Todos os anos, quando se iniciam os 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher, e aqui no Brasil os 21 Dias de Ativismo, somos convidados, ou provocados, a refletir sobre as violências que seguem atravessando a vida das brasileiras. Vitimando mulheres e famílias, deixando órfãos do feminicídio e do medo. É um período de campanhas, postagens, debates, seminários. Um período de lembrança coletiva. Mas é também e sobretudo, um período de indignação.
Indignação porque, apesar das leis, protocolos, recomendações e políticas, o Brasil permanece entre os países que mais matam mulheres no mundo. Indignação porque, a cada ano, vemos notícias de mulheres vítimas de toda forma de violência, de perseguição, de misoginia, de ameaças. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública e outros órgãos de pesquisa, confirmam o que nós já sabemos empiricamente: a violência não diminui. Ela se transforma. Se expande. Se digitaliza. Se institucionaliza. E, muitas vezes, se legitima pela omissão do próprio Estado.
E indignação, sobretudo, porque nossas conquistas legislativas, nasceram da dor.
Quando o Brasil incorporou ao calendário oficial os 21 Dias de Ativismo, iniciando o período em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, fez uma escolha política explícita de reconhecer que não existe combate à violência de gênero sem enfrentar o racismo estrutural.
Mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio, violência obstétrica, violência sexual, violência policial e violência institucional. Os dados dos últimos anos escancaram essa verdade. A campanha, portanto, não é apenas um marco simbólico, é um alerta sobre prioridades que o país não pode ignorar.
Durante esse período, fala-se muito sobre empoderamento, respeito, igualdade. Mas é preciso ir além e precisamos falar sobre responsabilidade, controle social das instituições e compromisso político real com a vida das mulheres. E pensamento em compromisso político é essencial a representação política de mulheres, sabemos que por mais que exista lei determinando uma porcentagem mínima de candidaturas de mulheres essa representatividade ainda é burlada por meio de dificuldades nas campanhas em decorrência de fraudes partidárias às cotas de gênero.
A história das irmãs Mirabal, Pátria, Minerva e Maria Teresa, mortas brutalmente pela ditadura de Trujillo, não é uma história distante, apesar dos mais de 60 anos do ocorrido. É um espelho, que continua refletindo e machucando.
Elas eram mulheres comuns, com sonhos comuns, e tiveram suas vidas interrompidas por ousarem se posicionar contra um regime violento e misógino. O que as matou não foi apenas a força bruta do Estado, mas o conjunto de silenciamentos, omissões e permissões sociais que tornam a violência contra mulheres não apenas possível, mas recorrente.
Quando a ONU, em 1999, instituiu o 25 de novembro como Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra a Mulher, não o fez para homenagear, mas para lembrar que a violência não nasce do nada. Ela é construída. Assim como no Brasil.
Ao longo das últimas décadas, o país aprovou leis fundamentais para enfrentar diferentes formas de violência. Mas a maior parte delas só existe por causa de histórias concretas e devastadoras que as antecederam.
A Lei Maria da Penha não surgiu espontaneamente, mas nasceu de 20 anos de impunidade. Maria da Penha só conseguiu justiça quando denunciou o Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E mesmo após toda a dor infligida durante o casamento com a tentativa de feminicídio por duas vezes, toda a violência psicológica, moral e patrimonial que sofreu, por todos os anos que essas violências continuaram impunes, há pouco tempo, ela foi vítima de perseguição e ameaças, principalmente nas redes sociais, por grupos masculinistas que disseminavam discursos de ódio e fake News, a levando a ser incluída em um programa de proteção.
A Lei Carolina Dieckmann só foi aprovada após uma mulher pública ter sua privacidade violada e seu corpo exposto, em um país que ainda hoje naturaliza a violência digital contra mulheres e meninas.
A Lei Joana Maranhão só se tornou realidade porque uma criança foi abusada por um adulto que deveria protegê-la e deveria ser de confiança, mas também porque durante anos a sociedade silenciou e tratou como tabu certos assuntos, como se não falar sobre o problema fizesse com que deixe de existir, silenciou e se omitiu, como silencia diante da maioria dos abusos infantis. O silêncio só beneficia o agressor, é preciso levar o conhecimento, saber que é uma vítima, mas que não precisa continuar sendo, que existe caminhos, e denunciar é preciso.
A Lei Mariana Ferrer só ganhou força porque o país assistiu, estarrecido, a uma vítima ser humilhada em audiência, num espetáculo de violência institucional que deveria envergonhar todo o sistema de justiça. Até quando mulheres serão julgadas por roupas, comportamentos, vida regressa, numa tentativa pífia de justificar o injustificável.
As Leis Lola e Rose Leonel surgiram porque mulheres foram perseguidas, difamadas, expostas e atacadas no ambiente digital. Nos dias atuais, de intensa utilização de redes sociais e com as facilidades de uso de inteligência artificial, ferramentas de manipulação de imagens, “deepfakes”, são facilmente utilizados para esses fins, não se limitando apenas as mulheres e incluindo crianças e adolescentes, como várias notícias do tipo ocorrido em escolas no nosso país.
