Vivemos em um país marcado por profundas desigualdades históricas, sociais e econômicas. No entanto, nossa Constituição Federal de 1988 consagrou um dos princípios mais belos e desafiadores do constitucionalismo contemporâneo: o princípio da igualdade. À primeira vista, pode parecer um comando simples — tratar todos de maneira igual. Mas, quando olhamos de perto a realidade concreta das pessoas que nos cercam, percebemos o quanto a igualdade constitucional exige, acima de tudo, sensibilidade jurídica, empatia genuína e a coragem política de tratar as pessoas de maneira diferente.
A Armadilha da Igualdade Formal
A ideia de igualdade, frequentemente resumida na máxima de “igualdade formal”, pressupõe que todos os seres humanos sejam submetidos às mesmas regras, sem distinção. É o velho brocardo que diz: “a lei é igual para todos”. No entanto, essa compreensão rasa e superficial da isonomia ignora completamente o quanto a realidade concreta e complexa dos sujeitos sociais difere entre si. Aplicar a mesma regra — de forma cega, indiferente e abstrata às diferenças concretas — é, na verdade, perpetuar e aprofundar as desigualdades já existentes.
Aqui nasce a verdadeira essência do que a doutrina constitucionalista chama de “igualdade material”. Ela já está claramente presente em diversos dispositivos constitucionais, especialmente no artigo 5º, que consagra os direitos fundamentais de forma aparentemente universal, mas que reconhece, ao mesmo tempo, a necessidade de proteção especial de grupos vulneráveis. O artigo 3º, que traz os objetivos fundamentais da República, é ainda mais eloquente ao determinar como objetivo da União “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Tratar diferentes como iguais é, definitivamente, uma injustiça. Por essa razão profunda, o Direito brasileiro reconhece e estimula políticas públicas transformadoras de ação afirmativa, destinadas justamente a corrigir desvantagens históricas acumuladas. O fundamento não é privilégio arbitrário, mas reparação histórica e promoção efetiva da justiça social. É o reconhecimento de que a neutralidade jurídica aparente, muitas vezes, beneficia apenas quem já está em situação de vantagem econômica, social e cultural.
O Reconhecimento Constitucional da Diferença
O Supremo Tribunal Federal, em decisões paradigmáticas como as que avaliam a constitucionalidade das ações afirmativas, reafirmou com clareza que a igualdade prevista na Constituição só pode ser efetivamente alcançada quando o Estado assume o compromisso de tratar os desiguais de forma desigual, na medida exata de suas desigualdades. Não se trata de afastar ou desrespeitar o princípio da isonomia, mas de reconhecê-lo como um instrumento dinâmico de transformação social e de justiça redistributiva. Afinal, não há justiça social verdadeira quando a equidade é descartada em nome de uma falsa neutralidade que apenas reproduz privilégios históricos.
As políticas de cotas raciais e sociais em universidades e concursos públicos exemplificam esse reconhecimento. O Brasil está entre os países mais desiguais do mundo, e parte significativa dessa desigualdade encontra suas raízes na escravização de africanos e afrodescendentes que durou mais de três séculos, deixando marcas profundas até os dias de hoje. Pessoas negras e pardas ainda ganham menos, estudam menos, morrem mais cedo e têm menos acesso a oportunidades de qualidade. Reconhecer essa realidade brutal e agir para corrigi-la através de cotas não é um “privilégio”, mas um ato de justiça reparadora. É tratar diferente quem foi tratado diferente historicamente.
A Dignidade e os Direitos Específicos
Da mesma forma, a luta pelos direitos da população LGBTQIA+ representa essa compreensão profunda da igualdade material. Pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais sofreram — e ainda sofrem — discriminação sistemática, violência, exclusão social e negação de direitos básicos. O ordenamento jurídico brasileiro vem, paulatinamente, reconhecendo a necessidade de proteção especial: a decisão do Supremo Tribunal Federal que criminalizou a homofobia e a transfobia, as leis que garantem o direito ao casamento igualitário, as decisões que permitem a retificação do nome e do sexo nos registros públicos. Todas essas conquistas jurídicas representam, precisamente, o reconhecimento de que pessoas LGBTQIA+ precisam ser tratadas diferente pela lei para que sua igualdade e dignidade sejam preservadas.
