Ronaldo Dutra e Jose Carlos

O Direito como instrumento de Justiça

Postado em 15 de outubro de 2025 Por Ronaldo Dutra de Amorim Graduando em Direito pela FSH, estagiário no Sindicato da Polícia Federal (SINPEF-PE)Por José Carlos Da Silva Filho Graduando em Direito pela FICR, escreve nas áreas de Direito Penal e Constitucional, com foco no direito da vitima e direitos fundamentais, necropolítica. Bolsista CNPq.

O  Direito  é,  antes  de  tudo,  uma  das  mais  nobres  expressões  da  racionalidade  humana.  Ele  surge  da  necessidade  de  organizar  a  convivência  social,  harmonizar  conflitos  e  assegurar  que  a  liberdade  de  um  não  destrua  a  liberdade  do  outro.  Mas  reduzir  o  Direito  a  um  simples  conjunto  de  normas  seria  empobrecê-lo.  O  Direito,  em  sua  essência,  é  um  instrumento  de  justiça  —  uma  construção  histórica,  social  e  moral  voltada  à  concretização  dos  valores  mais  elevados da humanidade: a dignidade, a igualdade e o bem comum.

Desde  os  primeiros  códigos  até  a  sofisticação  do  constitucionalismo  contemporâneo,  o  Direito  tem  se  apresentado  como  uma  tentativa  incessante  de  traduzir  o  ideal  de  justiça  em  linguagem  normativa.  Essa  busca,  contudo,  é  sempre  tensionada  pela  distância  entre  o  “dever-ser”  da  norma  e  o  “ser”  da  realidade.  Miguel  Reale,  ao  definir  o  Direito  como  a  “realização  ordenada  e  garantida  do  bem  comum  numa  estrutura  de  valores  que  se  atualizam  historicamente”,  ofereceu  talvez  uma  das  sínteses  mais  lúcidas  dessa  dinâmica.  O  Direito  não  é  estático  nem  puramente  técnico;  ele  é  produto  da  história  e,  portanto,  reflexo  das  lutas  sociais, dos conflitos de poder e das conquistas civilizatórias.

A  justiça,  enquanto  valor  universal,  antecede  o  próprio  Direito  positivo.  Aristóteles  já a  compreendia  como  virtude  suprema,  o  “dar  a  cada  um  o  que  é  seu”.  Desde  então,  filósofos  e  juristas  vêm  debatendo  a  relação  entre  Direito  e  justiça,  ora  como  instâncias  complementares,  ora  como  campos  em  tensão.  Hans  Kelsen,  ao  propor  sua  Teoria  Pura  do  Direito,  buscou  separar  o  jurídico  do  moral,  argumentando  que  o  Direito  é  um  sistema  de  normas  coercitivas  autônomo,  cujo  critério  de  validade  não  depende  de  valores  éticos.  Ainda  assim,  o  próprio  Kelsen  reconhecia  que  a  justiça  é  um  ideal  irracional,  mas  indispensável  —  um  farol  que  orienta o legislador e o intérprete, ainda que não possa ser reduzido a fórmulas racionais.

Na  direção  oposta,  o  jusnaturalismo  —  representado  por  autores  como  Norberto  Bobbio  —  insiste  que  o  Direito  só  cumpre  sua  função  quando  subordinado  à  ideia  de  justiça  e  aos  direitos  fundamentais  da  pessoa  humana.  Para  Bobbio,  a  tarefa  do  jurista  não  é  apenas  descrever  o  que  o  Direito  “é”,  mas  também  interrogar  o  que  ele  “deve  ser”.  Esse  diálogo  permanente  entre  o  normativo  e  o  ético  é  o  que  impede  o  Direito  de  se  tornar  mera  técnica  de  poder.  Um  sistema  jurídico  desprovido  de  conteúdo  moral  pode  até  funcionar,  mas  dificilmente será justo.

É  nesse  ponto  que  se  revela  o  papel  essencial  das  instituições.  A  justiça  não  se  realiza apenas  na  norma,  mas  na  sua  efetividade.  De  nada  adianta  termos  leis  justas  se  o  acesso  à  Justiça  é  privilégio  de  poucos,  se  as  decisões  judiciais  se  tornam  imprevisíveis,  ou  se  a  burocracia  jurídica  transforma  o  cidadão  em  refém  do  formalismo.  Um  Direito  que  não  alcança  a  realidade  concreta  é  um  Direito  esvaziado  de  sentido.  A  eficácia  normativa  precisa  caminhar  ao  lado  da  legitimidade  ética,  e  ambas  dependem  da  confiança  social  nas  instituições que aplicam o Direito.

