A liberdade de expressão é, sem dúvida, um dos pilares do Estado Democrático de Direito. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou este direito como cláusula essencial à dignidade da pessoa humana, à cidadania e à vida política. Contudo, a ideia de que a liberdade de expressão é um direito absoluto não se sustenta no constitucionalismo contemporâneo.
O exercício das liberdades fundamentais pressupõe responsabilidades e limites, sob pena de transformar-se em instrumento de violação de outros direitos igualmente protegidos. Partindo da premissa de que “direitos pressupõem deveres”, este artigo busca analisar a liberdade de expressão sob a ótica constitucional, explorando seus fundamentos, limites e desafios, sobretudo diante da realidade digital e da expansão das fake news.
2. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
O artigo 5º da Constituição Federal prevê, em seus incisos IV, IX e XIV, garantias ligadas à livre manifestação do pensamento, à expressão artística, científica e jornalística, bem como ao acesso à informação. Já o artigo 220 reforça que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.
A doutrina constitucional reconhece que a liberdade de expressão cumpre múltiplas funções: (i) busca pela verdade em sociedades plurais, (ii) exposição e contenção de abusos de poder, (iii) promoção de opiniões independentes, (iv) desenvolvimento da personalidade individual e (v) fortalecimento da tolerância.
Todavia, esses fundamentos não afastam a necessidade de responsabilização jurídica por eventuais abusos. Nesse sentido, a vedação ao anonimato (art. 5º, IV, CF) surge como contrapeso indispensável: garante-se a livre manifestação, mas com a identificação do autor para possibilitar eventual responsabilização.
3. O PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE: DIREITOS E DEVERES
A lógica constitucional repousa no princípio da responsabilidade: todo direito fundamental possui uma dimensão subjetiva (garantia individual) e uma dimensão objetiva (dever de respeitar direitos alheios).
Assim, quem se manifesta no espaço público deve arcar com as consequências de suas palavras, nos termos do Código Penal e da legislação cível, especialmente em casos de calúnia, difamação, injúria, incitação ao crime e apologia de crimes.
A vedação ao anonimato reforça essa concepção. O direito de se expressar é assegurado, mas não pode servir de escudo para agressões ilícitas, discursos de ódio ou ataques à honra e dignidade de terceiros. Direitos fundamentais não são instrumentos de impunidade.
4. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NÃO É ABSOLUTA
A doutrina constitucional é pacífica em reconhecer que nenhum direito fundamental é absoluto. A própria Constituição estabelece restrições explícitas, seja pela proteção de outros direitos fundamentais, seja pela necessidade de manutenção da ordem pública e da segurança nacional.
O Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente afirmado que a liberdade de expressão deve ser harmonizada com outros valores constitucionais, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), a honra, a intimidade e a privacidade (art. 5º, X, CF).
Esse equilíbrio é alcançado por meio da ponderação de princípios, método hermenêutico que permite ao intérprete compatibilizar colisões de direitos fundamentais sem a supremacia absoluta de um sobre o outro.
5. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O DIREITO À INFORMAÇÃO
O direito à informação, assegurado pelo artigo 5º, XIV, CF, e pelo artigo 220, é corolário da liberdade de expressão. No entanto, seu exercício também está submetido à ética da responsabilidade.
A proteção ao sigilo da fonte jornalística constitui salvaguarda democrática, mas não pode ser confundida com irresponsabilidade informacional. Notícias falsas, deliberadamente fabricadas (fake news), distorcem o processo democrático e violam o direito coletivo à informação fidedigna.
Por isso, a vedação ao anonimato adquire importância renovada no contexto contemporâneo: sem identificação do emissor, a responsabilização por fake news torna-se praticamente inviável.
6. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO DIREITO DIGITAL
A revolução digital ampliou os canais de expressão, mas também potencializou seus riscos. Plataformas digitais permitem circulação massiva de informações em velocidade exponencial, ao mesmo tempo em que possibilitam práticas de desinformação e discursos ilícitos amparados pelo aparente anonimato.
O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) reafirma a liberdade de expressão no ambiente digital, mas igualmente estabelece deveres de guarda de registros e mecanismos de responsabilização. Essa legislação incorporou para o espaço virtual a mesma lógica constitucional: direitos digitais pressupõem deveres digitais.
Nesse cenário, a regulação do uso de redes sociais — em especial no tocante à desinformação e ao uso indevido do anonimato — torna-se tema inevitável. O desafio consiste em equilibrar o combate a abusos sem instaurar censura prévia, respeitando a essência democrática do direito fundamental.
7. O ANONIMATO COMO DESAFIO JURÍDICO
Historicamente, o anonimato sempre foi visto como ameaça à accountability democrática. A Constituição de 1988, ao vedá-lo expressamente, reconheceu que a liberdade exige coragem cívica e responsabilidade pessoal.
No ambiente digital, entretanto, a distinção entre anonimato e pseudônimo ganha relevo. Enquanto o pseudônimo pode ter função legítima (proteger a identidade de artistas, escritores ou denunciantes em contextos de risco), o anonimato absoluto subtrai a possibilidade de responsabilização.
Na prática, isso se traduz em ataques anônimos, linchamentos virtuais e disseminação de fake news sem possibilidade de identificar os responsáveis. O direito, nesse ponto, não pode tolerar que a liberdade de expressão se converta em salvo-conduto para ilícitos.
8. CONCLUSÃO
A liberdade de expressão, embora central na arquitetura constitucional brasileira, não pode ser interpretada como direito absoluto. Sua proteção encontra limites nos direitos de terceiros, na preservação da ordem pública e na necessidade de responsabilização por abusos.
Partindo da premissa de que “direitos pressupõem deveres”, observa-se que a vedação ao anonimato e a responsabilização por excessos não enfraquecem a liberdade de expressão, mas a fortalecem, pois garantem que seja exercida de maneira ética, democrática e responsável.
No ambiente digital, o desafio é ainda maior: garantir que a internet não se torne uma “terra sem lei” e, ao mesmo tempo, evitar a censura. O caminho está em reforçar mecanismos de identificação e responsabilização, promovendo uma liberdade de expressão comprometida com a verdade, a justiça e a democracia.
Assim, pode-se afirmar que a verdadeira liberdade de expressão só se realiza quando acompanhada do dever correlato de respeitar a dignidade humana e os demais direitos fundamentais.
REFERÊNCIAS
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
BRASIL. Marco Civil da Internet. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014.
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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 36. ed. São Paulo: Atlas, 2021.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente consignadas na Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2010.
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