Ana Beatriz Maria da Silva

Da torcida ao crime organizado: Quando o fanatismo se converte em organização criminosa

Postado em 15 de outubro de 2025 Por Ana Beatriz Maria da Silva Ana Beatriz Maria da Silva, estudante de direito da Faculdade Católica Imaculada Conceição do Recife. Filiada à Associação Pernambucana de Jovens Juristas (APJJ). Estagiária do Ministério Público Federal.

No Brasil, o futebol transcende a condição de esporte: é cultura, identidade e emoção coletiva. Contudo, essa paixão, quando corrompida pelo fanatismo, tem se convertido em meio propício para a violência, transformando o que deveria ser convivência social em prática criminosa. O episódio ocorrido em 1º de fevereiro de 2025, em Recife, envolvendo torcedores das organizadas do Sport e do Santa Cruz, evidenciou essa realidade de modo assustador.

A gravidade do caso não se limitou à rivalidade esportiva: os confrontos ocorreram em plena via pública, afetando diretamente a coletividade. Além disso, os próprios integrantes registraram atos violentos, como agressões físicas e violência sexual, e os divulgaram nas redes sociais, numa demonstração de ostentação criminosa.

Como resposta ao ocorrido, o Governo de Pernambuco determinou que os próximos cinco jogos envolvendo Santa Cruz e Sport ocorressem sem a presença de torcedores. A medida emergencial, embora fundamentada na preservação da ordem pública, gerou intensa controvérsia jurídica. O Sport, por exemplo, ingressou com mandado de segurança alegando violação ao devido processo legal, já que a Lei nº 14.597/2023/Lei Geral do Esporte condiciona a responsabilização dos clubes à comprovação da relação direta entre a entidade desportiva e os torcedores infratores. Em decisão liminar, o desembargador Fernando Cerqueira Norberto dos Santos reconheceu que a portaria carecia de fundamentação concreta e individualizada, configurando abuso de poder administrativo. O debate revela a delicada tensão entre o poder estatal de garantir a segurança coletiva e a necessidade de respeito às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Ao mesmo tempo, evidencia-se a incapacidade do Estado em adotar medidas preventivas eficazes.

O confronto mais recente, que marcou o início de 2025, foi na verdade o clímax de uma escalada que se arrasta há mais de uma década. Antes mesmo desse dia, Recife já havia presenciado cenas que pareciam retiradas de um manual de guerra urbana: o centro histórico tomado por pedras e paus em 2014, arquibancadas transformadas em trincheiras em 2015, emboscadas armadas com barras de ferro em 2017, avenidas convertidas em corredor de violência em 2020 e bairros inteiros paralisados por confrontos em 2023. São episódios que mostram que a brutalidade não é exceção, é regra, e não se limita a Sport e Santa Cruz. Torcidas de outros clubes, em diferentes estados, seguem o mesmo roteiro de intimidação e terror, sinal de que o problema ultrapassa fronteiras e exige bem mais que medidas emergenciais ou proibições passageiras.

O secretário estadual de Defesa Social, Alessandro Carvalho, negou que tenha havido baixo efetivo de policiais ou falha das forças de segurança no ocorrido do dia 1º de fevereiro de 2025. No entanto, a população presenciou as ruas do Recife sendo transformadas em um verdadeiro campo de guerra. De acordo com  um relatório da Delegacia de Polícia de Repressão à Intolerância Esportiva (DPRIE), forças de segurança do estado tinham prévio conhecimento sobre a possibilidade de confronto. Porém, o secretário estadual de Defesa Social afirmou que relatório da polícia que avisou sobre confrontos era ‘genérico’.

Sob a ótica constitucional, o episódio também exige reflexão sobre direitos e deveres fundamentais. A Constituição Federal assegura, no artigo 5º, o direito à segurança e, simultaneamente, a liberdade de associação (incisos XVII e XVIII), mas veda o funcionamento de entidades voltadas a fins ilícitos. Assim, a atuação estatal em restringir torcidas organizadas quando há indícios de crimes encontra respaldo no dever de proteção da ordem pública e na inviolabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV), que garante que tais medidas possam ser questionadas e analisadas pelo Judiciário. Essa abordagem reforça que não se trata de suprimir direitos, mas de harmonizá-los para preservar a coletividade.

Considerando o ordenamento jurídico, a transição da torcida organizada para a organização criminosa encontra respaldo normativo. O artigo 288 do Código Penal prevê a associação criminosa, enquanto a Lei nº 12.850/2013 estabelece os parâmetros para o enquadramento de grupos que se estruturam para a prática de crimes graves. Já não se trata apenas de rivalidades ocasionais, mas de verdadeiras facções que se valem da identidade esportiva para legitimar homicídios, tráfico, extorsões e outros delitos de natureza hedionda.

Outro ponto que merece atenção é a possível seletividade na resposta penal aos envolvidos nesses episódios. Em muitos casos, jovens das classes populares são presos preventivamente sem direito à ampla defesa ou ao devido processo legal, enquanto mandantes, financiadores ou membros mais influentes das torcidas permanecem impunes. A atuação da Defensoria Pública é essencial para garantir que o combate à violência não se traduza em mais uma face da desigualdade penal brasileira. O sistema de justiça precisa ser firme, mas também equânime, assegurando que a punição recaia sobre todos os envolvidos de forma proporcional e justa, sem reforçar estigmas sociais ou promover encarceramento em massa como solução simplista para um problema estrutural.

