O Direito é, antes de tudo, uma das mais nobres expressões da racionalidade humana. Ele surge da necessidade de organizar a convivência social, harmonizar conflitos e assegurar que a liberdade de um não destrua a liberdade do outro. Mas reduzir o Direito a um simples conjunto de normas seria empobrecê-lo. O Direito, em sua essência, é um instrumento de justiça — uma construção histórica, social e moral voltada à concretização dos valores mais elevados da humanidade: a dignidade, a igualdade e o bem comum.
Desde os primeiros códigos até a sofisticação do constitucionalismo contemporâneo, o Direito tem se apresentado como uma tentativa incessante de traduzir o ideal de justiça em linguagem normativa. Essa busca, contudo, é sempre tensionada pela distância entre o “dever-ser” da norma e o “ser” da realidade. Miguel Reale, ao definir o Direito como a “realização ordenada e garantida do bem comum numa estrutura de valores que se atualizam historicamente”, ofereceu talvez uma das sínteses mais lúcidas dessa dinâmica. O Direito não é estático nem puramente técnico; ele é produto da história e, portanto, reflexo das lutas sociais, dos conflitos de poder e das conquistas civilizatórias.
A justiça, enquanto valor universal, antecede o próprio Direito positivo. Aristóteles já a compreendia como virtude suprema, o “dar a cada um o que é seu”. Desde então, filósofos e juristas vêm debatendo a relação entre Direito e justiça, ora como instâncias complementares, ora como campos em tensão. Hans Kelsen, ao propor sua Teoria Pura do Direito, buscou separar o jurídico do moral, argumentando que o Direito é um sistema de normas coercitivas autônomo, cujo critério de validade não depende de valores éticos. Ainda assim, o próprio Kelsen reconhecia que a justiça é um ideal irracional, mas indispensável — um farol que orienta o legislador e o intérprete, ainda que não possa ser reduzido a fórmulas racionais.
Na direção oposta, o jusnaturalismo — representado por autores como Norberto Bobbio — insiste que o Direito só cumpre sua função quando subordinado à ideia de justiça e aos direitos fundamentais da pessoa humana. Para Bobbio, a tarefa do jurista não é apenas descrever o que o Direito “é”, mas também interrogar o que ele “deve ser”. Esse diálogo permanente entre o normativo e o ético é o que impede o Direito de se tornar mera técnica de poder. Um sistema jurídico desprovido de conteúdo moral pode até funcionar, mas dificilmente será justo.
É nesse ponto que se revela o papel essencial das instituições. A justiça não se realiza apenas na norma, mas na sua efetividade. De nada adianta termos leis justas se o acesso à Justiça é privilégio de poucos, se as decisões judiciais se tornam imprevisíveis, ou se a burocracia jurídica transforma o cidadão em refém do formalismo. Um Direito que não alcança a realidade concreta é um Direito esvaziado de sentido. A eficácia normativa precisa caminhar ao lado da legitimidade ética, e ambas dependem da confiança social nas instituições que aplicam o Direito.
No Brasil, essa reflexão ganha força especial com a Constituição Federal de 1988, que consagra a justiça como um de seus objetivos fundamentais. O Estado Democrático de Direito nasce exatamente dessa fusão entre o jurídico e o ético, entre a norma e o valor. O neoconstitucionalismo, conforme ensina Luís Roberto Barroso, representa essa virada axiológica: o Direito deixa de ser apenas um instrumento de controle social e passa a ser um mecanismo de transformação e inclusão. A Constituição, nesse contexto, torna-se não apenas uma carta política, mas uma promessa de justiça social.
A dignidade da pessoa humana, erigida a fundamento do Estado, é o ponto de partida e de chegada de todo o sistema jurídico. Princípios como igualdade, proporcionalidade e razoabilidade assumem protagonismo, substituindo a rigidez do positivismo por uma hermenêutica mais sensível à realidade. O intérprete, diante de cada caso concreto, deve realizar uma leitura moral da Constituição, buscando a solução que melhor concretize os direitos fundamentais. A função do juiz, portanto, ultrapassa a mera subsunção da norma ao fato. O magistrado contemporâneo é chamado a ser um agente de concretização da justiça — alguém que compreende que o Direito só cumpre sua missão quando serve à dignidade humana.
Ronald Dworkin desenvolveu, nesse sentido, a figura simbólica do “juiz Hércules”, aquele que, diante de casos difíceis, é capaz de ponderar princípios e valores para encontrar a resposta moralmente correta dentro do sistema jurídico. A proposta dworkiniana desafia a ideia de neutralidade judicial, mostrando que toda decisão carrega juízos morais e escolhas interpretativas. Interpretar o Direito, portanto, é um ato de responsabilidade ética. O juiz que se limita à letra da lei abdica de seu papel de promotor da justiça; o juiz que se afasta completamente dela incorre em arbitrariedade. O equilíbrio entre coerência e sensibilidade é o desafio central da hermenêutica contemporânea.
