1. Introdução: a crise do modelo jurisdicional clássico
O sistema judicial brasileiro vive, há décadas, uma crise de eficiência. O modelo tradicional, fundamentado em uma jurisdição estatal exclusiva, já não consegue responder adequadamente à crescente complexidade das relações sociais e econômicas.
De acordo com o relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil possui mais de 80 milhões de processos ativos, o que corresponde a aproximadamente quatro ações judiciais para cada grupo de dez habitantes. A consequência é a conhecida morosidade, que compromete o princípio constitucional da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF/88) e enfraquece a confiança social na justiça.
Perante esse panorama, emerge um novo paradigma: o da desjudicialização, movimento que sugere a transferência de determinadas atividades de natureza jurídica para a esfera extrajudicial, com a atuação dos tabeliães e registradores sob fiscalização do Poder Judiciário.
Mais do que um expediente de gestão, a desjudicialização simula uma transformação estrutural da forma como o Estado administra conflitos e formaliza direitos.
2. Raízes e evolução normativa da desjudicialização
O processo de desjudicialização no Brasil não nasceu por acaso. Ele reflete uma tendência global de racionalização da justiça, inspirada em experiências de países como Espanha, Portugal e Itália, que desde os anos 1990 vêm adotando soluções extrajudiciais para questões consensuais.
No contexto brasileiro, o marco inicial foi a Lei nº 11.441/2007, que inovou ao permitir inventários, partilhas, separações e divórcios consensuais em cartório, sem intervenção judicial. Essa lei representou uma ruptura cultural: reconheceu que a formalização de certos atos jurídicos não depende do exercício do poder jurisdicional, mas de um controle de legalidade técnico e responsável.
Posteriormente, o movimento se expandiu:
além de provimentos e resoluções do CNJ, que vêm concretizando o papel das serventias como agentes de desburocratização e de cidadania.
Esses diplomas normativos concorrem para um mesmo propósito: fortalecer a via extrajudicial como instrumento de concretização da justiça.
3. Cartórios como instrumentos de efetividade e pacificação social
Os cartórios, de acordo com a tradição, vistos como órgãos formais e burocráticos, passaram a ser reconhecidos como parceiros estratégicos do sistema de justiça.
O tabelião e o registrador exercem função pública delegada, conferindo fé pública, autenticidade e segurança jurídica aos atos praticados.
Ao assumirem atribuições antes exclusivas do Judiciário, as serventias extrajudiciais contribuem para:
O jurista português António Menezes Cordeiro sustenta que a “justiça eficiente não é aquela que julga mais, mas a que evita que se precise julgar”.
Sob essa ótica, os cartórios se tornam instrumentos de pacificação social preventiva, capazes de concretizar direitos sem a necessidade de litígio.
4. A advocacia e o novo protagonismo extrajudicial
Longe de representar intimidação, a desjudicialização expande o campo de atuação da advocacia civil e consultiva.
O advogado, figura indispensável à administração da justiça (art. 133 da CF/88), mantém protagonismo nos atos notariais não apenas por previsão normativa, como no art. 8º da Resolução nº 35/2007 do CNJ, mas também por necessidade prática e ética.
A nova advocacia deve atuar como ponte entre o cidadão e o cartório, garantindo que o cliente compreenda as implicações jurídicas do ato e assegurando o respeito à legalidade e à vontade das partes.
Trata-se de um perfil profissional mais resolutivo e preventivo, voltado à pacificação e à eficiência, sem perder o caráter técnico e humanista da profissão.
Nesse sentido, a desjudicialização não é uma ameaça ao advogado, mas uma janela de oportunidades para quem domina o direito material e o procedimento extrajudicial.
5. Críticas e desafios do modelo desjudicializado
A desjudicialização, todavia, não é liberada de críticas.
Alguns doutrinadores, como Fredie Didier Jr., alertam para o risco de “privatização da justiça”, caso a transferência de funções públicas para delegatários privados ocorra sem controle e sem políticas de acesso gratuito.
Entre os principais desafios destacam-se:
A desjudicialização não pode servir apenas como instrumento de descongestionamento do Judiciário, mas como mecanismo efetivo de democratização do acesso à justiça, sob pena de substituir a morosidade estatal por um sistema elitizado e restritivo.
6. A desjudicialização como expressão do acesso à justiça contemporâneo
O acesso à justiça, na visão clássica de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, não se resume ao ingresso no Poder Judiciário, mas ao acesso a uma solução justa, adequada e tempestiva.
Sob essa perspectiva, a desjudicialização é uma das expressões mais modernas desse princípio, pois amplia o espectro de caminhos para o exercício de direitos.
Os cartórios, ao oferecerem vias rápidas e seguras para a formalização de negócios jurídicos, materializam o direito fundamental à efetividade, sem eliminar a tutela jurisdicional, que permanece como instância de controle e revisão.
O que se observa, portanto, é uma coexistência complementar entre jurisdição e desjudicialização não uma competição.
Enquanto o Judiciário se concentra nas causas que exigem interpretação, prova e conflito, a via extrajudicial resolve o que é consensual, técnico e documental.
7. Conclusão: um novo pacto entre jurisdição e cidadania
A desjudicialização é mais do que uma tendência legislativa é um movimento cultural e institucional de modernização da justiça.
Ela redefine papéis, aproxima o cidadão do direito e implanta um novo pacto entre jurisdição e cidadania.
Para que esse modelo se consolide com legitimidade, é essencial que haja:
O fortalecimento dos cartórios não é um retrocesso burocrático é o avanço natural de uma justiça mais inteligente, acessível e preventiva.
E cabe à advocacia cível assumir papel de liderança nesse processo, atuando como guardiã da legalidade e promotora da paz social.
Referências bibliográficas
BRASIL. Lei nº 11.441/2007. Dispõe sobre inventário, partilha, separação e divórcio extrajudiciais.
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BRASIL. Lei nº 14.382/2022. Institui o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp).
BRASIL. Lei nº 14.711/2023. Marco Legal das Garantias.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 35/2007. Disciplina os atos notariais e registrais.
CNJ. Justiça em Números 2024. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2024.
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DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno. O futuro da jurisdição e o papel das serventias extrajudiciais. Revista de Processo, v. 332, 2024.
MENEZES CORDEIRO, António. Função Notarial e Segurança Jurídica. Coimbra: Almedina, 2022.
CENEVIVA, Walter. Direito Notarial e Registral. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2024.
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