Em março de 1989, o Brasil parou diante da televisão para descobrir quem havia matado Odete Roitman, a icônica empresária interpretada por Beatriz Segall na novela Vale Tudo. O mistério, cuidadosamente cultivado ao longo dos capítulos finais, transformou-se em um dos maiores acontecimentos da história da teledramaturgia brasileira, ao ponto de se tornar referência cultural para além da ficção. Décadas depois, na reprise de 2025, o enigma ressurge com igual força, agora na pele de Débora Bloch, o público, novamente, se vê intrigado com a pergunta que atravessou gerações. Afinal de contas, quem matou Odete Roitman?
No rol de suspeitos figuram personagens do próprio círculo familiar da vítima: Heleninha, sua filha, e Celina, sua irmã. A possibilidade de que o crime tenha sido cometido por um herdeiro, ainda que no universo ficcional, faz acender uma indagação genuinamente jurídica: quais seriam as repercussões civis da prática de um crime doloso contra a vida do autor da herança? A ficção, nesse ponto, abre espaço para uma reflexão sobre os mecanismos de exclusão sucessória previstos no ordenamento brasileiro, especialmente a indignidade e a deserdação, institutos que, embora técnicos, carregam um substrato ético e moral inegável.
Se, na novela, o assassinato de Odete Roitman é o clímax de uma trama de poder, dinheiro e ressentimentos familiares, no plano jurídico, a mesma hipótese suscita uma discussão densa sobre o modo como o Direito das Sucessões lida com a ruptura dos vínculos de afeto e lealdade que tradicionalmente legitimam a herança. A exclusão sucessória, nesse sentido, revela-se como uma resposta normativa à violação mais extrema desses laços – o atentado à vida do de cujus.
Assim, inspirando-se no mistério que continua a fascinar o público em 2025, este ensaio se propõe a refletir sobre as formas de exclusão do herdeiro, necessário ou não, e sobre o papel da moral e da justiça nas fronteiras entre o patrimônio, o afeto e a morte, para ao final dar seu palpite sobre a autoria – e as consequências – do assassinato de Odete. Ao fim e ao cabo, será que vale tudo?
O Direito das Sucessões repousa sobre uma tensão permanente entre o afeto e o patrimônio. Herdar, antes de ser um fenômeno econômico, é uma forma de continuidade simbólica: a transmissão dos bens não apenas preserva o acervo material do falecido, mas também reconhece a persistência dos laços de confiança, cuidado e solidariedade que existiram em vida. A preocupação com a herança não interessa apenas ao direito privado, pois ao Estado também interessa que o patrimônio permaneça com um titular para que dele possa cobrar os tributos porventura incidentes. Ao resguardar o direito à herança e tê-lo como direito fundamental (art. 5º, inc. XXX, da CRFB), o Estado protege a família e a própria economia[1], pois os indivíduos não teriam interesse em poupar e produzir sabendo que sua família não seria alvo do esforço quando na sua passagem.
Entretanto, não há como se desligar da roupagem ética que agasalha a herança, que é, em última análise, a continuação de um complexo de relações patrimoniais e existenciais decorrentes, na maioria das vezes, de uma relação pautada na solidariedade, seja ela decorrente ou não da filiação, mas nem por isso deixa de ser solidariedade. Não por acaso, Paulo Lôbo aponta negativamente a tradição dos cursos jurídicos em relegar o direito das sucessões a um mero estudo sobre as formas de transmissão patrimonial post mortem, como se não existisse uma função social (até metafísica, poderia se dizer) no direito sucessório:
É pertinente, pois, a crítica doutrinária à concepção corrente do direito das sucessões, inclusive como difundida no ensino jurídico, de ser um conjunto de institutos, princípios e regras responsáveis pela transmissão da propriedade, mas despreocupada em concretizar a garantia do direito de propriedade que cumpre a sua função social, isto é, que desenvolve o trabalho e promove condições mínimas de vida à população.[2]
Não se pode interpretar o direito sucessório como mero vetor de transmissão patrimonial sem analisar o que precede a herança: o desejo de que aquele patrimônio tenha um titular, ainda que esse desejo venha do Estado, se estivermos a tratar da sucessão legítima. Até a própria sucessão legítima resguarda um desejo individual de continuidade da prosperidade familiar ao garantir que o patrimônio do falecido não sairá de seu núcleo próximo.
