Michele Karine Carvalho Carneiro da Cunha

 A desjudicialização e o fortalecimento dos cartórios: entre a Eficiência e o acesso à justiça

Postado em 15 de outubro de 2025 Por Michele Karine Carvalho Carneiro da Cunha  Por Michele Karine Carvalho Carneiro da Cunha Advogada, inscrita na OAB/PE sob o nº 64904, graduada em Direito pela AESO e pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela UNINASSAU. Psicanalista clínica e didata, com sólida formação humanística e técnica, integra a prática jurídica à escuta qualificada, o que fortalece sua atuação na mediação e resolução de conflitos complexos. Professora nas disciplinas de Direito Civil e Processo Civil. Possui ampla atuação nas áreas de Direito de Família e sucessões e Direito Imobiliário assim como toda área cível, com foco especial em demandas que envolvem alta carga emocional e questões técnicas. Reconhecida pela abordagem estratégica, ética e interdisciplinar, destaca-se como profissional comprometida com a justiça, a escuta e a transformação de realidades por meio do Direito.

1. Introdução: a crise do modelo jurisdicional clássico

O sistema judicial brasileiro vive, há décadas, uma crise de eficiência. O modelo tradicional, fundamentado em uma jurisdição estatal exclusiva, já não consegue responder adequadamente à crescente complexidade das relações sociais e econômicas.

De acordo com o relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil possui mais de 80 milhões de processos ativos, o que corresponde a aproximadamente quatro ações judiciais para cada grupo de dez habitantes. A consequência é a conhecida morosidade, que compromete o princípio constitucional da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF/88) e enfraquece a confiança social na justiça.

Perante esse panorama, emerge um novo paradigma: o da desjudicialização, movimento que sugere a transferência de determinadas atividades de natureza jurídica para a esfera extrajudicial, com a atuação dos tabeliães e registradores sob fiscalização do Poder Judiciário.

Mais do que um expediente de gestão, a desjudicialização simula uma transformação estrutural da forma como o Estado administra conflitos e formaliza direitos.

2. Raízes e evolução normativa da desjudicialização

O processo de desjudicialização no Brasil não nasceu por acaso. Ele reflete uma tendência global de racionalização da justiça, inspirada em experiências de países como Espanha, Portugal e Itália, que desde os anos 1990 vêm adotando soluções extrajudiciais para questões consensuais.

No contexto brasileiro, o marco inicial foi a Lei nº 11.441/2007, que inovou ao permitir inventários, partilhas, separações e divórcios consensuais em cartório, sem intervenção judicial. Essa lei representou uma ruptura cultural: reconheceu que a formalização de certos atos jurídicos não depende do exercício do poder jurisdicional, mas de um controle de legalidade técnico e responsável.

Posteriormente, o movimento se expandiu:

  • Lei nº 13.465/2017 – introduziu a usucapião extrajudicial e ampliou a regularização fundiária;
  • Lei nº 14.382/2022 – instituiu o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP), viabilizando atos registrais digitais;
  • Lei nº 14.711/2023 – reforçou a atuação dos cartórios na constituição, averbação e execução de garantias reais;

além de provimentos e resoluções do CNJ, que vêm concretizando o papel das serventias como agentes de desburocratização e de cidadania.

Esses diplomas normativos concorrem para um mesmo propósito: fortalecer a via extrajudicial como instrumento de concretização da justiça.

3. Cartórios como instrumentos de efetividade e pacificação social

Os cartórios, de acordo com a tradição, vistos como órgãos formais e burocráticos, passaram a ser reconhecidos como parceiros estratégicos do sistema de justiça.

O tabelião e o registrador exercem função pública delegada, conferindo fé pública, autenticidade e segurança jurídica aos atos praticados.

Ao assumirem atribuições antes exclusivas do Judiciário, as serventias extrajudiciais contribuem para:

  • reduzir a litigiosidade;
  • aumentar a previsibilidade e a celeridade dos atos jurídicos;
  • promover o acesso efetivo à justiça, sobretudo em localidades desassistidas de varas judiciais.

O jurista português António Menezes Cordeiro sustenta que a “justiça eficiente não é aquela que julga mais, mas a que evita que se precise julgar”.

Sob essa ótica, os cartórios se tornam instrumentos de pacificação social preventiva, capazes de concretizar direitos sem a necessidade de litígio.

4. A advocacia e o novo protagonismo extrajudicial

Longe de representar intimidação, a desjudicialização expande o campo de atuação da advocacia civil e consultiva.