Nesse cenário, o Ministério Público de Pernambuco celebrou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com os principais clubes esportivos da capital, impondo 16 obrigações, dentre elas a proibição de auxílio financeiro às torcidas organizadas, a instalação de catracas com biometria facial, e a vedação do acesso de membros identificados como violentos às dependências dos clubes. Embora importantes, tais medidas demonstram que a resposta do sistema de justiça, em regra, é reativa somente após tragédias e forte comoção social.

Além do papel do Estado e dos clubes, é preciso discutir a influência dos meios de comunicação e das redes sociais na perpetuação da violência associada ao futebol. A ampla divulgação de confrontos, muitas vezes sem o devido contexto ou crítica, pode atuar como um fator de estímulo, conferindo notoriedade a grupos violentos e normalizando condutas criminosas. Pior ainda são os próprios registros feitos pelos agressores, que circulam livremente nas redes como forma de ostentação e conquista de status dentro dessas facções disfarçadas de torcidas. Esse fenômeno demanda uma atuação mais incisiva das plataformas digitais e um debate urgente sobre regulação da internet, sobretudo quando se trata da propagação de conteúdo que atenta contra a integridade física e moral de terceiros. A liberdade de expressão não pode servir de escudo para a apologia ao crime.

O episódio de 2025 também expôs a fragilidade das soluções já adotadas anteriormente. Em 2020, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça de Pernambuco haviam determinado a extinção das principais torcidas organizadas, mas estas simplesmente “driblaram” a decisão com novos CNPJs e diferentes denominações, preservando a mesma estrutura e práticas violentas. A mudança meramente formal evidencia que o problema não está no nome da agremiação, mas na sua essência: a associação para a prática de ilícitos.

O Estado, portanto, não pode mais se limitar a medidas paliativas, como a proibição temporária de torcedores em jogos ou a mera extinção formal de entidades. É preciso reconhecer que, quando a paixão clubística se converte em substrato para práticas criminosas reiteradas, estamos diante de organizações que devem ser combatidas com a mesma força normativa e investigativa aplicada a facções.

Importa, da mesma forma, refletir sobre os danos que episódios como o de 1º de fevereiro causam não apenas às vítimas diretas, mas a toda a sociedade. A banalização da violência gera trauma coletivo, reforça o medo do espaço público e desestimula o comparecimento das famílias aos eventos esportivos. Crianças e adolescentes que presenciam atos de brutalidade podem desenvolver traumas duradouros, associando o futebol que deveria ser um espaço de alegria ao medo e à insegurança. O dano não é só físico ou patrimonial; é simbólico, cultural e emocional. Essa dimensão invisível da violência esportiva precisa ser mais debatida, inclusive como critério de avaliação do poder público.

Diante desse contexto, cabe questionar: até que ponto a legislação vigente tem sido eficaz em enfrentar torcidas que já não se limitam a manifestações de apoio esportivo, mas que assumem a forma de verdadeiras associações ílicitas?

Mais do que criminalizar símbolos ou extinguir nomes, é necessário dar efetividade às leis já existentes, rompendo com a cultura da impunidade e garantindo que a paixão nacional não continue a ser instrumento de violência. A sociedade, o Ministério Público, o Judiciário e os próprios clubes precisam assumir o compromisso de retirar do futebol aqueles que transformam o lazer em tragédia.

Somente assim será possível preservar a essência do esporte: um espaço de identidade, alegria e união, e não de medo e sangue derramado.

BIBLIOGRAFIA

Brigas entre torcedores de Santa Cruz e Sport deixam saldo de feridos, presos e autuados; população fica com medo de sair de casa. Disponível em:

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GRUPO ADAPTA / AGÊNCIA DE MARKETING DIGITAL et al. Extinção das principais Torcidas Organizadas de Pernambuco está decretada. Disponível em: <https://www.cbnrecife.com/artigo/extincao-das-principais-torcidas-organizadas-depernambuco-esta-decretada>. Acesso em: 18 sept. 2025.

Justiça derruba proibição de torcida em jogos do Sport e Santa Cruz em PE, determinada pela governadora Raquel Lyra após brigas de organizadas. Disponível em:<https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2025/02/04/justica-derrubaproibicao-de-torcida-em-jogos-do-sport-e-santa-cruz-em-pe-anunciada-pelagovernadora-raquel-lyra-apos-brigas-de-organizadas.ghtml>. Acesso em: 18 sept.

2025.

Sport, Náutico, Santa Cruz e FPF firmam TAC com MPPE para proibir organizadas nos estádios. Disponível em: <https://portal.mppe.mp.br/w/sport-n%C3%A1uticosanta-cruz-e-fpf-firmam-tac-com-mppe-para-proibir-organizadas-nosest%C3%A1dios>. Acesso em: 18 sept. 2025.

Disponível em:<https://www.alepe.pe.gov.br/2025/05/27/audiencia-debatepropostas-para-enfrentar-violencia-envolvendo-torcidas-organizadas/>. Acesso em:

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