A exclusão sucessória surge, assim, como mecanismo de ruptura dessa lógica de continuidade, uma reação do ordenamento jurídico à quebra radical dos deveres ético-afetivos que legitimam o direito à herança.
A base axiológica da exclusão não é punitiva, mas moralmente restauradora. O sistema sucessório brasileiro não castiga o herdeiro indigno ou deserdado por mera retribuição, mas o afasta da sucessão por reconhecer que sua conduta rompeu o vínculo de lealdade que justifica o chamamento hereditário. O princípio da solidariedade familiar, de matiz constitucional (art. 3º, I, e art. 226 da Constituição da República), impregna a sucessão com um valor ético que transcende a lógica patrimonial.
Sob esse prisma, o herdeiro é chamado à sucessão não apenas por sua posição legal, mas pela dignidade de sua conduta. Quando atenta contra a vida, a honra ou a liberdade do autor da herança, ele deslegitima o fundamento ético que o investiria na condição de sucessor. A exclusão, portanto, funciona como uma espécie de sanção moral de ordem civil, que reafirma o caráter fiduciário da herança: quem trai a confiança da família não pode ser beneficiário do legado.
Apesar de disciplinadas em campos distintos do direito sucessório, existem tão somente duas maneiras de se excluir um herdeiro: indignidade e deserdação, operando na sucessão legítima e testamentária, respectivamente. A similaridade não deve ser tida como igualdade, pois, para além de operarem em ramos sucessórios distintos, também são aplicáveis a pessoas distintas.
A iniciar pelo art. 1.814 do Código Civil, que trata da indignidade (e por derradeiro, à sucessão legítima), deve-se atentar para a sua incidência também na sucessão testamentária por expressa disposição dos arts. 1.962 e 1.963 do Código Civil. A indignidade como hoje consta no rol dos incisos do art. 1.814 possui origem no direito romano, muito embora dele tenha se diferenciado. Em Roma, sobretudo pela concepção do paterfamilias e a necessidade de perpetuação da linhagem, observou-se nítida predileção pela sucessão testamentária como forma de evitar a dissipação da tradição e da religião do pater entre parentes não componentes do núcleo familiar diretamente sob sua influência.
No entanto, bem aponta Zanini[3] sobre a abusividade no uso da exclusão dos herdeiros testamentários via exheredatio, o que fez surgir a figura dos herdeiros necessários, um grupo de pessoas que por expressa dicção do legislador não poderiam ser afastados da sucessão apenas pela vontade do testador, mas apenas pelas hipóteses de indignidade, circunstâncias previstas pelo legislador que tornam incompatíveis o princípio da solidariedade que norteia a sucessão e o ato perpetrado pelo pretenso herdeiro. Dentre as hipóteses, até então taxativas conforme entendimento jurisprudencial, estão o cometimento de homicídio doloso e crime contra a honra do de cujus, seu cônjuge, ascendente ou descendente.
Nesse sentido, a indignidade cumpre a função social da herança ao prever consequências para atos incompatíveis com a boa-fé e com os deveres de gratidão e respeito familiar.
No entanto, considerando que a indignidade se processará apenas após a abertura da sucessão, o seu reconhecimento dependerá de sentença judicial, proposta por qualquer herdeiro ou interessado (geralmente ação que correrá paralelamente ao inventário), e produzirá efeitos ex tunc: o indigno é tratado como se nunca houvesse sido chamado à sucessão, podendo eventualmente seus descendentes serem chamados à sucessão para exercerem o direito de representação, haja vista que, sendo uma pena, não ultrapassa a pessoa do condenado.
Contudo, apesar da tradicional necessidade de pronunciamento da indignidade por via judicial própria, o sistema foi recentemente alterado pela Lei nº 14.661/2023, que inseriu o art. 1.815-A no Código Civil, conferindo automação à exclusão sucessória nos casos em que houver sentença penal condenatória transitada em julgado. De acordo com o novo dispositivo, o trânsito em julgado da condenação penal, nas hipóteses do art. 1.814, acarreta a imediata exclusão do herdeiro ou legatário indigno, independentemente da propositura da ação cível autônoma prevista no art. 1.815.
