Gisele e Julia

Conto: Perfil bloqueado

Postado em 10 de setembro de 2025 Por Gisele Aparecida Lima de Oliveira Advogada, palestrante e administradora. Especialista em Direitos das Mulheres e em LGPD, Privacidade e Proteção de Dados. Membro da Comissão de Privacidade, Proteção de Dados e Inteligência Artificial e da Comissão de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes da OAB SP, além de integrar a Comissão de Direitos Humanos da OAB Bauru. Voluntária no Programa OAB por Elas, prestando orientação jurídica gratuita a mulheres em situação de violência. Autora de artigos sobre direitos humanos, violência digital e de gênero.Por Julia Lima de Oliveira Graduanda em Direito, Estagiária do Ministério Público Federal do estado de São Paulo. Integrante das Comissões de Direitos da Defesa Criança e do Adolescente, Direito de Família da OAB São Paulo, Comissão de Direitos Humanos da OAB Bauru. Autora de artigos sobre crianças e adolescentes e perspectiva de gênero.

Era só mais uma segunda-feira quando Lara decidiu bloquear tudo. Ela havia passado o fim de semana todo em seu quarto, isolada, o estômago embrulhado, não queria sair nem para se alimentar, mesmo com a insistência suave da mãe para que largasse o celular e desse uma volta. O cheiro da comida, antes tão convidativo, agora lhe dava náuseas.

Lara não conseguia entender por que aquilo estava acontecendo justamente com ela. Se sentia confusa, triste, perdida em um labirinto de ódio e humilhação. Quando acordou naquela manhã fria de segunda-feira, com a luz cinzenta filtrando pela janela, pensou que não tinha outra escolha senão bloquear seus perfis em redes sociais. Era um grito mudo de desespero, uma tentativa desesperada de se proteger do dilúvio de crueldade que a engolia.

Perfil do Instagram: bloqueado. TikTok: deletado, com a raiva e a impotência se misturando em cada clique. WhatsApp: silenciado, enterrado no fundo da mochila. As notificações não paravam de vibrar, um zumbido constante que ecoava em sua mente, mas ela já não lia. Não precisava. Sabia de cor cada palavra, cada ataque, cada punhalada digital: “feia”, “forçada”, “desesperada por likes”, “quer atenção”, “merece desaparecer”, “fingida”, “esquisita”. Os adjetivos se colavam à sua pele como ácido, corroendo sua autoestima e a fazendo duvidar de tudo que era.

O ataque, que se transformou em uma avalanche, começou de forma traiçoeira, com um print descontextualizado de uma conversa particular. Uma conversa de dias atrás, sobre algo bobo, que ela jamais imaginaria que seria usado contra si. Um grupo de colegas do 1º ano do ensino médio, pessoas com quem ela compartilhava risadas e segredos, foi o palco inicial. Eles compartilharam, editaram, remixaram. Logo, vieram montagens grotescas com seu rosto, distorcendo suas feições e sua dignidade. Piadas sobre seu corpo, sobre seu jeito de falar, de rir. Enquetes anônimas sobre “quem pegaria” ou “quem deveria sumir da escola”, transformando sua existência em um jogo maldoso de votação. Cada imagem adulterada, cada meme ofensivo, era uma martelada em sua autoimagem, quebrando-a em mil pedaços.

A conversa original foi em um grupo de meninas que ela pensava ser suas amigas, ser próximas, quase irmãs, com quem dividia suas inseguranças e alegrias. O grupo se chamava “As Imbatíveis”, uma ironia dolorosa agora. Mas foi alguém daquele grupo, alguém em quem ela confiava cegamente, que pegou uma foto feita por brincadeira – uma espécie de zoação inofensiva entre elas – e, de forma covarde, a apunhalou pelas costas. A pessoa adulterou a foto, mexeu no contexto da conversa, adicionou frases que ela nunca disse, e fez com que ela fosse humilhada publicamente, sofrendo tantos constrangimentos que sua alma não conseguia suportar. A traição doeu mais do que qualquer ofensa.

Lara não sabia que a violência podia ser tão barulhenta no silêncio da tela. Cada curtida nos comentários cruéis parecia um empurrão invisível, uma pedrada jogada em sua direção, mesmo sem contato físico. Os comentários não paravam de crescer, como um monstro incontrolável. Aquilo foi compartilhado tantas e tantas vezes, se espalhando como um vírus digital, já havia chegado em outras escolas, outras cidades, outros estados.

