidade do benefício e perpetua desigualdades.

A Constituição Federal é clara ao afirmar que a saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196). No entanto, barreiras de acessibilidade, especialmente no transporte público, impedem que pessoas com deficiência tenham acesso pleno a terapias e tratamentos. A falta de veículos adaptados, a inexistência de fiscalização e a hostilidade social tornam o deslocamento um ato de resistência. Assim, a exclusão não ocorre apenas pela ausência de renda, mas também pelo descumprimento da obrigação constitucional.

A Lei Brasileira de Inclusão (LBI – Lei nº 13.146/2015) reforça a igualdade de oportunidades e a não discriminação. Contudo, sua efetividade esbarra na insuficiência de políticas públicas e no descaso com a fiscalização. O resultado é a sobrecarga de mães e familiares que, além de cuidarem integralmente de seus entes, se afastam do mercado de trabalho e veem agravada sua vulnerabilidade emocional e financeira.

Diante disso, é urgente desvincular o BPC da análise da renda familiar. O benefício deve ser destinado exclusivamente à pessoa com deficiência, garantindo-lhe autonomia, dignidade e condições de vida minimamente justas. Essa medida não apenas se alinha ao princípio da dignidade da pessoa humana, mas também concretiza o mandamento constitucional da igualdade material. A deficiência, por si só, já é fator de vulnerabilidade suficiente para justificar o acesso ao benefício.

Ademais, a proteção não deve se restringir ao indivíduo com deficiência. Os familiares também precisam de apoio psicológico e social, a fim de enfrentar a sobrecarga emocional e os impactos da exclusão. O fortalecimento de políticas de assistência, como o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) e o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), é essencial para oferecer acolhimento e suporte, prevenindo o esgotamento dos cuidadores.

As estatísticas demonstram que o número de famílias em situação de vulnerabilidade ultrapassa em muito os limites formais impostos pela lei. A ausência de dados completos e atualizados apenas agrava o problema, dificultando a formulação de políticas públicas adequadas. É preciso que o Estado cumpra o art. 117 da Lei nº 8.742 e reveja os critérios de concessão do Benefício de Prestação Continuada, considerando a realidade social e econômica do país e, sobretudo, a dignidade das pessoas com deficiência.

A exigência de renda per capita é uma condicionalidade desumana. Ela ignora a complexidade da deficiência, reduzindo um direito fundamental a um cálculo frio e descontextualizado. Ao invés de promover a inclusão, essa exigência perpetua um ciclo perverso de marginalização. O Estado brasileiro precisa reconhecer que a deficiência não é escolha, mas condição que demanda políticas públicas efetivas e humanizadas.

Portanto, a desvinculação do BPC da renda familiar é mais que uma proposta jurídica: é um imperativo ético e social. Ao assegurar que o benefício seja concedido com base nas necessidades específicas da pessoa com deficiência, estar-se-á cumprindo o verdadeiro espírito da Constituição Federal, que valoriza a dignidade humana e a justiça social.

Em conclusão, é necessário um olhar mais humano e inclusivo. O Benefício de Prestação Continuada não é um simples repasse financeiro, mas um pilar de cidadania, inclusão e respeito. Apenas com a revisão de seus critérios será possível romper o ciclo de exclusão e construir uma sociedade que reconheça e valorize a diversidade, garantindo a todos, independentemente de sua condição, o direito a uma vida plena e digna.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 dez.

1993.

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 2015.

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