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O Direito e o Delírio da Linguagem Indeterminada: O PL 4/2025, o Novo Código Civil e a Ilusão da Justiça Subjetiva

Postado em 10 de maio de 2025 Por Alcymar Monteiro Júnior Advogado — Pós-graduado em Advocacia Cível, Ouvidor Geral Adjunto e Conselheiro Estadual da OAB-PE.

A proposta de reforma do Código Civil, materializada no Projeto de Lei n.º 4/2025, pretende, ao menos em seus enunciados inaugurais, “modernizar” as bases das relações jurídicas privadas no Brasil. A iniciativa, no entanto, não se limita à mera atualização técnica de institutos obsoletos: ela reconfigura o próprio papel da lei, renunciando à clareza normativa em nome de uma pretensa adaptação ao “espírito do tempo”. O que se vende como avanço civilizatório, no fundo, pode representar uma erosão silenciosa dos fundamentos do Estado de Direito. Ao multiplicar conceitos jurídicos indeterminados e deslocar o centro da normatividade para o arbítrio hermenêutico, o PL 4/2025 não somente reescreve a lei: reescreve o papel do Judiciário, do Legislativo e, por consequência, da própria legalidade.

O uso de conceitos jurídicos indeterminados é, em si, fenômeno inevitável em qualquer sistema normativo que lide com a complexidade da vida social. O problema surge quando o legislador, em nome de uma suposta flexibilidade, abdica da sua função precípua: criar normas claras, cogentes e inteligíveis. No PL 4/2025, essa abdicação parece se tornar princípio. Expressões como “função social”, “finalidade essencial” e “utilização razoável” se espalham pelo texto, como se fossem critérios objetivos, quando, na verdade, nada mais são do que convites solenes à interpretação criativa. Não se trata de um simples erro técnico — embora já o fosse suficientemente grave. Trata-se, com efeito, de um gesto político: transferir para o juiz, e não mais para o parlamento, o poder de dizer o Direito em sua forma mais originária. É a consagração da indeterminação como norma.

A função da lei em um Estado Democrático não é emocionar — é limitar. Seu papel não é acolher sentimentos difusos ou angústias hermenêuticas, mas estabelecer critérios objetivos que permitam aos cidadãos prever, com um mínimo de dignidade, as consequências jurídicas de seus atos. A proposta de reforma, no entanto, parece confundir a norma com um oráculo pós-moderno: em vez de determinar condutas, oferece enigmas. A cada artigo redigido com poesia nebulosa, escancara-se a porta para o voluntarismo judicial. O que deveria ser o espaço da legalidade transforma-se em laboratório de exegese criativa. Fala-se muito em “diálogo das fontes”, mas o que se propõe, no fundo, é um monólogo do intérprete — agora guindado à posição de legislador por omissão. E como se isso não bastasse, o PL 4/2025 ainda pretende justificar a fluidez normativa com base na jurisprudência — essa entidade volátil que muda de tom conforme o sopro dos ventos sociais e das composições de câmara.

Tome-se, por exemplo, o tratamento dispensado à chamada “função social do contrato” — conceito que já vive, no Código atual, entre a seriedade e o folclore jurídico. O PL 4/2025, em verdadeiro surto de prestidigitação legislativa, promove um crescimento mais de cinco vezes nas menções à tal função, como se repetir o mantra com fervor litúrgico fosse suficiente para garantir justiça social. Uma das pérolas do texto afirma, solenemente, que “a cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito”. Ora, o que exatamente configura essa violação? O silêncio do legislador é ensurdecedor — e não por humildade. A proposta não define o núcleo essencial do que seria essa “função”, tampouco fornece balizas mínimas. Em outras palavras, o PL não legisla: convida o juiz a experimentar. E assim, cada contrato firmado sob a égide do novo Código será, na prática, uma aposta hermenêutica — um título ao portador de insegurança.

Há quem veja, nesse novo Código, uma ode à justiça material. Ocorre que, sob a capa dessa virtuosa intenção, esconde-se um sistema normativo que desiste de oferecer respostas previsíveis para os cidadãos e, pior, para os operadores do Direito. O resultado não é justiça: é loteria. O novo Código se propõe a substituir a legalidade pela sensibilidade do intérprete — que, como se sabe, varia conforme o foro, o dia da semana e, não raro, o humor da parte. A segurança jurídica, essa velha senhora já debilitada por décadas de voluntarismos jurisprudenciais, agora é empurrada escada abaixo por um texto que consagra a incerteza como critério. E tudo isso vem embalado em um discurso “humanizado”, como se a previsibilidade normativa fosse uma perversão tecnocrática e o arbítrio hermenêutico, um sinal de empatia civilizatória. É o custo Brasil em sua forma mais refinada: insegurança regulatória com verniz progressista.

O Projeto de Lei n.º 4/2025 pretende modernizar o Código Civil, mas o que entrega é uma peça fluida, sentimental e normativamente gaseificada — um verdadeiro tratado de subjetividades elegantes. Em vez de atualizar institutos à luz da experiência jurídica contemporânea, abdica do papel estruturante da lei e entrega ao Judiciário um microfone sem roteiro. O Direito, nesse novo arranjo, deixa de ser norma para se tornar narrativa. Modernizar, sim — mas com critério, com responsabilidade e, sobretudo, com a consciência de que a democracia não floresce no terreno da incerteza. Há um limite entre o progresso legislativo e a alquimia jurídica, e o PL 4/2025 pisa nessa fronteira com entusiasmo olímpico. A esperança, agora, é que o Parlamento não sucumba ao canto das sereias interpretativas e preserve o que resta do velho e bom princípio da legalidade.

Isso não significa, por óbvio, que o Código Civil de 2002 deva ser imune à crítica ou impermeável ao tempo. Modernizar é necessário — mas exige técnica legislativa, fidelidade à legalidade e responsabilidade institucional. Conceitos como “função social” e “interesse público”, se quiserem figurar com protagonismo normativo, devem vir acompanhados de balizas mínimas, exemplos legislativos, elementos objetivos e âncoras interpretativas que limitem o arbítrio hermenêutico. A lei deve oferecer diretrizes, não enigmas. O desafio do legislador contemporâneo é justamente esse: criar normas que dialoguem com a complexidade da vida social sem ceder à tentação do relativismo normativo. Em vez de exaltar a subjetividade como virtude, talvez devêssemos resgatar um valor que, embora antiquado, ainda é a coluna vertebral do Estado de Direito: a previsibilidade. Do contrário, a lei se converte em um espelho polido das subjetividades do momento, refletindo mais o humor do intérprete do que a vontade do legislador.

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