A advocacia é, por excelência, uma profissão comprometida com a justiça, a equidade e a defesa dos direitos fundamentais. No contexto brasileiro, marcado por profundas desigualdades sociais, a atuação jurídica na defesa das crianças e adolescentes adquire uma dimensão ética e política de enorme relevância. O advogado, ao assumir a causa infantojuvenil, não apenas exerce um papel técnico, mas também contribui para a efetivação de direitos e para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
A proteção das crianças e adolescentes é um tema que transcende a mera aplicação do Direito. Envolve valores, sensibilidades e compromissos com o futuro coletivo. O artigo 227 da Constituição Federal de 1988 estabelece de forma clara e inequívoca que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais da criança e do adolescente, abrangendo desde a vida e a saúde até a educação, o lazer e à convivência familiar e comunitária.
A partir desse marco constitucional, e com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, o Brasil adotou a doutrina da proteção integral, alinhando-se aos princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989). Essa mudança paradigmática conferiu à infância e à juventude o status de sujeitos de direitos, rompendo com a antiga lógica tutelar que via crianças em “situação irregular” apenas como objeto de intervenção do Estado.
Nesse cenário, a advocacia desempenha um papel fundamental: assegurar que tais direitos sejam respeitados, fiscalizar o cumprimento das políticas públicas, representar crianças e adolescentes em processos judiciais e administrativos e promover o acesso à justiça. Contudo, o desafio contemporâneo é ampliar o engajamento dos profissionais do Direito nessa agenda, muitas vezes marginalizada dentro da própria cultura jurídica.
O presente artigo tem como objetivo refletir sobre o papel da advocacia na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, destacando sua importância histórica, ética e social, bem como os desafios e caminhos possíveis para uma prática jurídica mais comprometida com a efetividade da proteção integral.
A Constituição de 1988 representou um divisor de águas na história dos direitos humanos no Brasil. Ao consagrar a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III), a Carta Magna redefiniu o papel do Estado e da sociedade frente à infância e à adolescência. O artigo 227 inovou ao instituir o princípio da prioridade absoluta, segundo o qual as crianças e os adolescentes devem ter precedência nas políticas públicas, no atendimento e na destinação de recursos.
Esse dispositivo constitucional inspirou toda uma geração de juristas, legisladores e ativistas sociais. Como explica José Afonso da Silva (2020), o princípio da prioridade absoluta não é apenas programático: trata-se de uma diretriz de eficácia plena, que vincula todas as esferas de poder e exige a concretização imediata das garantias fundamentais. Nesse contexto, o advogado torna-se peça-chave na defesa da efetividade constitucional, atuando como guardião da norma e fiscal da cidadania.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) foi a tradução normativa do novo paradigma constitucional. Inspirado na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, o ECA consolidou a ideia de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos plenos, com voz, vontade e proteção legal específica.
Antes de 1990, vigorava no Brasil o Código de Menores (Lei nº 6.697/1979), que baseava-se na chamada doutrina da situação irregular. Esse modelo enxergava o “menor” como problema social — uma ameaça à ordem pública — e não como cidadão em desenvolvimento. O ECA rompe com essa visão repressiva e paternalista, substituindo-a por um modelo de responsabilidade compartilhada, no qual Estado, família e sociedade civil devem cooperar para a promoção do bem-estar infantojuvenil.
Como afirmam Rizzini e Pilotti (2011), o Estatuto não apenas ampliou o escopo dos direitos reconhecidos, mas também introduziu uma nova lógica de participação social e de controle democrático, abrindo espaço para que a advocacia, as organizações não governamentais e os conselhos de direitos tivessem papel ativo na fiscalização das políticas públicas.
O exercício da advocacia na área infantojuvenil vai muito além da representação judicial. O advogado é mediador, educador jurídico e agente de transformação social. Sua atuação pode se dar em diferentes esferas:
Na defesa individual , representando crianças e adolescentes em processos de guarda, adoção, medidas socioeducativas ou casos de violência.
Na defesa coletiva , por meio de ações civis públicas, mandados de segurança coletivos e outras medidas que visem assegurar políticas públicas de educação, saúde, convivência familiar, lazer e profissionalização.
Na consultoria e prevenção , orientando famílias, escolas e instituições sobre direitos, deveres e boas práticas de proteção.
O advogado deve pautar sua atuação pelos princípios da proteção integral, da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e do melhor interesse da criança — conceitos que possuem força normativa e orientam a interpretação de todas as normas infraconstitucionais.
Além disso, a advocacia deve colaborar ativamente com o sistema de garantias de direitos, que envolve o Conselho Tutelar, o Ministério Público, o Poder Judiciário, as Defensorias Públicas e os órgãos executores de políticas sociais. Essa colaboração demanda sensibilidade interdisciplinar, uma vez que a defesa da criança não se esgota no campo jurídico, mas requer diálogo com áreas como Psicologia, Serviço Social e Pedagogia.
O Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/1994) reconhece que o advogado é indispensável à administração da justiça. Essa indispensabilidade, entretanto, deve ser interpretada à luz de um compromisso ético com os direitos humanos. O Código de Ética e Disciplina da OAB orienta que o advogado deve “defender o Estado Democrático de Direito, os direitos humanos e a justiça social”.