Não fazia ideia que as pessoas podiam ser tão perversas, tão desumanas por trás de um teclado, talvez por achar que estão impunes atrás das telas e livres para falar qualquer coisa mesmo que isso ofenda e magoe. Por isso, acreditou sinceramente que bloqueando tudo aquilo estaria alheia a esses comentários, uma espécie de blindagem, como se desconhecer o conteúdo faria com que parasse de sofrer e aquele muro virtual não seria ultrapassado. Ela se enganou. A dor não precisava de notificação para existir.

Na escola, o inferno particular de Lara continuava. Ao passar pelos corredores, na sala de aula, no intervalo, onde fosse, via as pessoas olhando, cochichando, às vezes de forma mais velada, com olhares furtivos e risinhos abafados, mas perceptível. Outras vezes, sem a menor intenção de esconder, apontando, ofendendo em voz baixa, e o pior de tudo: lendo em voz alta aqueles comentários horríveis que tanto ela queria esquecer e apagar de sua memória. Cada sussurro era um eco da tela.

A escola, antes um lugar de aprendizado e socialização, transformou-se em um campo minado. Lara queria sumir, desaparecer, ser invisível, mas não havia lugar para isso. Não havia canto para se esconder. Se trancou no banheiro feminino durante o intervalo e chorou por muito tempo, com o som dos risos dos colegas ecoando lá fora, como uma trilha sonora macabra para sua dor.

Voltou para casa depois de um dia de aula quase interminável, arrastando-se como um fantasma. Foi direto para o quarto sem falar com ninguém, jogando a mochila no chão. Mais um dia que não queria comer, ignorando as batidas da mãe na porta e as perguntas sobre seu apetite. Não conseguiu dormir pensando em tudo que aconteceu, as imagens das montagens, as palavras cruéis, o olhar dos colegas. Chorou tanto que parecia não ter mais lágrimas para o resto da sua vida, seu travesseiro encharcado de angústia.

De manhã, o corpo pesava. Não quis se levantar, o pensamento de enfrentar a escola novamente era insuportável, mas foi obrigada pelos pais a ir. Tentou disfarçar dizendo estar com dor de cabeça, dor no estômago, o que não resolveu. “É só uma fase, filha, levanta. A escola é importante”, disse o pai, sem entender a profundidade de seu sofrimento. Ela não sabia como contar, tinha medo da reação deles, não sabia se entenderiam a dimensão daquele “problema de internet”. Escolheu ficar em silêncio, afundando ainda mais na própria dor.

Foi para escola na esperança daquele pesadelo ter ficado para trás, que talvez fosse um novo dia, quem sabe já houvesse outro assunto mais interessante. Mas a esperança morreu antes mesmo do primeiro sinal. Ainda não. Ela ainda era o assunto. As risadas continuavam, as piadas eram repetidas, os olhares persistiam.

Os dias se arrastaram, monótonos e dolorosos, sem mudanças. Lara sucumbindo à tristeza, já havia perdido peso, suas roupas estavam largas, os ossos do rosto mais evidentes. Não conseguia prestar atenção às aulas, a mente nublada pela angústia, e estava cada vez mais distante, ausente em si mesma.

Levou tempo, mas seu comportamento tão diferente do habitual foi notado por professores. A professora Letícia, recém-formada, com o entusiasmo de quem acabava de ingressar na profissão, talvez por ser tão jovem, tinha muita facilidade em conversar com os alunos e percebeu a mudança drástica em Lara. Ela a procurou após a aula, tentando uma aproximação. Não adiantou, Lara permaneceu firme no silêncio, sem forças para contar sobre seus sentimentos. A vergonha e o medo eram barreiras intransponíveis.

A professora Letícia, porém, não desistiu. Sua intuição dizia que havia algo muito errado. Ela começou a investigar discretamente, conversou com outros alunos em particular, com delicadeza e sem alarmar, até que, aos poucos, começou a entender a gravidade da situação: Lara estava sendo vítima de bullying na escola e cyberbullying em suas redes sociais. A professora conseguiu rastrear as postagens, os compartilhamentos.

Entendeu que usaram uma foto privada dela e que, com a ajuda de Inteligência Artificial, essa foto havia sido manipulada de forma desprezível e compartilhada em diversas contas, se multiplicando em velocidade assustadora. Agora consciente do que aconteceu a Lara, com todas as provas em mãos, a professora Letícia procurou a direção da escola para relatar o caso, com o coração apertado e a certeza de que precisava agir.