No  Brasil,  essa  reflexão  ganha  força  especial  com  a  Constituição  Federal  de  1988,  que  consagra  a  justiça  como  um  de  seus  objetivos  fundamentais.  O  Estado  Democrático  de  Direito  nasce  exatamente  dessa  fusão  entre  o  jurídico  e  o  ético,  entre  a  norma  e  o  valor.  O  neoconstitucionalismo,  conforme  ensina  Luís  Roberto  Barroso,  representa  essa  virada  axiológica:  o  Direito  deixa  de  ser  apenas  um  instrumento  de  controle  social  e  passa  a  ser  um  mecanismo  de  transformação  e  inclusão.  A  Constituição,  nesse  contexto,  torna-se  não  apenas  uma carta política, mas uma promessa de justiça social.

A  dignidade  da  pessoa  humana,  erigida  a  fundamento  do  Estado,  é  o  ponto  de  partida  e  de  chegada  de  todo  o  sistema  jurídico.  Princípios  como  igualdade,  proporcionalidade  e  razoabilidade  assumem  protagonismo,  substituindo  a  rigidez  do  positivismo  por  uma  hermenêutica  mais  sensível  à  realidade.  O  intérprete,  diante  de  cada  caso  concreto,  deve  realizar  uma  leitura  moral  da  Constituição,  buscando  a  solução  que  melhor  concretize  os  direitos  fundamentais.  A  função  do  juiz,  portanto,  ultrapassa  a  mera  subsunção  da  norma  ao  fato.  O  magistrado  contemporâneo  é  chamado  a  ser  um  agente  de  concretização  da  justiça  —  alguém  que  compreende  que  o  Direito  só  cumpre  sua  missão  quando  serve  à  dignidade  humana.

Ronald  Dworkin  desenvolveu,  nesse  sentido,  a  figura  simbólica  do  “juiz  Hércules”, aquele  que,  diante  de  casos  difíceis,  é  capaz  de  ponderar  princípios  e  valores  para  encontrar  a  resposta  moralmente  correta  dentro  do  sistema  jurídico.  A  proposta  dworkiniana  desafia  a  ideia  de  neutralidade  judicial,  mostrando  que  toda  decisão  carrega  juízos  morais  e  escolhas  interpretativas.  Interpretar  o  Direito,  portanto,  é  um  ato  de  responsabilidade  ética.  O  juiz  que  se  limita  à  letra  da  lei  abdica  de  seu  papel  de  promotor  da  justiça;  o  juiz  que  se  afasta  completamente  dela  incorre  em  arbitrariedade.  O  equilíbrio  entre  coerência  e  sensibilidade  é  o  desafio central da hermenêutica contemporânea.

Hans-Georg  Gadamer,  em  sua  obra  “Verdade  e  Método”,  já  afirmava  que  a compreensão  é  sempre  um  diálogo  entre  o  intérprete  e  o  texto,  mediado  pela  tradição  e  pela  historicidade.  Essa  lição  vale  também  para  o  Direito:  toda  aplicação  normativa  exige  a  fusão  entre  o  horizonte  da  norma  e  o  horizonte  da  realidade.  O  Direito  não  existe  no  vácuo;  ele  se  concretiza  nas  relações  humanas,  nos  dramas  sociais  e  nas  contradições  políticas  de  seu  tempo.

Nesse  contexto,  o  papel  do  jurista,  do  legislador  e  do  cidadão  é  repensar continuamente  o  sentido  do  Direito  como  instrumento  de  justiça  social.  O  acesso  à  justiça,  a  celeridade  processual,  a  equidade  nas  decisões  e  a  redução  das  desigualdades  jurídicas  e  materiais  são  condições  indispensáveis  para  que  o  Direito  cumpra  sua  função  civilizatória.  O  formalismo  excessivo,  a  judicialização  da  política  e  a  mercantilização  da  advocacia  são  sintomas  de  um  Direito  que  se  distancia  da  ética  pública.  Reaproximar  o  Direito  de  sua  função moral é um imperativo ético e democrático.

Vivemos  uma  época  em  que  a  tecnocracia  e  o  pragmatismo  ameaçam  reduzir  o  Direito  a  um  conjunto  de  procedimentos  automáticos,  muitas  vezes  mediados  por  algoritmos  e  sistemas  de  inteligência  artificial.  Nesse  cenário,  torna-se  ainda  mais  urgente  reafirmar  o  caráter  humano  do  Direito.  Nenhum  código,  por  mais  sofisticado  que  seja,  substitui  o  juízo  moral.  A  justiça  não  é  produto  de  cálculos,  mas  de  consciência.  A  racionalidade  jurídica  precisa  ser  equilibrada  pela  sensibilidade  ética,  sob  pena  de  o  Direito  transformar-se  em instrumento de exclusão, e não de  emancipação.