A defesa das crianças e adolescentes se insere precisamente nesse compromisso. A ética profissional exige do advogado sensibilidade diante das vulnerabilidades, capacidade de escuta e disposição para promover o acesso à justiça. Em muitos casos, a criança é uma vítima silenciada, sem condições de se expressar plenamente — e cabe ao advogado dar voz a essa experiência, transformando a escuta em instrumento de reparação e reconhecimento.
Como afirma Paulo Lôbo (2015), “a proteção integral é um instrumento jurídico de transformação social, pois garante às novas gerações o pleno desenvolvimento de suas potencialidades”. A advocacia, portanto, não deve se limitar à formalidade processual, mas assumir postura proativa na transformação da realidade social.
No contexto brasileiro, onde a desigualdade econômica ainda é um obstáculo ao acesso à justiça, a advocacia pública e a advocacia pro bono desempenham papel essencial. A
Defensoria Pública tem sido protagonista na promoção dos direitos infantojuvenis, especialmente em casos de vulnerabilidade extrema, adoção, medidas protetivas e acompanhamento familiar.
Por outro lado, o exercício da advocacia pro bono , regulamentado pela OAB, permite que advogados particulares prestem serviços gratuitos em causas de interesse social, especialmente em defesa de crianças e adolescentes. Essa prática reforça a dimensão humanista da profissão e contribui para democratizar o acesso à justiça.
Além disso, diversas organizações da sociedade civil contam com núcleos jurídicos especializados que atuam em parceria com advogados voluntários, como o Instituto Alana, a Fundação Abrinq e a Pastoral da Criança. Essa rede de colaboração entre advocacia, sociedade civil e poder público é fundamental para ampliar o alcance das políticas de proteção e garantir que os direitos previstos na lei sejam efetivamente vividos na prática cotidiana.
Um dos aspectos mais promissores da advocacia contemporânea é a educação em direitos humanos. No campo infantojuvenil, essa dimensão preventiva é essencial. O advogado pode atuar em escolas, comunidades e conselhos municipais, promovendo palestras, campanhas e oficinas sobre direitos da criança e do adolescente, bullying, violência doméstica e participação cidadã.
Essa prática aproxima o Direito da realidade social, rompe com a cultura de judicialização excessiva e fortalece a cidadania desde cedo. Crianças e adolescentes informados sobre seus direitos tornam-se agentes de transformação em suas próprias comunidades, reduzindo situações de risco e incentivando a cultura de respeito e solidariedade.
O jurista Norberto Bobbio (1992) já afirmava que “o problema dos direitos humanos não é o de justificá-los, mas o de protegê-los”. No campo infantojuvenil, essa proteção depende, em larga medida, de profissionais do Direito que compreendam a importância da prevenção e da educação jurídica como instrumentos de emancipação social.
A atuação da advocacia também deve se atualizar diante dos novos desafios queafetam a infância e a juventude. A violência digital, o cyberbullying, a exposição indevida de imagens e o uso indevido de dados pessoais são questões emergentes que exigem resposta jurídica adequada.
A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), em seu artigo 14, prevê tratamento especial para dados de crianças e adolescentes, exigindo consentimento específico dos responsáveis. Cabe aos advogados, portanto, fiscalizar e orientar famílias, escolas e empresas sobre essas obrigações, garantindo que a tecnologia não se torne instrumento de violação de direitos.
Outro desafio é a crescente vulnerabilidade social provocada pela pobreza, pelo desemprego e pelas desigualdades regionais. A advocacia tem papel importante na proposição de ações civis públicas, na cobrança de investimentos em políticas educacionais e na fiscalização do cumprimento de metas do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária.
Sem atuação jurídica consistente e engajada, o discurso de proteção à infância corre o risco de se tornar meramente retórico. A advocacia é, portanto, instrumento de concretização da promessa constitucional de prioridade absoluta.
A defesa dos direitos das crianças e adolescentes é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. A advocacia, nesse contexto, ocupa posição estratégica como mediadora entre a norma e a realidade, entre o dever-ser jurídico e o ser social.
Mais do que um ofício técnico, advogar em favor da infância é um ato político e ético. É lutar contra a indiferença, contra a omissão estatal e contra as estruturas que perpetuam a exclusão. Cada petição, cada audiência e cada ação civil pública representam passos concretos rumo à construção de uma sociedade que valoriza suas novas gerações.
O desafio posto aos advogados brasileiros é compreender que a causa da criança e do adolescente é, em essência, a causa da própria humanidade. Defender uma criança é defender o futuro, é afirmar a dignidade humana desde o seu nascedouro. É nesse sentido que a advocacia se torna não apenas indispensável à justiça, mas também indispensável à esperança.
Como lembra Paulo Freire (1996), “educar é um ato de amor, por isso um ato de coragem”. Advogar pela infância e juventude é também educar, transformar e resistir — é exercer o Direito como prática libertadora, comprometida com a vida e com o futuro de todos.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos . Rio de Janeiro: Elsevier, 1992.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 .
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente.
BRASIL. Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Estatuto da Advocacia e da OAB.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa . São Paulo: Paz e Terra, 1996.
LÔBO, Paulo. Famílias e o Estatuto da Criança e do Adolescente: comentários e reflexões. São Paulo: Saraiva, 2015.
RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2020 .
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