1. Dever jurisdicional, o princípio da patrimonialidade e a adoção das medidas atípicas no processo de execução.
A responsabilidade patrimonial ou princípio da patrimonialidade é uma conquista histórica; revolvendo o passado, sabe-se que, por séculos, prevaleceu a regra da execução pessoal, segundo a qual o devedor inadimplente respondia com sua vida ou liberdade;[1] ela está consagrada no artigo 789 do Código de Processo Civil (CPC): “o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei”.
Cândido Rangel Dinamarco[2] leciona que a responsabilidade patrimonial ou responsabilidade executiva é a suscetibilidade de um bem ou de todo um patrimônio a suportar os efeitos da sanção executiva.
Nessa linha, o conceito de patrimônio[3], com vistas à responsabilidade a que está submetido o devedor, é a soma das coisas que têm valor pecuniário e direitos do devedor, e compreende bens móveis e imóveis, créditos e outros direitos, também expectativas. O devedor, portanto, responde com seu enlaçamento de bens sujeitos à penhorabilidade. O devedor obriga-se (vínculo pessoal); seu patrimônio responde[4] (vínculo patrimonial).
À vista do artigo 769 da CLT, Mauro Schiavi[5] aponta os requisitos para a aplicação do CPC ao processo do trabalho: (i) omissão da CLT (lacunas normativas, ontológica e axiológicas); compatibilidade das norma do Processo Civil com os princípios do Direito Processual do Trabalho; (ii) ainda que não omissa a CLT, quando as normas do Processo Civil forem mais efetivas que a da CLT e compatíveis com os princípios do Processo do Trabalho; e, (iii) ao aplicar o Código de Processo Civil ao processo do trabalho, deve o Juiz avaliar a justiça e a efetividade que a regra civilista propiciará ao processo trabalhista, bem como adaptá-lo às contingências do processo.
De acordo com o citado artigo 139, incumbe ao juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação de pecuniária. A “novidade” consiste na aplicação de medidas coercitivas atípicas em execuções de obrigação de pagar quantia, de que são alguns exemplos (polêmicos) colhidos da jurisprudência: apreensão de passaporte, suspensão da carteira nacional de habilitação, cancelamento de cartões de crédito e proibição de participação em concursos públicos e licitações.
O aspecto social que norteia a satisfação do crédito trabalhista, o dever jurisdicional de fazer cumprir seus comandos condenatórios e a eficiência inerente ao processo do trabalho, encorajam o princípio da atipicidade dos meios executivos, possibilitando ao Juiz condutor da execução certa maleabilidade do procedimento e a adoção de posturas processuais fora do catálogo legal[6].
Contudo, ao aplicar o princípio da atipicidade dos meios executivos, o magistrado deve sopesar: (i) a efetividade da medida escolhida; (ii) o comportamento das partes durante a fase executiva; (iii) a dificuldade de se materializar a execução; (iv) os direitos fundamentais do devedor; e, (v) os princípios da dignidade da pessoa humana, a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
A aplicação dos meios atípicos, na fase de execução trabalhista, demanda necessária cautela e reflexão sob a óptica de temas sensíveis, alocados à margem de uma linha tênue à violação de direitos fundamentais do devedor.
Oportuno invocar o princípio da não prejudicialidade do devedor, ou “menor onerosidade”, previsto no artigo 805 do CPC, o qual dispõe que na hipótese de existir diversos meios para promover a execução, caberá ao Juiz percorrer por meios menos gravosos ao devedor; é imprescindível que a aplicação do meio atípico na execução trabalhista não enseje restrição onerosa e excessiva ao devedor, capaz de impedir, por exemplo, o exercício regular de sua profissão.
O princípio da cooperação, previsto no art. 6º do CPC, orienta a efetividade da tutela jurisdicional sob o manto da solidariedade constitucional, em tempo razoável, de forma justa, humana e segura.
Não por outros argumentos é que apenas se admite a aplicação das medidas executivas atípicas quando rigorosamente fundamentada pelo magistrado que lhe autoriza, sobretudo em razão de sua inevitável agressão à esfera privada do devedor, ao revés das medidas típicas, que resguardam a liberdade individual, em linha com o princípio da legalidade, nos moldes do artigo 5º, II, da Constituição Federal.
