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A história ocidental nos mostra: Advogados tornaram-se filósofos

Postado em 18 de maio de 2025 Por João Maurício Adeodato Professor da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e da Universidade Nove de Julho (Uninove), Ex-Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), Livre-Docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Pesquisador 1-A do CNPq e Professor Convidado da Fundação Alexander von Humboldt.

Dizer quando nasceu a filosofia depende de definir o que se entende por filosofia. Sempre digo que a definição deve partir dos problemas comuns entre os filósofos, jamais das soluções. E por que? Porque cada um apresenta sua solução, é impossível examiná-las todas. E esses problemas são três apenas: primeiro, conhecer os eventos, separar uns dos outros; segundo, avaliar os eventos eticamente, valorá-los; terceiro, como abordar os eventos, a atitude é descritivo-empírica ou prescritivo-normativa? Trasladando para a filosofia do direito: primeiro, como distinguir o que é do que não é direito; segundo, como separar o bom do mau direito; terceiro, que atitude metodológica seguir.

Os registros históricos existentes apontam que essas questões surgiram na Grécia há cerca de 2.700 anos e os registros mais antigos remetem a Thales de Mileto, considerado o primeiro dos filósofos. Tais filósofos são hoje conhecidos como pré-socráticos, devido à importância posterior de Sócrates (com Platão e Aristóteles), ou, mais precisamente, filósofos da natureza, pois seus objetivos eram descobrir a verdade sobre o universo, sem atenção especial para com o ser humano.

Pouco mais de um século depois, vez que as datas exatas não são conhecidas, uma maneira nova de pensar difunde-se na Sicília, sem relação direta com a filosofia da natureza: a retórica. Os primeiros retóricos eram advogados e nasceram das necessidades de a nova democracia emergente determinar a quem pertenciam os bens expropriados durante a longa tirania anterior.[1]

Desses criadores da advocacia profissional nasceu um novo tipo de filosofia, que colocava o ser humano no centro de suas investigações: a sofística tem entre seus primeiros representantes a figura de Gorgias, embaixador da Sicília em Atenas, certamente educado na tradição de Córax. Os advogados tornam-se filósofos incorporando três ideias básicas revolucionárias: a primeira, o já mencionado humanismo; a segunda, o ceticismo sobre a verdade que os filósofos da natureza procuravam; e, finalmente, o historicismo, mostrando que tudo o que é humano se modifica e de permanente, só a mudança.

O episódio a seguir é relatado por fontes diversas e dele só sabemos pelos relatos e estudos sobre retórica cultivada pelos bizantinos, no Império Romano do Oriente.

O caso de Euathlos é citado em relação a Protágoras e em relação a Tísias e Córax.[2] Os dados de partida são os seguintes: Euathlos (ou Tísias, na outra versão) queria aprender retórica judicial e contratou com o mestre Protágoras (ou Córax, na outra versão) que lhe pagaria os honorários assim que vencesse sua primeira causa.

Terminado o curso, o tempo foi passando e o aluno não participou de qualquer causa. Aí o mestre resolveu processá-lo, com o fito de receber seus honorários. No tribunal, argumentou que, se vencesse o processo, o aluno teria que pagar, pois este era o próprio conteúdo da queixa. Se o mestre perdesse, o aluno pagaria da mesma maneira, pois o contrato determina que pague assim que vencer sua primeira causa.

O aluno argumentou que, se ganhasse o processo não teria que pagá-lo, pois o pagamento é o objeto da ação e, ao vencê-la, foi reconhecido judicialmente seu direito de não pagar, que prevaleceria sobre o contrato. Se perdesse, da mesma forma não teria que pagar, pois o contrato diz que só tem que pagar quando vencer. Pode-se argumentar que o contrato só diz respeito a uma causa interposta pelo aluno como sujeito ativo ou autor e não uma na qual ele seja sujeito passivo ou réu, por isso a causa deve ser decidida a seu favor, que não teria nada a pagar agora. Mas o argumento contrário é igualmente forte, caracterizando a isostenia (“igual força”) dos argumentos antagônicos: o contrato silencia sobre o aluno ser autor ou réu, então não cabe fazer essa distinção no caso, argumento depois consagrado no brocardo Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus (onde a lei não distingue, não devemos distinguir).

A conclusão é que a “lógica” não consegue resolver o problema do conhecimento (determinar o significado mais adequado) a partir dos fatos (juridicamente relevantes) e do texto do contrato ou da lei (significantes). Serão necessárias escolhas interpretativas, com base em parâmetros de alguma hermenêutica, e essas escolhas dependem dos participantes e de um contexto com um sem-número de fatores. A experiência forense herdada pelos primeiros sofistas cria a tradição filosófica retórica, sempre minoritária, mas sempre presente.

Essa história antiga é um curioso exemplo de conflitos que não podem ter garantia prévia de solução e só a experiência do caso concreto pode ensejar uma conclusão, a qual será avaliada também de forma única.


[1] COLE, Thomas. Who was Corax? Illinois Classical Studies, vol. 16, No. 1/2 (Spring/Fall 1991). Urbana–Champaign: University of Illinois Press, 1991.

[2] DIEMER, Maximilian; SASDELLI, Diogo. Die Rolle logischer Argumente im Recht analysiert am Beispiel des Sophismus des Euathlos, in BANGE, Mirko (Hrsg.), Auf dem Weg zu einem modernen Rechtsstaat. Tagungsband liberale Rechtstagung, Göttingen 2021.

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