Hans-Georg Gadamer, em sua obra “Verdade e Método”, já afirmava que a compreensão é sempre um diálogo entre o intérprete e o texto, mediado pela tradição e pela historicidade. Essa lição vale também para o Direito: toda aplicação normativa exige a fusão entre o horizonte da norma e o horizonte da realidade. O Direito não existe no vácuo; ele se concretiza nas relações humanas, nos dramas sociais e nas contradições políticas de seu tempo.
Nesse contexto, o papel do jurista, do legislador e do cidadão é repensar continuamente o sentido do Direito como instrumento de justiça social. O acesso à justiça, a celeridade processual, a equidade nas decisões e a redução das desigualdades jurídicas e materiais são condições indispensáveis para que o Direito cumpra sua função civilizatória. O formalismo excessivo, a judicialização da política e a mercantilização da advocacia são sintomas de um Direito que se distancia da ética pública. Reaproximar o Direito de sua função moral é um imperativo ético e democrático.
Vivemos uma época em que a tecnocracia e o pragmatismo ameaçam reduzir o Direito a um conjunto de procedimentos automáticos, muitas vezes mediados por algoritmos e sistemas de inteligência artificial. Nesse cenário, torna-se ainda mais urgente reafirmar o caráter humano do Direito. Nenhum código, por mais sofisticado que seja, substitui o juízo moral. A justiça não é produto de cálculos, mas de consciência. A racionalidade jurídica precisa ser equilibrada pela sensibilidade ética, sob pena de o Direito transformar-se em instrumento de exclusão, e não de emancipação.
A missão do jurista, portanto, não é apenas aplicar a lei, mas interpretá-la à luz dos valores constitucionais. A neutralidade é um mito que encobre escolhas políticas e morais. Todo ato jurídico implica um posicionamento diante do mundo — e é nesse posicionamento que se revela o compromisso ético com a justiça. O Direito, enquanto prática social, não pode ser neutro diante da desigualdade, da violência ou da miséria. Quando o Direito se omite, a injustiça ocupa seu lugar.
Reafirmar o Direito como instrumento de justiça é, assim, reafirmar a própria razão de ser do Estado Democrático de Direito. Cada norma, cada decisão, cada política pública deve ser avaliada por seus efeitos concretos sobre a vida das pessoas. O verdadeiro critério da legitimidade jurídica não é apenas a conformidade formal, mas o impacto ético e social de suas consequências. A justiça, nesse sentido, é o termômetro da democracia.
A história demonstra que os maiores avanços civilizatórios ocorreram quando o Direito foi capaz de se abrir à transformação social. A abolição da escravidão, o reconhecimento dos direitos das mulheres, a proteção ambiental, a defesa das minorias — todos esses marcos resultaram de um Direito sensível às demandas éticas de seu tempo. A justiça é o motor que impulsiona o Direito à mudança. Quando ela é sufocada, o Direito se petrifica.
Por isso, é preciso cultivar uma cultura jurídica voltada para o bem comum, baseada na empatia, na igualdade e no respeito. A formação dos operadores do Direito deve ser guiada não apenas pelo domínio técnico, mas pela consciência moral de seu papel social. Advogados, juízes, promotores e professores têm a responsabilidade de garantir que o Direito permaneça humano, acessível e justo. O desafio é grande, mas indispensável: reconstruir a confiança na justiça como valor e na lei como instrumento de libertação, e não de opressão.
O Direito é, em última instância, a tentativa humana de converter a ética em norma, o ideal em prática, o justo em real. Ele não é infalível, mas é o caminho possível para que a sociedade transforme o caos em ordem e a força em razão. A justiça não é um ponto de chegada, mas um horizonte que orienta o percurso.
Reconhecer o Direito como instrumento de justiça significa compreender que toda reforma normativa, toda decisão judicial e toda atuação estatal devem ser julgadas por sua capacidade de promover dignidade e igualdade. A justiça não é uma abstração filosófica, mas uma exigência cotidiana. Ela requer vigilância social, compromisso institucional e coragem moral.
Enquanto houver desigualdade e exclusão, o Direito não poderá se considerar completo. Sua missão será, sempre, buscar o equilíbrio entre norma e humanidade, entre poder e liberdade, entre o que é legal e o que é legítimo. O Direito é o fio que liga o ideal à realidade — e a justiça, o destino que justifica essa travessia.
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