Em que pese o dever de prestação jurisdicional, sobretudo em razão da natureza alimentar do crédito, aliado ao dever de buscar efetividade e razoável duração do processo, a flexibilização da tipicidade dos meios executivos não pode atingir dimensões existenciais e fundamentais relevantes, a ponto de ferir a dignidade da pessoa humana.
Ao devedor contumaz devem pesar restrições eficientes e pedagógicas, desde que respeitada a liturgia processual inerente ao devido processo legal, princípio que norteia a ação estatal em todas as suas esferas, em sintonia aos ideais de justiça e equidade.
Imputar a aplicação de medida atípica, sem a necessária fundamentação para tanto, é forçar uma solução jurídica mediante o uso de expedientes com cariz punitivo e não ressarcitório, bem como do constrangimento social e coletivo, o que viola frontalmente preceitos constitucionais que sustentam o ordenamento pátrio.
No tocante ao entendimento dos Tribunais Superiores, cumpre citar dois julgados proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. MEDIDAS COERCITIVAS ATÍPICAS. CPC/2015. INTERPRETAÇÃO CONSENTÂNEA COM O ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL. SUBSIDIARIEDADE, NECESSIDADE, ADEQUAÇÃO E PROPORCIONALIDADE. RETENÇÃO DE PASSAPORTE. COAÇÃO ILEGAL. CONCESSÃO DA ORDEM. SUSPENSÃO DA CNH. NÃO CONHECIMENTO. 1. O habeas corpus é instrumento de previsão constitucional vocacionado à tutela da liberdade de locomoção, de utilização excepcional, orientado para o enfrentamento das hipóteses em que se vislumbra manifesta ilegalidade ou abuso nas decisões judiciais. 2. Nos termos da jurisprudência do STJ, o acautelamento de passaporte é medida que limita a liberdade de locomoção, que pode, no caso concreto, significar constrangimento ilegal e arbitrário, sendo o habeas corpus via processual adequada para essa análise. 3. O CPC de 2015, em homenagem ao princípio do resultado na execução, inovou o ordenamento jurídico com a previsão, em seu art. 139, IV, de medidas executivas atípicas, tendentes à satisfação da obrigação exequenda, inclusive as de pagar quantia certa. 4. As modernas regras de processo, no entanto, ainda respaldadas pela busca da efetividade jurisdicional, em nenhuma circunstância, poderão se distanciar dos ditames constitucionais, apenas sendo possível a implementação de comandos não discricionários ou que restrinjam direitos individuais de forma razoável. 5. Assim, no caso concreto, após esgotados todos os meios típicos de satisfação da dívida, para assegurar o cumprimento de ordem judicial, deve o magistrado eleger medida que seja necessária, lógica e proporcional. Não sendo adequada e necessária, ainda que sob o escudo da busca pela efetivação das decisões judiciais, será contrária à ordem jurídica. 6. Nesse sentido, para que o julgador se utilize de meios executivos atípicos, a decisão deve ser fundamentada e sujeita ao contraditório, demonstrando-se a excepcionalidade da medida adotada em razão da ineficácia dos meios executivos típicos, sob pena de configurar-se como sanção processual. 7. A adoção de medidas de incursão na esfera de direitos do executado, notadamente direitos fundamentais, carecerá de legitimidade e configurar-se-á coação reprovável, sempre que vazia de respaldo constitucional ou previsão legal e à medida em que não se justificar em defesa de outro direito fundamental. 8. A liberdade de locomoção é a primeira de todas as liberdades, sendo condição de quase todas as demais. Consiste em poder o indivíduo deslocar-se de um lugar para outro, ou permanecer cá ou lá, segundo lhe convenha ou bem lhe pareça, compreendendo todas as possíveis manifestações da liberdade de ir e vir. 9. Revela-se ilegal e arbitrária a medida coercitiva de suspensão do passaporte proferida no bojo de execução por título extrajudicial (duplicata de prestação de serviço), por restringir direito fundamental de ir e vir de forma desproporcional e não razoável. Não tendo sido demonstrado o esgotamento dos meios tradicionais de satisfação, a medida não se comprova necessária. 10. O reconhecimento da ilegalidade da medida consistente na apreensão do passaporte do paciente, na hipótese em apreço, não tem qualquer pretensão em afirmar a impossibilidade dessa providência coercitiva em outros casos e de maneira genérica. A medida poderá eventualmente ser utilizada, desde que obedecido o contraditório e fundamentada e adequada a decisão, verificada também a proporcionalidade da providência. 11. A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação não configura ameaça ao direito de ir e vir do titular, sendo, assim, inadequada a utilização do habeas corpus, impedindo seu conhecimento. É fato que a retenção desse documento tem potencial para causar embaraços consideráveis a qualquer pessoa e, a alguns determinados grupos, ainda de forma mais drástica, caso de profissionais, que tem na condução de veículos, a fonte de sustento. É fato também que, se detectada esta condição particular, no entanto, a possibilidade de impugnação da decisão é certa, todavia por via diversa do habeas corpus, porque sua razão não será a coação ilegal ou arbitrária ao direito de locomoção, mas inadequação de outra natureza. 12. Recurso ordinário parcialmente conhecido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, RHC 97.876/SP, Quarta Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 05/06/2018, DJe 09/08/2018).