O Estatuto do Idoso, por sua vez, é outro monumento jurídico ao reconhecimento da diferença. Pessoas idosas enfrentam vulnerabilidades específicas: problemas de saúde, isolamento social, vulnerabilidade econômica e, frequentemente, negligência familiar. A lei, portanto, estabelece direitos e proteções especiais: prioridade no atendimento em serviços públicos e privados, normas contra abuso e abandono, direito à convivência familiar e comunitária. Isso não é “privilégio de idosos”, mas reconhecimento de suas necessidades concretas e demandas específicas que o direito ordinário não atende.
As leis para pessoas com deficiência — a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) — carregam a mesma lógica. Pessoas com deficiência enfrentam barreiras arquitetônicas, atitudinais e de acessibilidade que a população em geral não enfrenta. Garantir acessibilidade, fazer ajustes razoáveis, reservar vagas em concursos, assegurar direitos reprodutivos e sexuais: tudo isso é tratar diferente para promover igualdade substantiva. É reconhecer que a diferença existe e que o Direito tem o dever de acolhê-la com dignidade.
O Desafio Prático da Advocacia
No cotidiano forense, na prática concreta da advocacia, essa compreensão profunda da igualdade material revela-se essencial. O operador do Direito — seja juiz, promotor ou advogado — não pode ignorar o contexto de vulnerabilidade, de discriminação histórica e de exclusão que atravessa parcela significativa da população brasileira. Nossa responsabilidade não é apenas técnica, não é apenas dominar códigos e procedimentos. Passa, necessariamente, pelo olhar humano, pela sensibilidade jurídica genuína e pelo compromisso com a dignidade da pessoa humana em sua concretude.
Quando um jovem negro, de origem pobre, pleiteia uma vaga em universidade pública através de cotas, não se trata apenas de um processo administrativo: trata-se de corrigir séculos de exclusão. Quando uma pessoa trans busca alterar seu nome e sexo nos registros públicos, não se trata de um mero procedimento cartorário: trata-se de reconhecer sua identidade e sua humanidade. Quando uma pessoa com deficiência demanda acessibilidade em um prédio público, não se trata de um capricho: trata-se de garantir acesso a direitos fundamentais. Quando um idoso é vítima de negligência familiar, as proteções legais não são “favor”, mas dever jurídico de preservação da dignidade.
A Igualdade Como Transformação
Portanto, tratar as pessoas com diferença é reconhecer o valor inegável das múltiplas existências que compõem o Brasil real, para além de abstrações. É entender, profundamente, que a igualdade material somente será possível quando a diferença for não apenas tolerada, mas genuinamente reconhecida, respeitada e acolhida pelo ordenamento jurídico. Não como exceção, não como concessão do Estado, mas como regra fundante de uma compreensão moderna, democrática e humanista da justiça.
Promover a igualdade constitucional é agir, concretamente e sem hesitação, para garantir meios reais, oportunidades genuínas e condições justas para todos. Especialmente para aqueles que historicamente nunca tiveram voz no processo democrático, para aqueles que foram invisibilizados pela lei e pela sociedade, para aqueles cujas existências foram marginalizadas.
A Constituição de 1988 nos convidou para um projeto radical de transformação social. Ela reconheceu que a igualdade não é um ponto de partida, mas um horizonte que devemos alcançar juntos, com coragem política e compromisso com a justiça. Reconhecer e acolher as diferenças é, portanto, o caminho para promover essa igualdade real e substantiva que o Brasil tanto necessita.
Promover a diferença é promover a justiça. E justiça, no fim das contas, é a razão maior de ser do Direito e a promessa que fizemos ao nos tornamos advogados e advogadas.
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