Cada uma dessas leis é uma conquista, pois infelizmente alguns só respondem a punição. Mas também é um memorial. E um lembrete incômodo, que no Brasil, as mulheres só viram política pública depois de sofrerem, resistirem, denunciarem ou morrerem.
Temos leis, medidas protetivas, políticas de prevenção, serviços de acolhimento, campanhas anuais, comissões especializadas, núcleos dentro da OAB, delegacias especializadas, protocolos e diretrizes.
E apesar disso, mulheres continuam sendo mortas dentro de casa; meninas continuam sendo abusadas por familiares; mulheres negras continuam sendo as maiores vítimas de feminicídio; adolescentes seguem sofrendo violência digital; vítimas seguem sendo desacreditadas em delegacias e tribunais; a violência institucional segue sendo uma realidade cotidiana.
Leis, por si só, não rompem estruturas. A violência de gênero no Brasil está ancorada em três pilares: o machismo cultural que regula a vida das mulheres; a omissão institucional e a impunidade.
O machismo não é um comportamento individual é uma lógica social que naturaliza o controle sobre o corpo, as escolhas e a autonomia das mulheres. É o machismo que nos diz que “melhor não denunciar”, que “vai dar trabalho”, que “é briga de marido e mulher”.
O Estado ainda falha de forma sistemática com delegacias ineficientes ou inexistentes; falta de agentes especializados; investigações precárias, sobretudo em crimes digitais; acolhimento desumanizado; revitimização nos processos; lentidão judicial.
A impunidade talvez seja o ponto mais grave. Agressores que não são punidos sentem-se autorizados a continuar, não compreendem a extensão dos danos que causam, são legitimados a continuar a perpetuação da violência. A sociedade que assiste a essa impunidade também se acostuma, deixam de ficar perplexos e tratam apenas como mais um caso. E as vítimas, diante disso, se calam, pois entendem que não adianta denunciar, que nada irá mudar.
Leis com nome de mulher não deveriam ser necessárias. Não deveríamos precisar de leis com nomes de vítimas para avançar. Não deveríamos esperar que mais uma mulher seja quase morta por seu companheiro, que uma adolescente tenha sua intimidade exposta ao país, que uma criança sofra anos de abuso, que uma jovem seja humilhada na justiça, que mulheres sejam perseguidas por ódio e misoginia digital, para só então dizer, que agora sim precisamos de uma lei.
As leis deveriam nascer da prevenção estrutural, e não da reação tardia e emergencial. Precisamos transformar a proteção das mulheres e meninas em uma prioridade nacional, permanente e com dotação orçamentária, e não em uma resposta episódica impulsionada por tragédias midiáticas. Isso exige uma série de ações conjuntas e profundas:
Educação de Gênero e Antirracista: Implementação de ações educativas obrigatórias e continuadas, desde a primeira infância até o ensino médio e superior, que formem novas gerações capazes de desconstruir o machismo, a misoginia e as formas de discriminação racial. O objetivo é ensinar respeito e igualdade, antes que a violência se instale.
Investimento Estruturado e Profissionalização: Investimento maciço e contínuo na estrutura das Delegacias de Atendimento à Mulher (DEAMs), garantindo recursos humanos e materiais 24 horas por dia, 7 dias por semana. É imperativo a contratação de peritos digitais especializados em violência de gênero, psicólogos, assistentes sociais e policiais treinados em acolhimento humanizado.
Protocolos Obrigatórios e Fiscalização Real: Instituição de protocolos de atendimento obrigatórios, especialmente os de julgamento com perspectiva de gênero, em todo o Judiciário e Ministério Público, conforme as diretrizes internacionais. A fiscalização deve ser real, com punição firme para agentes públicos que perpetuem a violência institucional, desacreditando, culpabilizando ou revitimizando as vítimas.
Ações Integradas e Rede de Atendimento: Criação de um sistema de rede de atendimento intersetorial de verdade, com fluxo de informações e ações integradas entre saúde, assistência social, segurança pública e justiça. A vítima não pode ser obrigada a percorrer um calvário burocrático, sendo responsabilidade do Estado articular a proteção de forma holística e eficaz.
Campanhas Contínuas e Acessibilidade: Campanhas de conscientização não apenas pontuais, mas contínuas, por todos os meios de comunicação, garantindo que a informação sobre os direitos e os caminhos para a denúncia chegue de forma acessível a todas as mulheres, especialmente nas comunidades mais remotas e periféricas.
Responsabilização Firme e Transparente: Por fim, mas não menos importante, a responsabilização firme e transparente dos agressores e, principalmente, dos agentes públicos que se omitem ou que agem de forma misógina, transformando a impunidade em exceção e a justiça em regra.
Não precisamos de mais leis com nomes de vítimas. Precisamos, urgentemente, de políticas públicas que evitem novas vítimas. A dor não pode continuar sendo o motor da mudança legal. A vida, sim, deve ser a prioridade.
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