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. CABIMENTO. RESTRIÇÃO DO DIREITO DE DIRIGIR. SUSPENSÃO DA CNH. LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO. VIOLAÇÃO DIRETA. INOCORRÊNCIA. PRINCÍPIOS DA RESOLUÇÃO INTEGRAL DO LITÍGIO, DA BOA-FÉ PROCESSUAL E DA COOPERAÇÃO. ARTS. 4º, 5º E 6º DO CPC/15. INOVAÇÃO DO NOVO CPC. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. ART. 139, IV, DO CPC/15. COERÇÃO INDIRETA AO PAGAMENTO. POSSIBILIDADE. SANÇÃO. PRINCÍPIO DA PATRIMONIALIDADE. DISTINÇÃO. CONTRADITÓRIO PRÉVIO. ART. 9º DO CPC/15. DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO. ART. 489, § 1º, DO CPC/15. COOPERAÇÃO CONCRETA. DEVER. VIOLAÇÃO. PRINCÍPIO DA MENOR ONEROSIDADE. ART. 805, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC/15. ORDEM. DENEGAÇÃO. 1. Cuida-se de habeas corpus por meio do qual se impugna ato supostamente coator praticado pelo juízo do primeiro grau de jurisdição que suspendeu a carteira nacional de habilitação e condicionou o direito do paciente de deixar o país ao oferecimento de garantia, como meios de coerção indireta ao pagamento de dívida executada nos autos de cumprimento de sentença. 2. O propósito recursal consiste em determinar se: a) o habeas corpus é o meio processual adequado para se questionar a suspensão da carteira nacional de habilitação e o condicionamento do direito de deixar o país ao oferecimento de garantia da dívida exequenda; b) é possível ao juiz adotar medidas executivas atípicas e sob quais circunstâncias; e c) se ocorre flagrante ilegalidade ou abuso de poder aptos a serem corrigidos nessa via mandamental. 3. Com a previsão expressa e subsidiária do remédio constitucional do mandado de segurança, o habeas corpus se destina à tutela jurisdicional da imediata liberdade de locomoção física das pessoas, não se revelando, pois, cabível quando inexistente situação de dano efetivo ou de risco potencial ao “jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque” do paciente. 4. A suspensão da Carteira Nacional de Habilitação não configura dano ou risco potencial direto e imediato à liberdade de locomoção do paciente, devendo a questão ser, pois, enfrentada pelas vias recursais próprias. Precedentes. 5. A medida de restrição de saída do país sem prévia garantia da execução tem o condão, por outro lado, – ainda que de forma potencial – de ameaçar de forma direta e imediata o direito de ir e vir do paciente, pois lhe impede, durante o tempo em que vigente, de se locomover para onde bem entender. 6. O processo civil moderno é informado pelo princípio da instrumentalidade das formas, sendo o processo considerado um meio para a realização de direitos que deve ser capaz de entregar às partes resultados idênticos aos que decorreriam do cumprimento natural e espontâneo das normas jurídicas. 7. O CPC/15 emprestou novas cores ao princípio da instrumentalidade, ao prever o direito das partes de obterem, em prazo razoável, a resolução integral do litígio, inclusive com a atividade satisfativa, o que foi instrumentalizado por meio dos princípios da boa-fé processual e da cooperação (arts. 4º, 5º e 6º do CPC), que também atuam na tutela executiva. 8. O princípio da boa-fé processual impõe aos envolvidos na relação jurídica processual deveres de conduta, relacionados à noção de ordem pública e à de função social de qualquer bem ou atividade jurídica. 9. O princípio da cooperação é desdobramento do princípio da boa-fé processual, que consagrou a superação do modelo adversarial vigente no modelo do anterior CPC, impondo aos litigantes e ao juiz a busca da solução integral, harmônica, pacífica e que melhor atenda aos interesses dos litigantes. 10. Uma das materializações expressas do dever de cooperação está no art. 805, parágrafo único, do CPC/15, a exigir do executado que alegue violação ao princípio da menor onerosidade a proposta de meio executivo menos gravoso e mais eficaz à satisfação do direito do exequente. 