A dependência química por álcool é uma realidade que perpassa os limites da saúde individual, afetando diretamente a estrutura familiar, social e jurídica. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o alcoolismo como uma doença crônica, progressiva e multifatorial, que se caracteriza pelo consumo abusivo e repetitivo da substância, culminando em prejuízos significativos na vida do indivíduo e daqueles que com ele convivem. No Brasil, a problemática ganha contornos ainda mais complexos quando analisada sob a ótica do Direito, especialmente no que tange à proteção integral da criança e do adolescente. A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) estabelecem normas protetivas que vinculam a família, a sociedade e o Estado à tarefa de garantir um ambiente saudável e adequado ao desenvolvimento dos menores. Assim, a dependência alcoólica, quando presente no seio familiar, pode configurar violação de deveres parentais, gerar medidas de proteção e, em casos mais graves, ensejar até a perda do poder familiar.
A dependência química não pode ser reduzida a um comportamento de escolha individual, mas deve ser compreendida a partir de um conjunto de fatores biopsicossociais. Pesquisas apontam que predisposições genéticas, vulnerabilidades emocionais, ambiente social permissivo e o forte apelo cultural ao consumo de álcool são determinantes no processo de adoecimento. No Brasil, a naturalização do consumo de bebidas alcoólicas é perceptível em festas populares, propagandas e no convívio social, o que torna difícil o estabelecimento de políticas de prevenção eficazes. O resultado é o aumento da vulnerabilidade de indivíduos que, em determinado momento, podem perder o controle do uso, evoluindo para quadros de tolerância, abstinência e compulsão.
Do ponto de vista jurídico, a dependência alcoólica não pode ser vista apenas como uma enfermidade individual. Ela afeta diretamente os deveres de sustento, guarda e educação dos filhos, previstos no artigo 22 do ECA. A violação desses deveres pode acarretar consequências como a aplicação de multa (art. 249 do ECA), a imposição de medidas de proteção (art. 101 do ECA) e, em casos extremos, a suspensão ou destituição do poder familiar (art. 1.638 do Código Civil).Além disso, a Constituição Federal, em seu artigo 227, consagra a doutrina da proteção integral, impondo ao Estado, à sociedade e à família a obrigação de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde e à convivência familiar. Quando o consumo abusivo de álcool gera ambiente de violência, negligência ou abandono, há evidente violação a esse mandamento constitucional. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu em diversos casos que a dependência alcoólica, quando comprovadamente prejudicial ao exercício das funções parentais, pode justificar a suspensão ou a perda do poder familiar. Contudo, a Corte também reconhece a necessidade de distinguir a condição de doença do comportamento de negligência dolosa, reforçando que a dependência, por si só, não afasta automaticamente os direitos parentais, mas demanda avaliação do caso concreto.
As crianças e adolescentes que convivem em ambientes familiares marcados pelo alcoolismo sofrem impactos diretos em seu desenvolvimento psicológico, social e educacional. Entre os efeitos mais comuns, destacam-se: Rendimento escolar prejudicado pela falta de acompanhamento dos pais ou pela instabilidade emocional gerada em casa; Problemas emocionais como ansiedade, depressão, insegurança e baixa autoestima; Convivência social limitada devido à vergonha, ao medo ou à reprodução de comportamentos violentos presenciados no lar. Estudos apontam que filhos de dependentes químicos têm maior propensão a iniciar o consumo de álcool precocemente. Essas consequências se traduzem, juridicamente, em ofensa direta ao direito fundamental de crianças e adolescentes a serem educados em um ambiente saudável, seguro e livre de negligência, violência e opressão (art. 227 da CF/88 e art. 4º do ECA).
O artigo 196 da Constituição Federal dispõe que a saúde é direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos. A dependência alcoólica, como doença crônica, insere-se nesse contexto, exigindo a criação de políticas públicas voltadas à prevenção, ao tratamento e à reinserção social dos dependentes. Entre as principais políticas já implementadas, destaca-se a Política Nacional sobre Drogas e os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD), que oferecem atendimento especializado. Contudo, ainda há deficiências quanto à estrutura, alcance e efetividade desses programas, o que compromete a efetivação do direito à saúde. No campo educacional, campanhas de prevenção e conscientização desempenham papel crucial. Informar adolescentes sobre os riscos do consumo precoce de álcool é medida de proteção que encontra respaldo no princípio da prioridade absoluta.
O Poder Judiciário brasileiro tem enfrentado casos em que a dependência alcoólica compromete a convivência familiar. Em decisão recente, o STJ firmou entendimento de que “o alcoolismo crônico, aliado à prática reiterada de violência doméstica, justifica a destituição do poder familiar, por comprometer gravemente o desenvolvimento integral da criança” (STJ, REsp 1.789.567/PR). Por outro lado, tribunais também têm reconhecido que, quando o genitor dependente busca tratamento e demonstra condições de retomar suas funções parentais, deve-se priorizar medidas de apoio e acompanhamento, em observância ao princípio da preservação dos vínculos familiares.
Embora seja uma doença de difícil manejo, a dependência alcoólica pode ser tratada com acompanhamento médico, psicológico e grupos de apoio, como os Alcoólicos Anônimos (AA). O tratamento, entretanto, não é linear, sendo comum a ocorrência de recaídas, que devem ser compreendidas como parte do processo de recuperação. Nesse sentido, o apoio familiar desempenha papel essencial. Acolher o dependente, incentivar a adesão ao tratamento e promover um ambiente saudável contribuem não apenas para a reabilitação do indivíduo, mas também para a proteção das crianças e adolescentes envolvidos.
A dependência química por álcool configura fenômeno multifacetado que envolve questões de saúde pública, socioculturais e jurídicas. Seus efeitos vão muito além do indivíduo, alcançando a família e, especialmente, as crianças e adolescentes, que se encontram em situação de maior vulnerabilidade. Do ponto de vista jurídico, a dependência alcoólica pode ensejar medidas protetivas, sanções administrativas e até a perda do poder familiar, sempre à luz do princípio da proteção integral. Contudo, a resposta estatal deve priorizar políticas de prevenção, tratamento e apoio, reconhecendo a dependência como uma doença que exige abordagem humanizada. Investir em prevenção e tratamento significa não apenas resguardar a saúde do dependente, mas também cumprir o dever constitucional de proteção à infância e à juventude, garantindo que futuras gerações possam crescer em ambientes livres de violência, negligência e opressão.
A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.
Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.