A  missão  do  jurista,  portanto,  não  é  apenas  aplicar  a  lei,  mas  interpretá-la  à  luz  dos  valores  constitucionais.  A  neutralidade  é  um  mito  que  encobre  escolhas  políticas  e  morais.  Todo  ato  jurídico  implica  um  posicionamento  diante  do  mundo  —  e  é  nesse  posicionamento  que  se  revela  o  compromisso  ético  com  a  justiça.  O  Direito,  enquanto  prática  social,  não  pode  ser  neutro  diante  da  desigualdade,  da  violência  ou  da  miséria.  Quando  o  Direito  se  omite,  a  injustiça ocupa seu lugar.

Reafirmar  o  Direito  como  instrumento  de  justiça  é,  assim,  reafirmar  a  própria  razão  de  ser  do  Estado  Democrático  de  Direito.  Cada  norma,  cada  decisão,  cada  política  pública  deve  ser  avaliada  por  seus  efeitos  concretos  sobre  a  vida  das  pessoas.  O  verdadeiro  critério  da  legitimidade  jurídica  não  é  apenas  a  conformidade  formal,  mas  o  impacto  ético  e  social  de  suas consequências. A justiça, nesse sentido, é o termômetro da democracia.

A  história  demonstra  que  os  maiores  avanços  civilizatórios  ocorreram  quando  o  Direito  foi  capaz  de  se  abrir  à  transformação  social.  A  abolição  da  escravidão,  o  reconhecimento  dos  direitos  das  mulheres,  a  proteção  ambiental,  a  defesa  das  minorias  —  todos  esses  marcos  resultaram  de  um  Direito  sensível  às  demandas  éticas  de  seu  tempo.  A  justiça  é  o  motor  que  impulsiona  o  Direito  à  mudança.  Quando  ela  é  sufocada,  o  Direito  se  petrifica.

Por  isso,  é  preciso  cultivar  uma  cultura  jurídica  voltada  para  o  bem  comum,  baseada na  empatia,  na  igualdade  e  no  respeito.  A  formação  dos  operadores  do  Direito  deve  ser  guiada  não  apenas  pelo  domínio  técnico,  mas  pela  consciência  moral  de  seu  papel  social.  Advogados,  juízes,  promotores  e  professores  têm  a  responsabilidade  de  garantir  que  o  Direito  permaneça  humano,  acessível  e  justo.  O  desafio  é  grande,  mas  indispensável:  reconstruir  a  confiança  na  justiça como valor e na lei como instrumento de libertação, e não de opressão.

 O  Direito  é,  em  última  instância,  a  tentativa  humana  de  converter  a  ética  em  norma,  o ideal  em  prática,  o  justo  em  real.  Ele  não  é  infalível,  mas  é  o  caminho  possível  para  que  a  sociedade  transforme  o  caos  em  ordem  e  a  força  em  razão.  A  justiça  não  é  um  ponto  de  chegada, mas um horizonte que orienta o percurso.

Reconhecer  o  Direito  como  instrumento  de  justiça  significa  compreender  que  toda  reforma  normativa,  toda  decisão  judicial  e  toda  atuação  estatal  devem  ser  julgadas  por  sua  capacidade  de  promover  dignidade  e  igualdade.  A  justiça  não  é  uma  abstração  filosófica,  mas  uma  exigência  cotidiana.  Ela  requer  vigilância  social,  compromisso  institucional  e  coragem  moral.

Enquanto  houver  desigualdade  e  exclusão,  o  Direito  não  poderá  se  considerar  completo.  Sua  missão  será,  sempre,  buscar  o  equilíbrio  entre  norma  e  humanidade,  entre  poder  e  liberdade,  entre  o  que  é  legal  e  o  que  é  legítimo.  O  Direito  é  o  fio  que  liga  o  ideal  à  realidade — e a justiça, o destino que justifica essa travessia.

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco      . Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril  Cultural, 1984.

BARROSO, Luís Roberto.  Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil         . Disponível em: [professor.pucgoias.edu.br].

BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica  . São Paulo: Martins Fontes, 1995.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério  . São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método  . Petrópolis: Vozes, 1997.

KELSEN, Hans.  Teoria Pura do Direito . São Paulo: Martins Fontes, 1998.

REALE, Miguel.  Lições Preliminares de Direito . 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

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