O sistema de justiça criminal brasileiro, embora fundado sobre os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, ainda reflete desigualdades estruturais de gênero que influenciam diretamente o tratamento dado às mulheres — seja quando elas são vítimas, seja quando figuram como autoras de crimes. A aplicação da lei, muitas vezes, é permeada por estereótipos sociais, moralismos e preconceitos que distorcem a imparcialidade judicial e revelam o quanto o patriarcado ainda resiste nas instituições jurídicas.
Ao longo da história, a mulher sempre foi colocada em uma posição de subordinação social, marcada por estigmas que a associavam ao lar, à maternidade e à fragilidade emocional. No campo jurídico, essa visão se refletiu tanto na formulação das leis quanto na interpretação judicial. Somente com a Constituição Federal de 1988 é que se consolidou, de forma explícita, o princípio da igualdade entre homens e mulheres, previsto no artigo 5º, inciso I. Contudo, a prática demonstra que a igualdade formal ainda não se converteu em igualdade material no âmbito da justiça criminal.
Quando a mulher ocupa o papel de vítima, principalmente em crimes de violência doméstica e sexual, o tratamento judicial muitas vezes é marcado pela revitimização. Isso significa que, ao buscar justiça, ela é submetida novamente à dor da violência sofrida, por meio de questionamentos invasivos, julgamentos morais e descrédito. É comum que a palavra da vítima feminina seja colocada sob suspeita, exigindo-se dela provas quase impossíveis de obter, especialmente em casos de abuso sexual. Essa prática viola o princípio da proteção integral e da dignidade humana, além de contradizer o espírito da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), criada justamente para combater a violência de gênero e assegurar medidas de proteção eficazes.
Um caso emblemático que evidencia essa desigualdade é o de Ângela Diniz, assassinada em 1976 por Doca Street. Durante o julgamento, o réu tentou justificar o homicídio alegando “legítima defesa da honra”, argumento aceito por parte do júri da época. A vítima, em vez de ser tratada como mulher brutalmente assassinada, foi culpabilizada por seu próprio comportamento, acusada de ter “provocado” o crime. Esse caso ilustra como o sistema judicial, por décadas, reforçou estereótipos que responsabilizavam as mulheres pela violência que sofriam. Só anos depois, com a pressão social e o avanço do movimento feminista, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade dessa tese, proibindo seu uso em tribunais do júri.
Por outro lado, quando a mulher assume a posição de autora de um crime, a justiça tende a adotar uma postura igualmente desigual, mas de natureza oposta. Em vez de ser analisada sob o mesmo prisma objetivo aplicado aos homens, ela é muitas vezes hiper responsabilizada ou psicologicamente patologizada. O sistema penal costuma enxergar a mulher criminosa como uma transgressora dupla: da lei e do papel social que lhe é imposto. Essa percepção resulta em julgamentos mais severos e menos empáticos, desconsiderando as condições de vulnerabilidade, coação ou contexto de sobrevivência que muitas vezes estão presentes em suas trajetórias.
Casos como o de Elize Matsunaga, condenada pelo homicídio e esquartejamento do marido, mostram como a figura da mulher autora é tratada de forma diferenciada pela mídia e, indiretamente, pelo próprio sistema judicial. Elize foi retratada não apenas como criminosa, mas como “monstro”, “vingativa” e “fria”, termos carregados de julgamento moral e emocional. Embora seu crime deva ser julgado de acordo com a lei, o destaque dado à sua condição de mulher evidencia o quanto o gênero ainda influencia o olhar social e judicial sobre o delito.
Essa desigualdade judicial não decorre apenas da aplicação das leis, mas também de uma estrutura patriarcal arraigada na formação das instituições de justiça. A falta de capacitação em gênero de juízes, promotores e policiais contribui para a perpetuação de práticas discriminatórias. Além disso, a sub-representação feminina nos espaços de poder, inclusive no próprio Poder Judiciário, limita a pluralidade de perspectivas na interpretação e na aplicação do Direito. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, apenas cerca de 40% dos magistrados brasileiros são mulheres, e essa proporção é ainda menor em tribunais superiores.
Do ponto de vista jurídico, a superação dessas desigualdades exige a efetividade do princípio da igualdade material, previsto no artigo 3º da Constituição, que impõe ao Estado o dever de reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos, sem preconceitos de sexo. Mais do que criar novas leis, é necessário reeducar o olhar jurídico — compreender que a neutralidade aparente da justiça pode, na prática, reforçar discriminações quando não considera as diferenças históricas e sociais que marcam a vida das mulheres.
É imprescindível, também, que o sistema criminal adote uma abordagem humanizada e interseccional, reconhecendo que gênero, classe e raça se entrelaçam na experiência da mulher perante a justiça. Mulheres negras e pobres, por exemplo, são as que mais sofrem com a seletividade penal e o encarceramento em massa, muitas vezes por crimes de menor potencial ofensivo, ligados à sobrevivência. Essa realidade demonstra que a desigualdade judicial é ainda mais grave quando atravessada pela desigualdade social.
A Justiça de Gênero deve, portanto, ser compreendida não como um privilégio, mas como uma forma de restaurar a imparcialidade verdadeira do sistema. A equidade requer tratamento diferenciado quando há desigualdade histórica. A Lei Maria da Penha, a criação de delegacias especializadas e a ampliação do debate sobre violência de gênero representam avanços, mas ainda insuficientes diante da cultura de culpabilização da mulher que persiste nos tribunais.
O desafio da desigualdade judicial com as mulheres — vítimas ou autoras — reflete uma sociedade que ainda interpreta o gênero feminino a partir de padrões patriarcais. Para que o sistema criminal brasileiro cumpra verdadeiramente seu papel constitucional, é indispensável que ultrapasse a aparência de neutralidade e incorpore uma perspectiva crítica e sensível às questões de gênero. A efetivação da justiça só será alcançada quando as decisões judiciais forem pautadas pela equidade e pelo reconhecimento das desigualdades históricas que marcam a trajetória das mulheres. Enquanto o Direito permanecer alheio a essa realidade, a mulher seguirá sendo julgada não apenas pelos seus atos, mas pela condição de ser mulher
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