Resumo
O presente artigo analisa, à luz do Direito Constitucional e Administrativo, a controvérsia em torno da obrigatoriedade de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para o exercício da advocacia pública. A controvérsia se intensifica diante do julgamento do Recurso Extraordinário nº 609.517/RO pelo Supremo Tribunal Federal, que poderá consolidar a tese da facultatividade da inscrição quando a atuação jurídica for restrita à esfera institucional. Verificam-se as repercussões dessa interpretação sobre a titularidade dos honorários de sucumbência, especialmente frente ao Estatuto da Advocacia e ao Código de Processo Civil de 2015. Por fim, o ensaio destaca os efeitos jurídicos e institucionais da possível transformação sobre os procuradores municipais, os quais historicamente enfrentam déficit de reconhecimento normativo.
1. Introdução
A exigência de inscrição na OAB para o exercício da advocacia pública é tema de denso relevo jurídico, não apenas pela sua implicação funcional, mas sobretudo pelos efeitos institucionais e simbólicos que representa. A distinção entre o advogado público — servidor investido em cargo de natureza jurídica, mediante concurso público — e o advogado privado — profissional liberal sujeito à regulação corporativa — revela tensões entre regimes jurídicos que não se comunicam integralmente.
No bojo do Recurso Extraordinário nº 609.517/RO, discute-se se é legítima a exigência de inscrição na OAB como condição para o exercício de funções próprias da Advocacia Pública, tais como consultoria, assessoramento jurídico e representação judicial do ente federado. A resolução desse impasse poderá redesenhar os contornos institucionais da advocacia pública, especialmente em relação à autonomia funcional, legitimidade técnica e tratamento remuneratório.
2. A Tese Majoritária no STF e o Paradigma da Função Pública
O julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal, relatado pelo Ministro Dias Toffoli, indica a formação de maioria no sentido de que a atuação do advogado público, quando limitada ao desempenho de suas funções institucionais, não exige inscrição na OAB. Tal entendimento se ancora no reconhecimento de que a advocacia pública integra o núcleo das funções essenciais à justiça (art. 131 da CF/88), sendo regida por regime jurídico-administrativo próprio, diverso da atividade advocatícia tradicional.
Decorre a tese da desnecessidade de inscrição da compreensão de que o advogado público não exerce profissão liberal, mas função estatal, investida de deveres legais e prerrogativas funcionais, regida por princípios da supremacia do interesse público e indisponibilidade da função administrativa.
3. Honorários de Sucumbência: Titularidade e Conflito de Regimes Jurídicos
3.1 O Estatuto da OAB e o CPC de 2015
De acordo com o do art. 22 da Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da OAB), os honorários de sucumbência são de titularidade do advogado. A esse fundamento soma-se o art. 85, §14, do CPC de 2015, o qual estabelece a natureza privada e personalíssima dos honorários, inclusive quando decorrentes de atuação judicial em nome de ente público.
Entretanto, persiste a indagação: se o advogado público não está inscrito na OAB, ainda assim teria direito à percepção desses valores, mesmo sendo o “advogado” a pessoa legitimada expressamente pela lei? A tensão entre os regimes leva à necessidade de uma interpretação teleológica e sistêmica, respeitando a finalidade pública da atuação jurídica institucional.
3.2 Jurisprudência e Normas Específicas da Advocacia Pública
O art. 85, §19, do CPC confere legitimidade à percepção de honorários pela Advocacia Pública, condicionando sua distribuição a regulamentação específica. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 1.176.753/PR (Tema 1.176), reconheceu a validade da percepção de honorários de sucumbência pelos procuradores públicos como forma de valorização da carreira, sem contrariar os princípios da moralidade e legalidade.
A jurisprudência tem firmado que a natureza jurídica dos honorários, quando pagos à Advocacia Pública, continua sendo verba privada, ainda que sob regime de repartição e controle institucional.
4. Facultatividade da Inscrição na OAB: Benefícios e Desvantagens
4.1 Vantagens Institucionais e Funcionais
Afirmação da natureza pública da função.
Autonomia da carreira frente à OAB.
Redução de custos administrativos e pessoais.
Evita duplicação de regimes disciplinares.
4.2 Riscos e Fragilidades da Não Inscrição
Insegurança jurídica quanto aos honorários.
Supressão de prerrogativas institucionais.
Fragilidade funcional sem proteção da OAB.
Assimetria entre entes federativos.
Para além dos sobreditos riscos, é preciso reconhecer que, mesmo defronte a possibilidade jurídica de dispensa da inscrição na OAB para os advogados públicos, há fundamentos sólidos que justificam — e recomendam — a manutenção do registro por parte dos procuradores municipais.