11. O juiz também tem atribuições ativas para a concretização da razoável duração do processo, a entrega do direito executado àquela parte cuja titularidade é reconhecida no título executivo e a garantia do devido processo legal para exequente e o executado, pois deve resolver de forma plena o conflito de interesses. 12. Pode o magistrado, assim, em vista do princípio da atipicidade dos meios executivos, adotar medidas coercitivas indiretas para induzir o executado a, de forma voluntária, ainda que não espontânea, cumprir com o direito que lhe é exigido. 13. Não se deve confundir a natureza jurídica das medidas de coerção psicológica, que são apenas medidas executivas indiretas, com sanções civis de natureza material, essas sim capazes de ofender a garantia da patrimonialidade da execução por configurarem punições ao não pagamento da dívida. 14. Como forma de resolução plena do conflito de interesses e do resguardo do devido processo legal, cabe ao juiz, antes de adotar medidas atípicas, oferecer a oportunidade de contraditório prévio ao executado, justificando, na sequência, se for o caso, a eleição da medida adotada de acordo com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. 15. Na hipótese em exame, embora ausente o contraditório prévio e a fundamentação para a adoção da medida impugnada, nem o impetrante nem o paciente cumpriram com o dever que lhes cabia de indicar meios executivos menos onerosos e mais eficazes para a satisfação do direito executado, atraindo, assim, a consequência prevista no art. 805, parágrafo único, do CPC/15, de manutenção da medida questionada, ressalvada alteração posterior. 16. Recurso em habeas corpus desprovido. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, RHC 99.606/SP, Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 13/11/2018, DJe 20/11/2018)
Corroborando com a posição adotada pelo STJ, a doutrina igualmente reconhece a adoção das medidas executivas atípicas, em caráter excepcional ou subsidiário, quando exauridas as vias típicas:
“(…) tem o órgão jurisdicional de aferir se a técnica processual destinada pelo legislador infraconstitucional para a tutela ressarcitória pecuniária é eficaz e apropriada. Em outras palavras, tem-se de verificar se a técnica expropriatória satisfaz as exigências mínimas, no que concerne à sua eficiência, para tutela da res in iudicium deducta. Se não satisfaz, então é porque a previsão legal é inadequada para a proteção daquele caso específico, e deve ser considerada. Isso porque uma regra só é aplicável se as suas condições de incidência são satisfeitas e se a sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da regra. O raciocínio aí implicado denota a necessidade de examinar-se a razoabilidade da aplicação do binômio condenação-execução forçada, alcançando-se mão da razoabilidade na sua acepção de razoabilidade como equidade. Evidentemente, a motivação do art. 523, CPC, está em possibilitar a prestação de uma tutela adequada e efetiva às obrigações de pagar quantia. Se tal não se dá, por inadequação dessa técnica processual, a regra não pode ser aplicada. Uma vez demonstrada a não efetividade do procedimento do art. 523 e seguintes, CPC, à espécie, o que indubitavelmente passa pela explícita motivação dessa superação legal na decisão, cumpre ao órgão jurisdicional examinar o emprego de ordem sob pena de multa coercitiva (ou outro meio de indução ou de sub-rogação) se oferece ou não aplicável ao caso concreto (art. 139, IV, CPC).” (MARINONI, ARENHART, MITIDIERO, 2015, p. 529).[7]
