Taylane Rodrigues de Lima

A Desigualdade Judicial com as Mulheres: Vítima e Autora no Sistema Criminal Brasileiro

Postado em 15 de outubro de 2025 Por Taylane Rodrigues de Lima cadêmica em Direito, cursando terceiro período na (FICR) Faculdade Imaculada Conceição do Recife. Interesse e afinidade em Direito Penal, Concurseira Federal e atualmente estagiária em Direito Bancário. Dedica-se aos estudos para se tornar Servidora Pública Federal com perspectiva de mudança estrutural na sociedade Brasileira.

O sistema de justiça criminal brasileiro, embora fundado sobre os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, ainda reflete desigualdades estruturais de gênero que influenciam diretamente o tratamento dado às mulheres — seja quando elas são vítimas, seja quando figuram como autoras de crimes. A aplicação da lei, muitas vezes, é permeada por estereótipos sociais, moralismos e preconceitos que distorcem a imparcialidade judicial e revelam o quanto o patriarcado ainda resiste nas instituições jurídicas.

Ao longo da história, a mulher sempre foi colocada em uma posição de subordinação social, marcada por estigmas que a associavam ao lar, à maternidade e à fragilidade emocional. No campo jurídico, essa visão se refletiu tanto na formulação das leis quanto na interpretação judicial. Somente com a Constituição Federal de 1988 é que se consolidou, de forma explícita, o princípio da igualdade entre homens e mulheres, previsto no artigo 5º, inciso I. Contudo, a prática demonstra que a igualdade formal ainda não se converteu em igualdade material no âmbito da justiça criminal.

Quando a mulher ocupa o papel de vítima, principalmente em crimes de violência doméstica e sexual, o tratamento judicial muitas vezes é marcado pela revitimização. Isso significa que, ao buscar justiça, ela é submetida novamente à dor da violência sofrida, por meio de questionamentos invasivos, julgamentos morais e descrédito. É comum que a palavra da vítima feminina seja colocada sob suspeita, exigindo-se dela provas quase impossíveis de obter, especialmente em casos de abuso sexual. Essa prática viola o princípio da proteção integral e da dignidade humana, além de contradizer o espírito da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), criada justamente para combater a violência de gênero e assegurar medidas de proteção eficazes.

Um caso emblemático que evidencia essa desigualdade é o de Ângela Diniz, assassinada em 1976 por Doca Street. Durante o julgamento, o réu tentou justificar o homicídio alegando “legítima defesa da honra”, argumento aceito por parte do júri da época. A vítima, em vez de ser tratada como mulher brutalmente assassinada, foi culpabilizada por seu próprio comportamento, acusada de ter “provocado” o crime. Esse caso ilustra como o sistema judicial, por décadas, reforçou estereótipos que responsabilizavam as mulheres pela violência que sofriam. Só anos depois, com a pressão social e o avanço do movimento feminista, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade dessa tese, proibindo seu uso em tribunais do júri.

Por outro lado, quando a mulher assume a posição de autora de um crime, a justiça tende a adotar uma postura igualmente desigual, mas de natureza oposta. Em vez de ser analisada sob o mesmo prisma objetivo aplicado aos homens, ela é muitas vezes hiper responsabilizada ou psicologicamente patologizada. O sistema penal costuma enxergar a mulher criminosa como uma transgressora dupla: da lei e do papel social que lhe é imposto. Essa percepção resulta em julgamentos mais severos e menos empáticos, desconsiderando as condições de vulnerabilidade, coação ou contexto de sobrevivência que muitas vezes estão presentes em suas trajetórias.

Casos como o de Elize Matsunaga, condenada pelo homicídio e esquartejamento do marido, mostram como a figura da mulher autora é tratada de forma diferenciada pela mídia e, indiretamente, pelo próprio sistema judicial. Elize foi retratada não apenas como criminosa, mas como “monstro”, “vingativa” e “fria”, termos carregados de julgamento moral e emocional. Embora seu crime deva ser julgado de acordo com a lei, o destaque dado à sua condição de mulher evidencia o quanto o gênero ainda influencia o olhar social e judicial sobre o delito.

Essa desigualdade judicial não decorre apenas da aplicação das leis, mas também de uma estrutura patriarcal arraigada na formação das instituições de justiça. A falta de capacitação em gênero de juízes, promotores e policiais contribui para a perpetuação de práticas discriminatórias. Além disso, a sub-representação feminina nos espaços de poder, inclusive no próprio Poder Judiciário, limita a pluralidade de perspectivas na interpretação e na aplicação do Direito. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, apenas cerca de 40% dos magistrados brasileiros são mulheres, e essa proporção é ainda menor em tribunais superiores.

Do ponto de vista jurídico, a superação dessas desigualdades exige a efetividade do princípio da igualdade material, previsto no artigo 3º da Constituição, que impõe ao Estado o dever de reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos, sem preconceitos de sexo. Mais do que criar novas leis, é necessário reeducar o olhar jurídico — compreender que a neutralidade aparente da justiça pode, na prática, reforçar discriminações quando não considera as diferenças históricas e sociais que marcam a vida das mulheres.

É imprescindível, também, que o sistema criminal adote uma abordagem humanizada e interseccional, reconhecendo que gênero, classe e raça se entrelaçam na experiência da mulher perante a justiça. Mulheres negras e pobres, por exemplo, são as que mais sofrem com a seletividade penal e o encarceramento em massa, muitas vezes por crimes de menor potencial ofensivo, ligados à sobrevivência. Essa realidade demonstra que a desigualdade judicial é ainda mais grave quando atravessada pela desigualdade social.

A Justiça de Gênero deve, portanto, ser compreendida não como um privilégio, mas como uma forma de restaurar a imparcialidade verdadeira do sistema. A equidade requer tratamento diferenciado quando há desigualdade histórica. A Lei Maria da Penha, a criação de delegacias especializadas e a ampliação do debate sobre violência de gênero representam avanços, mas ainda insuficientes diante da cultura de culpabilização da mulher que persiste nos tribunais.

O desafio da desigualdade judicial com as mulheres — vítimas ou autoras — reflete uma sociedade que ainda interpreta o gênero feminino a partir de padrões patriarcais. Para que o sistema criminal brasileiro cumpra verdadeiramente seu papel constitucional, é indispensável que ultrapasse a aparência de neutralidade e incorpore uma perspectiva crítica e sensível às questões de gênero. A efetivação da justiça só será alcançada quando as decisões judiciais forem pautadas pela equidade e pelo reconhecimento das desigualdades históricas que marcam a trajetória das mulheres. Enquanto o Direito permanecer alheio a essa realidade, a mulher seguirá sendo julgada não apenas pelos seus atos, mas pela condição de ser mulher

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