Em primeiro lugar, a inscrição ativa na Ordem reforça a legitimidade técnica e institucional do procurador municipal, conectando-o ao universo jurídico mais amplo e garantindo acesso a uma gama de prerrogativas e garantias que, no tempo presente, permanecem mais robustamente protegidas no seio da OAB. A atuação administrativa e judicial dos procuradores, embora institucional, frequentemente enfrenta desafios que demandam uma rede de proteção institucional eficiente, especialmente em contextos de pressões políticas e instabilidade local.
Sob o prisma remuneratório, a manutenção da inscrição evita dúvidas interpretativas sobre a titularidade de honorários de sucumbência, tendo em vista o arcabouço normativo (arts. 22 da Lei 8.906/94 e 85, §14 do CPC/2015) que expressamente os vincula ao “advogado”. Tal condição, portanto, confere segurança jurídica adicional ao exercício do direito à percepção desses valores, além de contribuir para a valorização da carreira.
Para mais, no atinente ao aspecto simbólico e corporativo, a permanência na OAB fortalece a identidade profissional do procurador municipal como agente essencial à Justiça, promovendo sua interlocução com outras carreiras jurídicas e conferindo-lhe voz nos debates institucionais da advocacia. Trata-se, portanto, de gesto de afirmação institucional e reforço ao papel crítico desempenhado pelos procuradores na defesa do interesse público municipal.
Finalmente, a inscrição na OAB não representa apenas um vínculo corporativo, mas um instrumento de empoderamento jurídico e institucional do agente público investido na função de representação do ente federado. Em um cenário ainda marcado por déficits normativos, especialmente no nível municipal, a preservação desse vínculo pode representar um diferencial estratégico em favor da valorização, proteção e efetividade do exercício da advocacia pública local.
5. O Voto do Ministro Gilmar Mendes e o Reconhecimento da Carreira de Procurador Municipal
Em voto no RE 609.517/RO, o Ministro Gilmar Mendes reconheceu expressamente a constitucionalidade da carreira de procurador municipal, enfatizando que a ausência de menção textual na Constituição não afasta a obrigatoriedade de estruturação jurídica nos Municípios. Para o referido Ministro, a autonomia federativa impõe o dever de organização da Advocacia Pública municipal como carreira de Estado: “A Advocacia Pública municipal deve ser entendida como função essencial à Justiça, embora não esteja nominalmente prevista no texto constitucional, pois decorre diretamente da autonomia federativa e da necessidade de assessoramento jurídico qualificado e permanente dos Municípios.”[1]
Referida compreensão reforça a legitimidade funcional da procuradoria municipal e impõe aos entes locais o dever de prover carreiras estáveis, concursadas e estruturadas, nos moldes do art. 37 da Constituição.
5.1 Reflexos Presentes para os Procuradores Municipais
O reconhecimento pelo STF legitima a atuação dos procuradores municipais como função essencial à justiça, autorizando:
Valoração institucional e estruturação das procuradorias;
Legitimação para recebimento de honorários, mesmo sem inscrição na OAB;
Exigência de prerrogativas funcionais e proteção legal;
Atuação em prol de isonomia com outras carreiras jurídicas públicas.
6. Conclusão
A eventual consolidação da tese da facultatividade da inscrição na OAB para os advogados públicos tende a reforçar a natureza institucional da Advocacia Pública, desvinculando-a da lógica corporativa. Entretanto, referida transformação exige contrapartidas normativas que assegurem prerrogativas funcionais, estabilidade, valorização e remuneração compatível com a essencialidade da função.
Particularmente, os procuradores municipais ganham respaldo jurídico e jurisprudencial para exigir não apenas o reconhecimento de sua carreira, mas também sua efetiva estruturação nos moldes previstos pela Constituição da República.
Essa compreensão consolida a legitimidade funcional das procuradorias municipais e impõe aos entes federativos o dever de organizá-las como carreiras típicas de Estado, à luz do art. 37 da Constituição Federal.
Não obstante a admissibilidade jurídica da dispensa de inscrição na OAB para o exercício da função pública, conclui-se que a manutenção voluntária desse vínculo representa uma estratégia vantajosa para os procuradores municipais, porque amplia a proteção institucional, reforça a titularidade dos honorários de sucumbência e fortalece o papel político-jurídico da advocacia pública local no contexto federativo brasileiro.
Nota
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 609.517/RO. Rel. Min. Dias Toffoli, redator para acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 06 maio 2025 (sessão virtual).
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