O modelo baseado na tipicidade das pedidas executivas tende a alcançar resultados satisfatórios na medida em que as situações de direito material e os problemas que emergem da sociedade sejam parecidos. Nesses casos, é até mesmo conveniente a previsão de medidas similares para as hipóteses em que problemas parecidos se reproduzem, a fim de que se observe em relação àqueles que estejam em uma mesma situação de direito material um procedimento também similar. Quando, porém, o modelo típico de medidas executivas mostra-se insuficiente, diante de pormenores do caso, faz-se necessário realizar-se um ajuste tendente a especificar o procedimento, ajustando-o ao problema a ser resolvido. Para tanto, é de todo conveniente que o sistema preveja um modelo atípico ou flexível de medidas executivas. (MEDINA, 2017. p. 936).[8]
Há de se pontuar, contudo, que a possibilidade de apreensão de passaporte e de CNH não é uníssona, como se observa também de respeitável doutrina:
Ainda que adequadas fossem, a retenção de CNH e do passaporte não parecem ser medidas necessárias (no sentido de exigíveis), uma vez que outras medidas podem, em tese, ser utilizadas sem causar igual gravame ao executado – como, por exemplo, a simples restrição do uso de cartões de crédito. A retenção de documentos pessoais é medida que termina por restringir a liberdade de ir e vir do executado, mostrando-se, a princípio, não razoável, por ir de encontro ao dever de equivalência, e desproporcional, por restringir demais o direito à liberdade em favor do direito de crédito pecuniário do exequente. (DIDIER JR.; CUNHA; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 246)[9]
Ainda sobre o esgotamento de medidas típicas, como pressuposto à constitucionalidade da aplicação dos meios atípicos, destaca-se decisão proferida pelo STJ:
AGRAVO INTERNO. HABEAS CORPUS. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. CONSTITUCIONALIDADE. ADI N. 5.941/DF. SUSPENSÃO DA CNH. NÃO CONHECIMENTO. APREENSÃO DO PASSAPORTE. PRÉVIO ESGOTAMENTO DOS MEIOS TRADICIONAIS PARA SATISFAÇÃO DO CRÉDITO. ILEGALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Nos termos da jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação não configura, por si só, ofensa direta e imediata à liberdade de locomoção do paciente, razão pela qual não pode ser impugnada por habeas corpus. 2. O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADI nº 5.941/DF, considerou constitucional a adoção de medidas executivas atípicas para se buscar a satisfação de crédito. 3 . “A jurisprudência desta Corte Superior reputa, em tese, lícita e possível a adoção de medidas executivas indiretas, inclusive a apreensão de passaporte, desde que, exauridos previamente os meios típicos de satisfação do crédito exequendo, bem como que a medida se afigure adequada, necessária e razoável para efetivar a tutela do direito do credor em face de devedor que, demonstrando possuir patrimônio apto a saldar o débito em cobrança, intente frustrar injustificadamente o processo executivo” ( AgInt no RHC 128.327/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, DJe 15/4/2021)”. 4 . Na hipótese, as instâncias de origem se preocuparam em esgotar os meios executivos ordinários para tentar satisfazer o crédito, tendo lançado mão de via atípica como “ultima ratio”, a qual, diante das circunstâncias, se mostra razoável e proporcional para o caso de inadimplemento de verbas de natureza alimentar. 5. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ – AgInt no HC: 711185 SP 2021/0391817-1, Relator.: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 24/04/2023, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/04/2023)
A título de exemplo, e como reforço da criticidade jurisprudencial envolvida na aplicação da via atípica, tem-se que, havendo prova pré-constituída no sentido de que o devedor se ativa como motorista profissional, eventual ordem de suspensão da sua carteira de habilitação, apta para o exercício de atividade remunerada, violará o livre exercício da profissão, na medida em que a carteira de habilitação, com expressa indicação de categoria profissional, é requisito legal que possibilita o desempenho da função de motorista profissional.