O advogado, figura indispensável à administração da justiça (art. 133 da CF/88), mantém protagonismo nos atos notariais não apenas por previsão normativa, como no art. 8º da Resolução nº 35/2007 do CNJ, mas também por necessidade prática e ética.

A nova advocacia deve atuar como ponte entre o cidadão e o cartório, garantindo que o cliente compreenda as implicações jurídicas do ato e assegurando o respeito à legalidade e à vontade das partes.

Trata-se de um perfil profissional mais resolutivo e preventivo, voltado à pacificação e à eficiência, sem perder o caráter técnico e humanista da profissão.

Nesse sentido, a desjudicialização não é uma ameaça ao advogado, mas uma janela de oportunidades para quem domina o direito material e o procedimento extrajudicial.

5. Críticas e desafios do modelo desjudicializado

A desjudicialização, todavia, não é liberada de críticas.

Alguns doutrinadores, como Fredie Didier Jr., alertam para o risco de “privatização da justiça”, caso a transferência de funções públicas para delegatários privados ocorra sem controle e sem políticas de acesso gratuito.

Entre os principais desafios destacam-se:

  • Desigualdade de acesso: nem todas as regiões contam com cartórios estruturados ou com serviços acessíveis economicamente;
  • Fiscalização insuficiente: a atuação das corregedorias precisa ser fortalecida para coibir práticas irregulares;
  • Uniformização de procedimentos: ainda há grande disparidade interpretativa entre serventias estaduais;
  • Capacitação técnica: exige atualização constante de notários, registradores e advogados sobre os novos instrumentos legais.

A desjudicialização não pode servir apenas como instrumento de descongestionamento do Judiciário, mas como mecanismo efetivo de democratização do acesso à justiça, sob pena de substituir a morosidade estatal por um sistema elitizado e restritivo.

6. A desjudicialização como expressão do acesso à justiça contemporâneo

O acesso à justiça, na visão clássica de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, não se resume ao ingresso no Poder Judiciário, mas ao acesso a uma solução justa, adequada e tempestiva.

Sob essa perspectiva, a desjudicialização é uma das expressões mais modernas desse princípio, pois amplia o espectro de caminhos para o exercício de direitos.

Os cartórios, ao oferecerem vias rápidas e seguras para a formalização de negócios jurídicos, materializam o direito fundamental à efetividade, sem eliminar a tutela jurisdicional, que permanece como instância de controle e revisão.

O que se observa, portanto, é uma coexistência complementar entre jurisdição e desjudicialização não uma competição.

Enquanto o Judiciário se concentra nas causas que exigem interpretação, prova e conflito, a via extrajudicial resolve o que é consensual, técnico e documental.

7. Conclusão: um novo pacto entre jurisdição e cidadania

A desjudicialização é mais do que uma tendência legislativa é um movimento cultural e institucional de modernização da justiça.

Ela redefine papéis, aproxima o cidadão do direito e implanta um novo pacto entre jurisdição e cidadania.

Para que esse modelo se consolide com legitimidade, é essencial que haja:

  • transparência e fiscalização efetiva das serventias;
  • formação técnica contínua de notários, registradores e advogados;
  • garantia de gratuidade para os hipossuficientes;
  • integração tecnológica entre os sistemas judiciais e extrajudiciais.

O fortalecimento dos cartórios não é um retrocesso burocrático é o avanço natural de uma justiça mais inteligente, acessível e preventiva.

E cabe à advocacia cível assumir papel de liderança nesse processo, atuando como guardiã da legalidade e promotora da paz social.

Referências bibliográficas

BRASIL. Lei nº 11.441/2007. Dispõe sobre inventário, partilha, separação e divórcio extrajudiciais.

BRASIL. Lei nº 13.465/2017. Dispõe sobre regularização fundiária e usucapião extrajudicial.

BRASIL. Lei nº 14.382/2022. Institui o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp).

BRASIL. Lei nº 14.711/2023. Marco Legal das Garantias.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 35/2007. Disciplina os atos notariais e registrais.

CNJ. Justiça em Números 2024. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2024.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 2023 (ed. comemorativa).

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno. O futuro da jurisdição e o papel das serventias extrajudiciais. Revista de Processo, v. 332, 2024.

MENEZES CORDEIRO, António. Função Notarial e Segurança Jurídica. Coimbra: Almedina, 2022.

CENEVIVA, Walter. Direito Notarial e Registral. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2024.

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