Amanda Dias de Almeida 2

Entre a utopia da simplicidade e o labirinto fiscal: A reforma tributária do consumo e o desafio de construir um verdadeiro IVA no Brasil

Postado em 05 de novembro de 2025 Por Amanda Dias de Almeida Acadêmica de Direito, atualmente cursando o 8º período da Universidade Católica de Pernambuco. Atua na área de Direito Público na 3ª Vara da Fazenda Pública da Capital, com ênfase nas esferas cível, administrativa e tributária. Desenvolve pesquisas sobre eficiência e ética do dever fiscal.

A Emenda Constitucional nº 132/2023 inaugura uma das mais ambiciosas reformas tributárias da história brasileira. Com a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), pretende-se simplificar o sistema de tributos sobre o consumo, substituindo cinco tributos (ICMS, ISS, IPI, PIS e COFINS) por um modelo dual de Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA). No entanto, a complexidade estrutural, o longo período de transição, as exceções e a centralização decisória no Comitê Gestor suscitam dúvidas quanto à real efetividade dessa simplificação. Este artigo analisa, à luz dos princípios da neutralidade, da não cumulatividade e do federalismo fiscal, se a EC 132/2023 representa um avanço estrutural ou apenas a reconfiguração da complexidade. Ao final, propõe caminhos para a concretização da verdadeira simplicidade tributária.

1. Introdução

A promessa de uma reforma tributária que simplifique e racionalize o sistema brasileiro é uma constante histórica. Desde a Constituição de 1988, o país acumula debates, diagnósticos e tentativas frustradas de conciliar eficiência econômica com justiça fiscal.

O atual modelo de tributação sobre o consumo – composto por ICMS, ISS, IPI, PIS e COFINS – é o retrato acabado da irracionalidade: sobreposição de competências, cumulatividade, insegurança jurídica e um custo de conformidade que sufoca a produtividade nacional.

A Emenda Constitucional nº 132/2023 surge como uma resposta institucional a esse cenário. Seu desenho cria um IVA dual – com IBS (subnacional) e CBS (federal) – e promete eliminar distorções, unificar bases e modernizar o sistema. O problema central, contudo, é saber se essa promessa de simplicidade resiste à realidade política e operacional do país.

2. O Sistema Tributário Atual

O sistema brasileiro de tributos sobre o consumo é fragmentado e regressivo. O ICMS, com suas dezenas de legislações estaduais, transformou-se em arena de guerra fiscal. O ISS, de competência municipal, gera disputa federativa e falta de padronização. Já o PIS e a COFINS, embora federais, acumulam distorções de cumulatividade e regimes especiais.

Como consequência, o ambiente de negócios brasileiro é um dos mais onerosos do mundo em termos de cumprimento tributário. Segundo dados do Banco Mundial, as empresas brasileiras gastam mais horas por ano para pagar tributos do que em qualquer outro país da América Latina. A complexidade, portanto, não é apenas jurídica, mas também econômica e institucional.

3. A Emenda Constitucional nº 132/2023 e o Modelo do IVA Dual

A EC 132/2023 propõe substituir a multiplicidade de tributos por um IVA dual, que incidirá de forma ampla sobre bens e serviços. O IBS, administrado por um Comitê Gestor, reunirá as competências de estados e municípios, enquanto a CBS será de competência federal.

A intenção é clara: garantir não cumulatividade plena, simplificação e neutralidade. No entanto, o caminho traçado é sinuoso. A transição de cinquenta anos, a manutenção de regimes diferenciados e a introdução de exceções setoriais corroem a coerência do modelo.

Além disso, o Comitê Gestor, composto majoritariamente por representantes estaduais, reduz o protagonismo municipal e cria uma estrutura centralizada que ameaça o equilíbrio federativo. Essa governança tributária centralizada pode gerar disputas constitucionais, questionando a própria essência da autonomia dos entes federados.

4. Princípios Constitucionais e Implicações

A promessa de simplificação só pode ser avaliada à luz dos princípios constitucionais que regem o sistema tributário.