Os fundamentos ora suscitados estão contemplados nas recentes decisões proferidas pela Subseção II Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho:
MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO ORDINÁRIO. ATO COATOR QUE DETERMINA, EM SEDE DE EXECUÇÃO, A SUSPENSÃO DA CNH E DO PASSAPORTE DOS IMPETRANTES. CABIMENTO DA AÇÃO MANDAMENTAL. CARACTERIZAÇÃO DA ABUSIVIDADE DO ATO COATOR. VIOLAÇÃO A DIREITO LÍQUIDO E CERTO. ORDEM CONCEDIDA. PRECEDENTES. 1. Conquanto a medida hábil contra ato que determina a suspensão de passaporte seja, a priori, o Habeas Corpus, a jurisprudência desta Corte orienta no sentido de que, quando determinada a suspensão concomitante de passaporte e de CNH, é cabível Mandado de Segurança para impugnar o ato quanto às duas restrições. Precedentes. 2. O art. 139, IV, do CPC/2015 dispõe que o juiz, na direção do processo, pode determinar a adoção de medidas atípicas, dentre as quais se inclui a suspensão da CNH e do passaporte em sede de execução. 3. Entretanto, deve-se observar que a validade dessas medidas está condicionada à demonstração de sua utilidade no processo, para a efetiva realização da coisa julgada, pois, em verdade, as chamadas medidas atípicas têm lugar nos casos em que o devedor, embora possuidor de patrimônio suficiente para satisfazer a obrigação contida no título judicial, emprega meios ardilosos para dela se esquivar. E mesmo nessa hipótese tais medidas não estão imunes à pesquisa sobre a observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Logo, não se admite que a determinação de suspensão dos documentos funcione como meio punitivo ao executado. 4. No caso, o Ato Coator não contém indicativo algum de que a medida adotada poderia contribuir, de forma concreta, para a satisfação da obrigação definida no título executivo: não se menciona a hipótese de ocultação de patrimônio dos recorrentes, ou mesmo a eventual incompatibilidade entre seu estilo de vida e a situação patrimonial revelada no processo Assinado eletronicamente por: EDUARDO DE SOUSA SANTOS – Juntado em: 01/12/2023 16:10:51 – d7456af Fls.: 8 (31) 3296-5072 | melloemelloadvogados.com.br Av. Presid. Tancredo Neves, 2.640 – Conj. 503 – Bairro Castelo – CEP: 31.330-472 – Belo Horizonte | 8 matriz. Ao revés, o Ato Coator, apenas e tão somente determina a retenção da CNH e do passaporte dos impetrantes. 5. Nesse panorama, portanto, em que a ausência de satisfação do título judicial se revela como efeito da inexistência de patrimônio do devedor, a medida adotada no Ato Coator, longe de se caracterizar como instrumento coercitivo para o pagamento da dívida, constitui mera penalização dos recorrentes, circunstância que desnuda a abusividade do ato, porque decretado em descompasso com o objetivo da norma contida no art. 139, IV, 6. Recurso Ordinário conhecido e do CPC de 2015. provido” (ROT1941-87.2021.5.05.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Luiz Jose Dezena da Silva, DEJT 17/03/2023).
“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. EXECUÇÃO. ADOÇÃO DE MEDIDAS COERCITIVAS ATÍPICAS. SUSPENSÃO DA CNH E DO PASSAPORTE. ADI N.º 5.941. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 139, IV, DO CPC DE 2015. MOTORISTA PROFISSIONAL. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE REMUNERADA GRAVADA NA CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO – CATEGORIA” AE “. CABIMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA NA FRAÇÃO ESPECÍFICA DA SUSPENSÃO DA CNH. SUPERAÇÃO DA COMPREENSÃO DEPOSITADA NA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL N.º 92 DA SBDI-2 DO TST. No caso concreto, verifica-se que o presente Mandado de Segurança foi manejo contra ato do Juízo da 19.ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte que, na execução que se processa nos autos da Reclamação Trabalhista n.º 0011080-36.2016.5.03.0019, determinou a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação – CNH e do passaporte do impetrante, com base no artigo 139, IV, do CPC, após a frustração dos vários meios ortodoxos possíveis para que o exequente pudesse receber o que lhe garantiu o título judicial. 7. Portanto, havendo prova pré-constituída no sentido de que o impetrante se ativa como motorista profissional, a ordem de suspensão da sua CNH, gravada para o exercício de atividade remunerada e estampada com a categoria profissional” AE”, atenta contra o livre exercício da profissão, na medida em que a habilitação oficial funciona como uma das qualificações exigidas por lei para o desempenho da profissão de motorista. 8. Recurso ordinário conhecido e provido apenas no capítulo alusivo à suspensão da Carteira Nacional de Habilitação, com ordem de imediata liberação do documento”(ROT-0015210-82.2023.5.03.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Luiz Jose Dezena da Silva, DEJT 29/11/2024).
