O anteprojeto de reforma do Código Civil propõe a exclusão do cônjuge e do companheiro do rol de herdeiros necessários, promovendo uma ruptura com o modelo sucessório vigente, que até então prioriza a proteção automática da conjugalidade. Tal proposta representa um retorno às bases do modelo liberal instituído pelo Código Civil de 1916, em que prevalecia a autonomia patrimonial em detrimento da solidariedade familiar.
A proposta de reforma legislativa entregue ao Senado Federal em abril de 2024, ao excluir o cônjuge do rol de herdeiros necessários, representa mais que uma modificação técnica: trata-se de uma inflexão profunda no modelo normativo de proteção familiar. Ao deslocar a conjugalidade do plano da ordem pública para o domínio da autonomia privada, o legislador moderniza o Direito Sucessório, mas também impõe novos desafios éticos, sociais e jurídicos.
Desde o Código de 1916 — marcado pelo patriarcalismo da Primeira República — a sucessão hereditária operava como instrumento de preservação da família. O patrimônio era concebido como um bem coletivo, cuja transmissão visava garantir a continuidade da “família legítima” como célula econômica e moral.
Nesse contexto, o cônjuge sempre teve seu lugar entre os herdeiros necessários, independentemente do regime de bens. O Código de 2002 manteve essa estrutura, mas abriu espaço para uma leitura mais subjetiva da conjugalidade, em diálogo com os princípios da dignidade e da autonomia privada.
O anteprojeto propõe que apenas os descendentes e ascendentes componham o rol de herdeiros necessários. Ao fazê-lo, desloca a proteção do cônjuge da ordem pública para o campo da deliberação privada: a proteção deixa de ser presumida, e passa a depender de testamento, pacto ou planejamento sucessório.
Trata-se, sem dúvida, de medida coerente com um Direito Civil contemporâneo, mais contratualizado e menos paternalista. A liberdade de testar passa a prevalecer sobre a presunção de afeto, e o testador recupera protagonismo sobre a destinação de seu patrimônio.
Se a nova proposta fortalece a autonomia, também exige mais maturidade jurídica do cidadão. Será preciso pensar o casamento não apenas como afeto, mas como contrato com implicações patrimoniais. Será necessário planejar, pactuar, testar — e, sobretudo, informar-se.
A liberdade só se realiza plenamente quando acompanhada de responsabilidade. E a responsabilidade jurídica implica saber as consequências da omissão. Nesse novo modelo, o silêncio pode significar exclusão.
Há, contudo, riscos relevantes. Em especial, para mulheres de gerações anteriores, que abdicaram da vida produtiva para se dedicarem à família e cujo nome raramente constava dos registros patrimoniais. A exclusão do cônjuge da legítima, sem salvaguardas eficazes, pode deixá-las em situação de desamparo.
A proposta prevê usufruto judicial em caso de necessidade — solução transitória e condicional, que não elimina o problema. O legislador deve considerar não apenas o afeto presumido, mas também a história das desigualdades materiais que ainda marcam o casamento tradicional.
Ao excluir o cônjuge do rol de herdeiros necessários, o anteprojeto afirma a liberdade patrimonial como valor central do novo Direito das Sucessões. Trata-se de mudança com potencial emancipatório, desde que acompanhada de pedagogia jurídica e instrumentos de proteção à vulnerabilidade.
A herança da liberdade exige escolhas. É o testador, agora, quem deve proteger quem ama. O casamento não mais garante herança — mas o amor pode, se reconhecido em vida, continuar sendo legado.
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