Essa inovação representa uma mudança de paradigma: a indignidade, antes dependente de iniciativa dos herdeiros e de apreciação judicial própria, passa a operar de pleno direito quando há condenação criminal definitiva. O objetivo declarado do legislador foi o de promover celeridade e coerência sistêmica, evitando duplicidade de processos e reforçando a harmonia entre os ramos penal e civil.
Contudo, o sistema preserva uma válvula de perdão: o art. 1.818 permite que o ofendido, em vida, reabilite o herdeiro, restituindo-lhe a dignidade sucessória. A regra, portanto, revela a ambivalência moral do instituto – entre a punição e o perdão, garantindo o espaço devido à autonomia da vontade dentro do âmbito sucessório.
Se a indignidade traduz a reprovação objetiva do ordenamento diante de condutas que ferem a moral familiar, a deserdação manifesta a reprovação subjetiva do próprio autor da herança. Enquanto na indignidade o juízo ético é proferido pelo Estado, por meio do Poder Judiciário, na deserdação ele nasce do foro íntimo do testador, que, em vida, nega ao herdeiro a legitimidade moral de sucedê-lo.
O Código Civil, nos arts. 1.961 a 1.965, confere à deserdação natureza volitiva e testamentária, reservada aos herdeiros necessários e condicionada a causas expressas em lei. O testador, ao elaborar o testamento, deve declarar a causa da deserdação – sempre fundada em comportamento grave, como ofensa física, injúria grave, relações ilícitas com o cônjuge do ofendido ou abandono – e caberá ao herdeiro deserdado, se desejar, impugnar judicialmente a veracidade dos fatos alegados. Diferentemente da indignidade, a deserdação não deriva da condenação penal ou de uma automação jurídica, mas da autonomia privada do ofendido, que exerce o direito de excluir quem o ofendeu com base em sua consciência moral.
Essa distinção é mais do que técnica: é ontológica. A deserdação preserva o caráter humano e pessoal da exclusão sucessória, reconhecendo que a herança é, em última análise, um ato de confiança. O testador, ao deserdar, não busca punir, mas reafirmar a coerência entre o afeto e a transmissão patrimonial. A lei, ao exigir que a causa seja declarada e comprovada, atua apenas como filtro de racionalidade, não como substituto da vontade.
Nesse aspecto, o contraste com o novo art. 1.815-A é eloquente. A indignidade, agora automática em virtude da condenação penal, passa a ser um efeito reflexo de um juízo estatal. A deserdação, ao contrário, resiste à lógica da automatização, reafirmando o protagonismo da autonomia privada na estrutura da sucessão. O legislador, ao passo que reforça a rigidez da indignidade, preserva, na deserdação, o espaço de liberdade ética do indivíduo, reconhecendo que o testador pode perdoar, punir ou silenciar – e que, em qualquer dessas opções, há uma dimensão moral que o Estado não deve suprimir.
De certo modo, a deserdação simboliza a contraface humanista da indignidade. Nela, o Direito das Sucessões volta-se à subjetividade, à experiência íntima das relações familiares e à capacidade do indivíduo de atribuir sentido à herança. É o testador, e não o juiz, quem decide se a ruptura afetiva deve se projetar no pós-morte.
Retomemos a cena: a poderosa empresária Odete Roitman, símbolo máximo do poder e da arrogância, jaz morta em seu luxuoso apartamento, vítima de um disparo à queima-roupa. No rol dos suspeitos, como todo o Brasil soube em 1989 e redescobriu na reprise de 2025, figuram dois nomes do próprio sangue: Heleninha, sua filha, e Celina, sua irmã. A pergunta que moveu o país, “quem matou Odete Roitman?”, no universo jurídico, converte-se em outra: quem, dentre os suspeitos, seria privado da herança da matriarca do Grupo Almeida Roitman?
À luz do Código Civil, a resposta é inequívoca. Se a autora do homicídio fosse Heleninha, configura-se a hipótese clássica do art. 1.814, inc. I: ter atentado dolosamente contra a vida do autor da herança. A consequência seria a exclusão automática da sucessão, conforme o art. 1.815-A, incluído pela Lei nº 14.661/2023, em caso de uma sentença penal condenatória contra a filha. Heleninha, portanto, seria imediatamente afastada da sucessão — não por decisão de seus irmãos, nem por disposição testamentária, mas por força de lei.