O que se extrai das decisões proferidas pela SDI-2 do TST quanto à aplicação das medidas atípicas previstas no artigo 139, IV, do CPC, em caráter excepcional, é justamente o dever de cautela que se espera das decisões judiciais, as quais devem perseguir – precipuamente – a entrega da prestação jurisdicional, dentro dos limites da proporcionalidade e da razoabilidade. Punir o devedor em sua liberdade e criar constrangimento sem qualquer utilidade e eficiência à satisfação do crédito, é um retrocesso histórico: uma repristinação dos tempos em que a execução pessoal.
2.1. ADI 5941 e seus reflexos
O Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do artigo 139, inciso IV, do CPC, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5941: por maioria, o colegiado admitiu a possibilidade de, caso a caso, ser examinada a aplicabilidade de medidas indutivas, coercitivas ou sub-rogatórias, consistentes em suspensão do direito de dirigir, apreensão de passaporte e proibição de participação em concursos públicos ou licitações, obedecidos o devido processo legal, a proporcionalidade, a eficiência, em respeito à liturgia imposta pelo sistema processual no Brasil.
Os princípios constantes dos artigos 1º, 8º e 805 do CPC foram ressalvados pelo STF, ao declarar a constitucionalidade do artigo 139, IV, do CPC, sob a ressalva de que a aplicação deve atentar-se ao caso concreto, preservando-se os princípios processuais e constitucionais.
A decisão proferida pelo STF autoriza a aplicação da via atípica, desde que o Juiz fundamente o porquê da medida excepcional (jamais ordinária) e revele – mediante robusto contexto fático e probatório – estar diante de um típico devedor intencional: práticas de litigância de má-fé e de não cooperação (i.e., medidas procrastinatórias, tumulto processual), desvios de recursos/bens, ocultação de patrimônio e/ou estilo de vida dissonante com a insolvência declarada ao Estado.
Desta feita, ao magistrado impõe-se a cautela necessária quando da aplicação de tais medidas atípicas, sob o manto de uma fundamentação adequada e equilibrada que bem demonstre o animus do devedor em persistir nesse estilo de vida típico do fraudador contumaz, seja protelando ações em flagrante tumulto processual, seja ocultando bens ou desviando recursos para, ao fim e a cabo, se esquivar dos efeitos da execução trabalhista.
3. Considerações finais
Em arremate, afora o cenário de inação reincidente do devedor, culminada com a postura protelatória irresponsável e eivada de má-fé, bem como o comprovado esgotamento das tentativas de penhora e evidenciada a ocultação de bens (assim como respeitados outros direitos fundamentais, a exemplo do contraditório e da fundamentação), não se mostra razoável a aplicação de medida restritiva atípica, no processo do trabalho, como meio eficaz para o adimplemento do crédito, por bem ou por mal.
Salvo nas situações excepcionais decorrentes das premissas acima apontadas, imputar ao devedor restrições ao exercício de direitos alheios a sua esfera patrimonial – motivado apenas pelo dever de prestação jurisdicional eficiente e a justa necessidade de satisfação do crédito – é justificar os meios para transcender os limites do princípio da responsabilidade de natureza civil e assumir um cariz punitivo, e não de satisfação de crédito, no processo executivo.
Adicionalmente, insta registrar que o Estado dispõe de acesso amplo às plataformas integradas de informações, as quais subsidiam o Juiz no reconhecimento de eventual manobra empresarial de ocultação de bens e recursos, alcançando com eficiência toda e qualquer movimentação financeira, ainda que desafiado amplamente pela criatividade dos fraudadores, de modo que sobram meios para promover a liturgia processual em sede de execução, sem esbarrar nos limites dos direitos fundamentais.
[1] TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. Execução no processo do trabalho.9. ed. São Paulo: LTr, 2005. p. 52. [1] SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. 17. ed.rev, atual e ampl. – Salvador: Editora JusPodivm, 2021. p. 167
[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v. IV. São Paulo: Malheiros, 2004. p.321.
[3] TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. Execução no processo do trabalho. 9. ed. São Paulo: LTr, 2005. p.247.
[4] BUZAID, Alfredo. Do concurso de credores no processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1952, p. 116
[5] SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. 17. ed.rev, atual e ampl. – Salvador: Editora JusPodivm, 2021.
[7] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de Direito Processual Civil. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 935
[8] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Diretrizes para a concretização das cláusulas gerais executivas dos arts. 139, IV, 297 e 536, § 1º, CPC. In: Revista de Processo, v. 267/2017, pp. 227 a 272
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