A escola chamou os pais de Lara para uma reunião. “Ela precisa aprender a se posicionar”, disseram os responsáveis, em uma tentativa de culpar a vítima, de minimizar a gravidade do ocorrido. Mas como se posicionar quando até andar pelo corredor era motivo de riso? Como se defender de algo tão extenso e cruel?

A mãe, visivelmente abalada, tentou entender, a dor da filha refletida em seus próprios olhos. O pai, com uma mentalidade mais tradicional, achava que era drama de adolescente e passaria com o tempo, que Lara deveria ser “mais forte”. A diretora, em tom formal, disse que estavam revendo a política de convivência da escola, como se um papel pudesse deter o ódio digital. Enquanto Lara se sentia novamente incompreendida, um professor de filosofia, um homem de poucas palavras, mas de olhar profundo, se aproximou dela no corredor e lhe deu um bilhete anônimo, discretamente: “Você tem direito de existir. Não deixe que tirem isso de você.” Foi a única vez que ela chorou naquele período sem ser de dor, mas por se sentir vista, reconhecida em sua angústia, como se alguém finalmente a entendesse.

No fundo, Lara só queria sumir, desintegrar-se no ar. Mas, lentamente, a correnteza começou a mudar.

Uma colega, Bianca, da sala ao lado, que Lara mal conhecia, viu uma publicação anônima especialmente cruel e, revoltada, imprimiu-a e levou à coordenação, exigindo providências. Outra menina, Luíza, que antes a observava de longe, passou a acompanhá-la até a saída da escola, oferecendo uma proteção silenciosa, mas poderosa. O grêmio estudantil, mobilizado pelos recentes eventos, pediu uma roda de conversa sobre bullying e cyberbullying, abrindo o diálogo para toda a comunidade escolar.

Um advogado foi convidado para palestrar, e pela primeira vez, em um ambiente formal, alguém falou em responsabilização, direitos digitais e segurança emocional como parte essencial da educação, não como um assunto isolado ou “brincadeira de adolescentes”. Ele conversou sobre o que é o bullying, as formas como se manifesta, as consequências que pode trazer para a vítima e para o agressor. Informou que essas são atitudes criminosas e estão no Código Penal. Explicou como juntar provas, salvando as conversas, comentários, os perfis dos agressores, testemunhas que presenciaram as ofensas, encorajou a não ficar calados e fazer as denúncias nas próprias redes sociais, pelo disque 100 e no site safernet.org.br.

Um aluno, Davi, que gostava de fazer gracinhas e chamar a atenção, brincou dizendo que não tinha problema, que eram adolescentes e não podiam ser responsabilizados. Mais uma vez, o advogado interferiu e com paciência explicou que aquilo que está como crime no Código Penal e outras leis penais, quando cometidas por um adolescente é um ato infracional e também tem consequências. Nisso, ele aproveitou para explicar as medidas socioeducativas que estavam no Estatuto da Criança e do Adolescente para situações como essa.

Com essa ajuda de membros da escola, a família de Lara finalmente registrou um boletim de ocorrência na delegacia especializada em crimes cibernéticos. A escola, agora sob pressão, finalmente instaurou uma comissão interna de apuração, conduzindo uma investigação séria e aplicando as medidas previstas no regimento escolar e notificando a rede de apoio a crianças e adolescentes. O Ministério Público foi acionado para investigar os responsáveis pela criação e disseminação de conteúdo ofensivo, tratando o caso com a gravidade que merecia.

Os pais dos adolescentes envolvidos foram chamados, confrontados com as provas digitais e com testemunhas. Alguns choraram, com vergonha. Outros tentaram negar, desvalorizar, culpar Lara, mas o histórico digital já falava por si, impiedoso. As consequências começavam a chegar para os agressores.

Lara não voltou às redes sociais. Não sentiu falta. Mas voltou a caminhar sem abaixar a cabeça, com os olhos fixos no horizonte, um leve sorriso de resiliência nos lábios. Seu corpo, antes curvado sob o peso da vergonha, agora estava ereto, firme. Fez nova amizades, aquelas que a apoiaram no momento que passava por essa turbulência, Bianca e Luíza.

Um dia, na aula de português, ao ser pedida para escrever uma redação, Lara escolheu como tema: “Privacidade, Dignidade e Direitos na Era Digital”. Suas palavras fluíam, carregadas de experiência e superação, uma voz para os que sofrem em silêncio. Ao final, deixou uma frase destacada, como um manifesto, uma advertência, uma bandeira para todas as outras Laras:

“Bullying não é brincadeira. É violência. E tem lei pra isso.”

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