A exclusão teria efeito ex tunc, de modo que, para fins sucessórios, Heleninha seria considerada como se jamais houvesse sido herdeira. Contudo, o sistema preserva uma via de continuidade: os descendentes da filha indignada poderiam representá-la, herdando no seu lugar (art. 1.816). A punição é pessoal, não transmissível. A fortuna de Odete, portanto, não desapareceria da linhagem de Heleninha Roitman, mas apenas dela – o que ilustra, de forma quase poética, a separação entre culpa e sangue, entre a moral e a biologia.
Se, por outro lado, a criminosa fosse Celina, irmã da vítima, a exclusão igualmente se imporia, ainda que o vínculo fosse colateral e não necessário. O art. 1.814 não distingue entre herdeiros necessários e facultativos: qualquer herdeiro ou legatário que pratique homicídio doloso contra o autor da herança torna-se indigno. A sentença penal definitiva produziria o mesmo efeito de exclusão imediata, extinguindo sua vocação hereditária e transmitindo sua parte, se houver, a seus descendentes, por representação.
A análise jurídica, contudo, suscita um ponto interessante: se Odete tivesse deixado testamento, poderia, antes da morte, perdoar a ofensa (art. 1.818) ou até deserdar expressamente qualquer herdeira por outra causa grave. A distinção entre indignidade e deserdação, aqui, ganha contornos dramáticos. A primeira seria imposta pelo Estado em razão do crime; a segunda, imposta pela própria Odete, como um último gesto de poder e coerência moral. No universo de Vale Tudo, é fácil imaginar que Odete não deixaria impune uma traição familiar – mas também não delegaria ao Judiciário a decisão final sobre quem mereceria sua herança.
Em qualquer hipótese, a lição é clara: nem mesmo no império dos Almeida Roitman “vale tudo”. O direito sucessório, ao sancionar o herdeiro que viola os deveres mais elementares de lealdade, reafirma que a herança não é prêmio pela consanguinidade, mas reconhecimento da convivência ética. Quem atenta contra a vida do autor da herança não apenas suprime a vida, mas rompe o fundamento moral que legitima a transmissão patrimonial.
Se em Vale Tudo a pergunta que atravessa gerações na ficção televisiva brasileira foi o clímax de uma trama de ambição e ressentimentos, no plano jurídico, a mesma hipótese representa o limite ético da sucessão, encontrando uma resposta decididamente negativa. O Direito das Sucessões, ao excluir o herdeiro indigno ou deserdado, não pune apenas o crime, mas reafirma a moralidade que sustenta a própria ideia de herança.
A exclusão sucessória – seja por indignidade, seja por deserdação – revela que o direito de herdar não decorre unicamente da consanguinidade, mas da lealdade e da confiança que permeiam a convivência familiar. A herança, nessa perspectiva, não é um bem em si, mas o reconhecimento jurídico de um vínculo ético. O herdeiro que atenta contra a vida, a honra ou a integridade do autor da herança rompe o fundamento moral que o habilitava a suceder.
A ficção, nesse sentido, serve como espelho da realidade: sob o verniz do melodrama, revela a lógica moral que estrutura o Direito Civil. Entre a ambição e o afeto, o legislador optou por uma resposta civilizadora – a exclusão do indigno –, lembrando que, mesmo num mundo onde tudo parece negociável, a sucessão ainda se ancora em valores não patrimoniais.
Sigamos atentos para saber, ao final, quem matou Odete Roitman.
[1] Como aponta Leonardo Zanini, a própria Constituição russa pós Revolução de 1917 experimentou um período de “socialismo pleno” ao abolir o direito fundamental à herança e tornar o Estado o único destinatário dos bens a título hereditário, experiência que se revelou catastrófica do ponto de vista popular, tendo a Constituição de 1936, ainda sob a égide da União Soviética, reincorporado o direito à herança, muito embora fossem os socialistas avessos a tal ideia de privatização e perpetuação do patrimônio (ZANINI, Leonardo Estevam de
Assis. Direito civil: sucessões [e-book]. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021)
[2] LÔBO, Paulo. Direito civil em princípios. Belo Horizonte: Fórum, 2025
[3] ZANINI, Leonardo Esteves de Assis, op cit., p. 109.
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