Vivemos em uma sociedade hiperconectada, onde as redes sociais tornaram-se o principal espaço de interação e expressão. Se, por um lado, a internet democratizou a comunicação, por outro, também intensificou formas de violência simbólica, entre elas, a gordofobia digital, que consiste na hostilização, ridicularização e exclusão de pessoas em razão de seu corpo.
A discriminação contra pessoas gordas, embora antiga, ganhou novas dimensões com o ambiente virtual. Memes, comentários depreciativos e “piadas” disfarçadas de preocupação com a saúde perpetuam a ideia de que corpos fora do padrão são moralmente inferiores. Essa prática, ainda naturalizada, viola diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988, e revela o quanto a sociedade ainda associa valor moral à aparência física.
O ambiente digital potencializa essas práticas. A lógica dos algoritmos privilegia conteúdos virais, e, muitas vezes, o que viraliza é justamente o discurso de ódio travestido de humor. O resultado é uma cultura de exposição pública, em que o corpo se transforma em espetáculo e a dor alheia ao entretenimento.
A Constituição assegura, em seu art. 5º, incisos V e X, a proteção à honra, à imagem e à intimidade, garantindo reparação por danos morais. Quando a ridicularização de um corpo ocorre em rede social, o dano é amplificado não apenas pela exposição, mas pela viralização que multiplica o constrangimento e a dor.
O Código Civil Brasileiro (arts. 186 e 927) reforça que todo aquele que causar dano a outrem deve repará-lo. Assim, a gordofobia digital enquadra-se como ilícito civil e, em muitos casos, pode configurar crime contra a honra, quando há ofensa direta e intencional.
O avanço da jurisprudência demonstra uma crescente sensibilidade dos tribunais diante dessas situações. Decisões recentes têm reconhecido o dever de indenizar em casos de publicações gordofóbicas, compreendendo que a exposição de corpos fora do padrão em contextos de ridicularização fere a autoestima e a imagem da pessoa.
Além disso, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) determina que os provedores de aplicações são responsáveis pela remoção de conteúdos ofensivos mediante ordem judicial, o que reforça o papel das plataformas na proteção da dignidade dos usuários. Ainda que a liberdade de expressão seja um direito constitucional, ela não pode servir de escudo para práticas discriminatórias.
Apesar da gravidade do problema, o ordenamento jurídico brasileiro ainda carece de uma lei específica que combata a gordofobia digital. Esse vácuo normativo contribui para a impunidade e para a banalização do discurso de ódio, frequentemente relativizado como mera “opinião pessoal”.
Nesse contexto, a Proposta de Projeto de Lei sobre Gordofobia Digital surge como uma iniciativa acadêmica voltada à reflexão e ao aprimoramento legislativo. Embora ainda não tenha sido oficialmente apresentada, a proposta busca não apenas criminalizar a conduta, mas também promover a educação digital e a conscientização social.
Entre as medidas sugeridas estão a criação de campanhas educativas voltadas para o respeito à diversidade corporal, a inclusão do tema nos currículos escolares — especialmente em disciplinas ligadas à cidadania e aos direitos humanos —, o estabelecimento de protocolos para que as plataformas digitais identifiquem e removam conteúdos gordofóbicos, a previsão de sanções proporcionais à gravidade das ofensas com foco tanto na responsabilização quanto na reeducação dos ofensores, a oferta de apoio psicológico gratuito às vítimas de gordofobia online e o incentivo à pesquisa acadêmica sobre os impactos sociais e psicológicos da discriminação baseada no peso corporal.
A proposta visa contribuir para a construção de uma cultura digital mais empática, inclusiva e comprometida com a dignidade humana. Essas medidas representam não apenas instrumentos de punição, mas também de prevenção e transformação cultural, ao reconhecer que a gordofobia constitui uma forma de violência estrutural e simbólica. Assim, o projeto busca promover uma mudança de paradigma social, estimulando o respeito à diversidade corporal e fortalecendo os valores de igualdade e justiça no ambiente virtual.
Cabe à advocacia contemporânea compreender que o exercício do Direito vai além da aplicação técnica das normas. O advogado é também um agente de transformação social, responsável por promover o respeito à diversidade e a defesa intransigente da dignidade humana.
No contexto digital, essa missão ganha novos contornos. É papel da advocacia denunciar práticas de exclusão, orientar vítimas sobre seus direitos e contribuir para a construção de uma cultura jurídica mais empática e acessível. A atuação ética dos profissionais do Direito é fundamental para que a internet deixe de ser um território de impunidade e se torne um espaço de convivência justa e plural.
A gordofobia não é apenas uma questão estética — é uma violação ética, social e jurídica. Ela reforça desigualdades, afeta a autoestima e exclui pessoas de espaços sociais, profissionais e afetivos. No ambiente digital, onde a visibilidade é constante, a responsabilidade deve ser compartilhada: usuários, plataformas e Estado precisam atuar conjuntamente para promover um espaço virtual mais humano.
Defender corpos reais é defender o direito de existir sem ser alvo de ódio. O combate à gordofobia digital é, antes de tudo, uma reafirmação do compromisso do Direito com a dignidade, a igualdade e o respeito — valores que sustentam a própria essência da advocacia.
Combater a gordofobia digital é mais do que uma pauta de inclusão: é um ato de justiça social. O Direito não pode permanecer inerte diante de um preconceito que se reinventa nas telas e destrói vidas com palavras. Cada comentário ofensivo, cada meme que ridiculariza corpos reais, é uma agressão à essência da dignidade humana — fundamento maior da nossa Constituição.
Enquanto o corpo for motivo de exclusão, o Direito tem o dever de reagir. É nas redes que hoje se travam as batalhas morais do nosso tempo, e é nelas que a advocacia deve reafirmar seu papel transformador.
Silenciar diante da gordofobia é permitir que o ódio se normalize — e não há neutralidade possível quando a humanidade está em jogo.
O futuro digital precisa ser um espaço de empatia, respeito e equidade. Que a justiça, enfim, também ocupe o feed.
Referências:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 31 out. 2025.
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF: Presidência da República, 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 31 out. 2025.
BRASIL. Marco Civil da Internet. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Brasília, DF: Presidência da República, 2014. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 31 out. 2025.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA PARA O ESTUDO DA OBESIDADE E DA SÍNDROME METABÓLICA (ABESO). Diretrizes Brasileiras de Obesidade 2022. São Paulo: ABESO, 2022. Disponível em: https://abeso.org.br/. Acesso em: 31 out. 2025.
SENADO FEDERAL. O que é gordofobia? Brasília, DF: Senado Federal, 2023. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias. Acesso em: 31 out. 2025.
PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
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