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A judicialização da miséria: O judiciário como último socorro do estado ineficiente

Postado em 01 de novembro de 2025 Por Oscar Luiz da Silva Neto Acadêmico de Direito, Assistente Jurídico, Membro colaborador da comissão de Igualdade Racial da OAB-PE.

Há uma cena que se repete silenciosamente em todo o país: uma mãe que não consegue vaga para o filho doente em um hospital público; um idoso que espera meses por um medicamento de alto custo; uma família que não recebe o benefício assistencial prometido pela Constituição; jovens sem matrícula em escolas, e crianças em creches; trabalhadores informais sem acesso ao seguro-desemprego ou auxílio emergencial. Diante do desamparo estatal, todos acabam no mesmo lugar, o Poder Judiciário. O tribunal se transforma em balcão de emergência social, o juiz, em socorrista da cidadania. E a Constituição, um manual de promessas não cumpridas, desbotado pelo descaso de gestores e pela lentidão histórica da administração pública.

O Brasil se tornou o país onde o cidadão precisa acionar o Estado para obrigá-lo a funcionar. Não se busca Justiça, busca-se sobrevivência. Essa é a essência da judicialização da miséria: a Justiça convertida em pronto-socorro de direitos fundamentais negligenciados. A prática, que deveria ser exceção, tornou-se regra. E, quanto mais se judicializa, mais evidente se torna a falência estrutural do Estado.

A Constituição de 1988 nasceu com alma generosa, mas corpo pesado. Garantiu direitos em profusão, mas não previu um Estado capaz de concretizá-los. É como um contrato social assinado sem lastro financeiro. O resultado é previsível: milhões de brasileiros recorrem à Justiça para obter aquilo que deveria ser entregue espontaneamente pela administração pública: saúde, moradia, educação, segurança, dignidade. Todos esses direitos, consagrados no papel, dependem da intervenção direta do Judiciário para sair do campo abstrato e chegar à vida real.

O Judiciário, pressionado, tenta tapar buracos que não foram feitos para ele preencher. A sentença se transforma em política pública. O despacho judicial substitui a ação do gestor. O juiz, muitas vezes, atua como médico, engenheiro, urbanista e assistente social, tudo em nome da efetividade dos direitos fundamentais. O problema é que, ao fazer isso, o sistema de Justiça arrisca substituir a função de cobrar o Estado pela função de ser o próprio Estado.

Esse cenário tem um custo, não apenas econômico, mas democrático. Quando a população passa a ver no Judiciário a única porta de socorro, desloca-se o centro de responsabilidade. O cidadão não mais cobra do gestor público, mas do juiz. A omissão governamental é normalizada, e o processo judicial se transforma em política pública informal. É a institucionalização do improviso.

O mais grave é que o Judiciário, movido por boas intenções, acaba reforçando a ineficiência estatal. Ao garantir individualmente um direito negado a todos, cria-se o paradoxo da desigualdade judicial. Quem tem acesso a um advogado, ou apenas coragem para acionar a Defensoria Pública, consegue o que os demais não conseguem. A justiça que deveria equalizar passa a ser instrumento de privilégio processual. O acesso à jurisdição torna-se uma nova forma de seleção social.

O exemplo mais dramático é a saúde pública. Pacientes com câncer ou doenças raras muitas vezes dependem de decisões judiciais para obter medicamentos caros. O impacto dessas decisões é individualmente benéfico, mas estruturalmente problemático: o sistema público não consegue atender a todos, os recursos ficam comprometidos, e surgem disputas por prioridades. O Estado não consegue planejar, e o Judiciário passa a atuar como distribuidor de recursos escassos, assumindo um papel que não lhe compete.

No fundo, a judicialização da miséria revela uma falência moral do Estado. Não se trata apenas de falta de recursos, mas de prioridades distorcidas. Há verba para propaganda institucional, mas não para hospitais. Há orçamento para cargos comissionados, mas não para medicamentos de uso contínuo. Há investimento em obras faraônicas, mas não na execução de políticas básicas. O Judiciário apenas testemunha, de toga e pena na mão, esse teatro de cinismo.

É tentador ver a judicialização como sinal de cidadania ativa. De fato, recorrer à Justiça pode ser visto como exercício do direito de petição, como prova de uma sociedade que não aceita a omissão. Mas é também um sintoma grave: quando tudo precisa ser judicializado, o pacto social está rompido. A Justiça vira o SUS das instituições — sobrecarregada, lenta, remendada, mas ainda a única que funciona.

O que poucos admitem é que o Judiciário não tem estrutura para sustentar esse papel. Um magistrado não pode substituir o planejamento sanitário de um Estado inteiro. A sentença que manda fornecer um remédio individual pode desorganizar o orçamento da saúde pública. Cada decisão é justa em si mesma, mas, somadas, produzem caos administrativo. O sistema sucumbe ao peso da boa intenção.

A judicialização também expõe uma dimensão política inquietante. O Judiciário não é eleito, não possui orçamento autônomo ilimitado, mas assume decisões que afetam a vida de milhões de cidadãos. É uma forma de ativismo forçado pelo vácuo administrativo. Cada liminar ou sentença provisória que garante um direito é, em última análise, a prova de que o Estado deixou de cumprir seu papel primário.

A solução não virá de mais processos, mas de menos omissões. É preciso devolver ao Executivo a responsabilidade que a Constituição lhe confiou e que o Judiciário, na prática, vem assumindo por inércia alheia. Isso exige uma mudança de cultura política e jurídica. O ativismo judicial, tão celebrado em certos círculos, não pode ser confundido com substituição do Estado. O juiz é o garantidor da legalidade, não o executor da política pública.

A sociedade também precisa amadurecer. Não basta acionar o Judiciário; é preciso exigir políticas eficazes. A Constituição não pode continuar sendo interpretada como catálogo de desejos. O que falta não é direito, é execução. O excesso de promessas e a escassez de resultados formam a combinação perfeita para a frustração coletiva.

Enquanto isso, o Judiciário se vê num labirinto: se decide, é ativista; se não decide, é omisso. É o dilema do poder que se tornou refém das carências sociais. A toga virou colete de salvamento, mas a embarcação institucional continua fazendo água.

No fim das contas, a judicialização da miséria é o retrato mais cruel do nosso fracasso coletivo. O Estado promete, não cumpre; o cidadão sofre, recorre; o juiz decide, remenda. E assim seguimos, transformando o Judiciário em depósito de esperanças frustradas.

O Brasil precisa resgatar o sentido original da Justiça: não o de distribuir remédios, mas de garantir que o Estado cumpra a Constituição. Quando a sentença se torna remédio de primeira necessidade, é sinal de que a política adoeceu.

É urgente recolocar cada poder em seu devido lugar. O Executivo deve governar, o Legislativo deve legislar e o Judiciário deve julgar e não administrar a miséria. A Justiça pode corrigir o erro, mas não pode ser o único remédio de um Estado enfermo.

A judicialização da miséria não é vitória da cidadania é a confissão de falência estatal. E, enquanto o Estado permanecer ineficiente, a toga continuará sendo o último abrigo do desespero. Mas justiça não é caridade: é dever. E dever não se implora em juízo; se cumpre na prática.

Para que o Brasil avance, é preciso compreender que o problema não está na Justiça, mas no abandono do Estado. A sociedade precisa se organizar, cobrar resultados, planejar políticas eficazes e garantir que os direitos previstos na Constituição não dependam de liminares individuais para existir. Até lá, o Judiciário continuará sendo o salvador da cidadania negligenciada e paradoxalmente, o último guardião da dignidade humana em um país que insiste em falhar com seus próprios cidadãos.

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