A Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai, tem um papel central na proteção dos direitos dos povos originários e, por consequência, na própria democracia brasileira. Criada em 5 de dezembro de 1967, a instituição nasceu para substituir o antigo Serviço de Proteção ao Índio, mas somente após a Constituição Federal de 1988 passou a atuar com um marco jurídico robusto que reconhece, no artigo 231, os direitos originários dos povos indígenas às suas terras, culturas e formas de organização social. Esse artigo constitucional é um divisor de águas, pois estabelece não apenas o reconhecimento desses direitos, mas também a obrigação do Estado de demarcar, proteger e respeitar os territórios tradicionais. Nesse contexto, a Funai se torna o órgão que materializa esse dever do Estado brasileiro, e é justamente aí que se percebe como defender os povos indígenas é defender o Brasil.
A importância da Funai é multifacetada. Seu papel mais conhecido é a demarcação de terras indígenas, um processo que envolve estudos antropológicos, históricos e ambientais para garantir que comunidades tenham seus territórios reconhecidos e protegidos. Esse reconhecimento não é um privilégio, como parte da sociedade insiste em alegar, mas sim um direito constitucional e histórico. A terra é o alicerce da sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, pois dela dependem a agricultura de subsistência, os rituais, a preservação das línguas e o modo de vida comunitário. Sem a garantia territorial, essas comunidades ficam vulneráveis a invasões, grilagem, garimpo ilegal e pressões econômicas que não apenas colocam em risco suas vidas, mas também a preservação de seus saberes tradicionais.
O Brasil, muitas vezes, não percebe que proteger os povos indígenas é também proteger a si mesmo. Estudos recentes do Instituto Socioambiental (ISA) e de universidades públicas mostram que terras indígenas demarcadas são áreas com índices significativamente menores de desmatamento. Em biomas como a Amazônia, a Mata Atlântica, o Pantanal e a Caatinga, essas terras funcionam como verdadeiros escudos contra o avanço da devastação ambiental. Mais do que isso: pesquisas apontam que as chuvas geradas pelas florestas preservadas em terras indígenas amazônicas contribuem diretamente para a produtividade agropecuária de diversas regiões do país, sendo responsáveis por cerca de 57% da renda agropecuária nacional. Ou seja, a preservação desses territórios é também uma questão de soberania alimentar e de estabilidade econômica para todos os brasileiros. Aqui fica evidente a tese central: a Funai não é apenas sobre os povos indígenas; é sobre o futuro do Brasil e de sua democracia.
Outro aspecto fundamental é o impacto na saúde pública. Um estudo divulgado pela Agência Brasil em 2025 demonstrou que a demarcação de terras indígenas reduz doenças ligadas ao desmatamento e às queimadas, como infecções respiratórias e problemas cardiovasculares. Isso não beneficia apenas os povos indígenas, mas também populações vizinhas, muitas vezes rurais e periféricas, que sofrem diretamente com a poluição atmosférica e a contaminação de rios e aquíferos. A Funai, ao proteger esses territórios, desempenha assim um papel indireto de política de saúde pública.
Não se pode ignorar também a dimensão cultural e linguística. O Brasil é um país marcado pela diversidade, e os povos indígenas representam um patrimônio imaterial de valor inestimável. A preservação de línguas, cosmologias, medicinas tradicionais e sistemas próprios de justiça e organização social só é possível quando esses povos podem viver em seus territórios, sem a constante ameaça da expropriação. A Funai atua como guardiã desse patrimônio, promovendo iniciativas que dialogam com a valorização cultural e com a inserção das comunidades indígenas no debate público nacional. E aqui há outro ponto essencial: a defesa da Funai é também defesa da democracia, porque garante a participação de vozes historicamente silenciadas na construção do país.
Apesar de sua importância, a Funai enfrenta enormes desafios. O primeiro deles é a falta de estrutura. O órgão sofre com orçamento limitado, déficit de servidores e dificuldades logísticas para atender comunidades que vivem em regiões remotas. Some-se a isso a intensa judicialização dos processos de demarcação, constantemente questionados por setores econômicos interessados na exploração das terras. A recente lei do marco temporal, aprovada em 2023, é um exemplo de como forças políticas tentam restringir direitos constitucionais, estabelecendo que apenas os povos que estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988 teriam direito à demarcação. Essa tese desconsidera expulsões violentas e deslocamentos forçados ocorridos antes dessa data, transformando vítimas de violações históricas em réus. A Funai, nesse cenário, precisa constantemente reafirmar sua função de defesa intransigente dos povos indígenas diante de interesses que colocam o lucro acima da vida.
Outro desafio é o avanço de atividades ilegais, como o garimpo e o desmatamento, que destroem territórios e colocam em risco a vida de comunidades inteiras, especialmente de povos isolados e de recente contato. A Funai atua na proteção desses povos, que estão entre os mais vulneráveis do planeta, pois não possuem defesas imunológicas contra doenças comuns e correm risco de genocídio em caso de contato forçado. Essa missão exige não apenas recursos financeiros, mas também firmeza política e apoio interinstitucional, envolvendo órgãos ambientais, forças de segurança e o Ministério Público.
Apesar das dificuldades, é preciso destacar os avanços recentes. Em 2023, por exemplo, a Funai retomou a prioridade da demarcação de terras, investindo mais de R$ 200 milhões nessa política. Também fortaleceu espaços de participação, como o
Conselho Nacional de Política Indigenista e o Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas, permitindo que as próprias lideranças indígenas tenham voz ativa na formulação de políticas que lhes dizem respeito. Esse é um passo fundamental para a democratização das relações entre Estado e povos indígenas, superando uma lógica tutelar que marcou o passado da política indigenista.
Diante desse cenário, afirmar a importância da Funai é reafirmar um compromisso ético e jurídico com o Brasil que se pretende democrático, plural e sustentável. Proteger os povos indígenas não é apenas garantir que culturas milenares sobrevivam, mas também assegurar que o país cumpra suas obrigações internacionais de direitos humanos e ambientais. É reconhecer que o futuro do Brasil passa pela preservação de sua sociobiodiversidade, pela valorização dos saberes ancestrais e pela construção de uma relação respeitosa entre diferentes modos de vida.
Por isso, dizer que “A Funai e a Democracia: por que defender os povos indígenas é defender o Brasil” não é apenas um título chamativo, mas uma verdade incontestável. Em um momento em que interesses imediatistas tentam reduzir os direitos indígenas, é fundamental lembrar que a Constituição de 1988 não deixou espaço para dúvidas: os direitos indígenas são originários, isto é, anteriores à própria formação do Estado brasileiro. A Funai, nesse sentido, não é um privilégio, mas uma necessidade institucional para garantir que esses direitos sejam respeitados. Defender a Funai é, portanto, defender a Constituição, a democracia e o futuro do Brasil.
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