Maria Geovana Andrade de Paula

A repatriação em cenários de guerra: Entre o dever estatal e a missão humanitária

Postado em 15 de outubro de 2025 Por Maria Geovana Andrade de Paula Graduanda em direito pela FICR (Faculdade católica imaculada conceição do Recife)

Em tempos de instabilidade geopolítica, guerras e crises humanitárias, a proteção ao cidadão no exterior ganha relevância no debate jurídico e político. A repatriação de nacionais em áreas de risco não é apenas uma medida administrativa, mas expressão concreta do dever estatal de resguardar direitos fundamentais. Em paralelo, organizações humanitárias internacionais, como MSF (Médicos sem fronteiras), oferecem suporte essencial em cenários de conflito, garantindo atendimento à população civil em situações em que a presença estatal é limitada. Embora distintos, esses papéis se complementam no plano ético e jurídico, cada qual em sua esfera de legitimidade.

A Constituição Federal de 1988 estabelece no artigo 4º, inciso II, a prevalência dos direitos humanos como princípio das relações internacionais do Brasil. Esse dispositivo vincula o Estado à proteção da vida e da dignidade de seus cidadãos, independentemente de fronteiras. No artigo 5º, caput, reforça-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade e à segurança, pilares que embasam a atuação consular e a obrigação de repatriação.

No plano infraconstitucional, a Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração) assegura ao brasileiro em situação de vulnerabilidade no exterior o direito à proteção estatal, regulamentada pelo Decreto nº 9.199/2017, que detalha mecanismos de assistência consular. No campo internacional, a convenção de Genebra de 1949 constitui referência obrigatória, ao estabelecer parâmetros de proteção a civis em conflitos armados, sendo o Direito Internacional Humanitário um alicerce tanto para missões estatais quanto para intervenções humanitárias.

A FAB (Força Aérea Brasileira) desempenha papel decisivo em operações de repatriação. Com estrutura logística e capacidade de operar em cenários hostis, a FAB já protagonizou diversas missões de resgate em zonas de guerra e catástrofes. Em 2010, após o terremoto no Haiti, aeronaves militares transportaram brasileiros em segurança de Porto Príncipe a Brasília. Mais recentemente, em 2022, durante a guerra na Ucrânia, aviões da FAB foram mobilizados para retirar nacionais de áreas de conflito, garantindo retorno seguro em meio ao caos humanitário. Em 2023, com a escalada de violência em Israel e na Faixa de Gaza, novas missões de resgate foram executadas com rapidez, evidenciando o preparo da instituição.

Essas ações têm natureza estatal e soberana, fundamentadas no dever jurídico de proteção aos nacionais. A FAB não atua apenas como transporte: fornece suporte médico a bordo, assegura condições mínimas de segurança e preserva a integridade física e psicológica dos repatriados. Cada missão reafirma o vínculo jurídico-político entre Estado e cidadão, mesmo além das fronteiras territoriais.

Diferentemente do Estado, os Médicos Sem Fronteiras não possuem função de repatriação. Sua missão é estritamente humanitária e independente, pautada na neutralidade e imparcialidade. Criada em 1971, a organização atua em guerras, epidemias e catástrofes, oferecendo cuidados médicos onde o acesso à saúde é inexistente.

Nos últimos anos, os MSF estiveram presentes em cenários emblemáticos, como o conflito sírio, a guerra no Sudão e a epidemia de ebola na África Ocidental. Sua atuação garante não apenas atendimento emergencial, mas também um espaço mínimo de dignidade em meio ao colapso estatal. No âmbito jurídico, suas ações encontram respaldo no Direito Internacional Humanitário, sobretudo no princípio da proteção aos civis em situações de violência generalizada.

Ao contrário da FAB, os MSF não respondem a ordens governamentais. Sua legitimidade decorre da confiança internacional e da independência frente a disputas políticas. O foco é salvar vidas, oferecer assistência médica e denunciar violações de direitos humanos, reforçando a noção de que a proteção à pessoa transcende as fronteiras nacionais.

É fundamental distinguir os papéis. A FAB atua como braço operacional do Estado brasileiro, com respaldo constitucional e legal, executando um dever que decorre diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF). Já os MSF exercem uma missão ética e humanitária, de caráter supranacional, que não substitui o Estado, mas supre lacunas onde este não consegue atuar.

Não há sobreposição de funções, mas coexistência de esforços em defesa da vida. Enquanto o Estado responde a uma obrigação jurídica de proteger seus nacionais, os MSF respondem a um imperativo ético, de solidariedade internacional. Ambos, contudo, contribuem para a concretização de um sistema internacional orientado pela centralidade da pessoa humana.

Em cenários de guerra, a repatriação não é mero ato administrativo: trata-se de uma política pública de proteção, expressão da soberania e do compromisso do Brasil com seus cidadãos. A atuação da FAB simboliza a presença efetiva do Estado, assegurando que nenhum brasileiro seja abandonado em zonas de risco. Por sua vez, a missão dos Médicos Sem Fronteiras demonstra que a dignidade humana deve ser defendida universalmente, ainda que independentemente da ação estatal.

O diálogo indireto entre essas duas esferas – a estatal e a humanitária – reafirma que a vida humana é valor supremo, irrenunciável e inalienável. Em um mundo marcado por guerras, deslocamentos forçados e crises humanitárias, é necessário fortalecer tanto os mecanismos jurídicos de proteção do Estado quanto as iniciativas humanitárias internacionais. Afinal, a repatriação é dever jurídico, mas a solidariedade é dever ético da humanidade.

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