O princípio da neutralidade exige que o tributo não interfira nas decisões econômicas. No entanto, as múltiplas exceções, alíquotas diferenciadas e o Imposto Seletivo (destinado a desestimular certos consumos) introduzem distorções que rompem a neutralidade ideal.

A não cumulatividade, pilar do IVA, é comprometida quando o legislador mantém regimes especiais que dificultam o aproveitamento pleno de créditos. E o federalismo fiscal, em tese preservado, é tensionado pela criação de um Comitê Gestor com poder decisório centralizado.

O resultado é uma reforma que busca simplicidade, mas entrega complexidade sob nova forma: um sistema tecnicamente moderno, porém politicamente fragmentado.

5. O Novo Ciclo de Complexidade

O discurso da reforma como panaceia para os males tributários revela-se ilusório. A coexistência, por meio século, entre o sistema antigo e o novo criará uma sobreposição normativa que multiplicará litígios e incertezas.

A advertência clássica de Geraldo Ataliba — “imposto bom é imposto velho” — ressurge como profecia. A segurança jurídica sedimentada em décadas de jurisprudência será sacrificada em nome de uma simplificação que, por ora, permanece teórica.

Ao invés de eliminar a complexidade, a reforma pode institucionalizar uma nova camada de dificuldades operacionais, transferindo o contencioso dos tribunais estaduais para o Supremo Tribunal Federal, agora como árbitro das disputas entre o IBS e a CBS.

 6. Da Reforma Formal à Reforma Real

A verdadeira simplificação tributária não se decreta por emenda constitucional; constrói-se pela execução técnica, pela clareza normativa e pela coerência federativa.

Para que o IVA brasileiro cumpra sua função, três medidas estruturais provam-se indispensáveis:

1. Uniformização imediata da legislação infraconstitucional – As leis complementares que regulamentarão o IBS e a CBS devem ser elaboradas de forma simultânea e coordenada, com base em linguagem jurídica única, evitando o retorno de múltiplas interpretações.

2. Revisão da governança federativa – O Comitê Gestor deve ser reestruturado de modo a garantir a paridade de representação entre estados e municípios, com mecanismos de transparência e controle social que impeçam o surgimento de um “super órgão” sem legitimidade democrática.

3. Redução drástica do período de transição – Um prazo de cinquenta anos perpetua a duplicidade de sistemas. Um cronograma de transição reduzido a dez anos, com compensações automáticas e mecanismos tecnológicos de arrecadação compartilhada, seria mais racional e compatível com o princípio da eficiência administrativa.

Ademais, é essencial fortalecer o papel do contribuinte como agente fiscalizador, por meio de transparência plena da carga tributária embutida nos preços e da educação fiscal voltada à cidadania tributária.

A reforma só será efetiva quando o sistema for compreensível, previsível e transparente. Em outras palavras, quando o cidadão comum puder entender quanto paga e para onde vai cada centavo arrecadado.

 7. Conclusão

A Emenda Constitucional nº 132/2023 representa, mais do que uma reforma, uma oportunidade histórica de redefinir a relação entre Estado, contribuinte e federação. Contudo, a promessa de simplicidade não se concretizará sem vontade política, técnica e institucional.

O Brasil precisa compreender que a simplificação não é produto de desenho legislativo, mas de governança e cultura tributária. Enquanto a burocracia prevalecer sobre a racionalidade, o país continuará refém de um sistema complexo, regressivo e litigioso.

A reforma tributária do consumo será verdadeira apenas quando a lei deixar de ser um labirinto e se tornar uma ponte entre arrecadação eficiente, neutralidade econômica e justiça social. Até lá, a simplicidade seguirá sendo nossa utopia fiscal.

Referências Bibliográficas

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros, 1999.

DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário Brasileiro: Fundamentos Constitucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

MUSGRAVE, Richard A. The Theory of Public Finance. New York: McGraw-Hill, 1959.

APPY, Bernard. Reforma Tributária: Por que o Brasil precisa de um IVA. São Paulo: CCiF, 2023.

PESSOA, Samuel. Os Impactos Macroeconômicos da Reforma Tributária. Revista Brasileira de Economia, v. 77, n. 2, 2024.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023.

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