Setembro Amarelo é o mês de prevenção ao suicídio e de conscientização da importância da saúde mental. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que mais de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo vivem com transtornos mentais, como a ansiedade e a depressão. Essas condições têm um impacto humano, social e econômico significativo. No Brasil, o aumento no número de afastamentos do trabalho por conta das chamadas “doenças invisíveis” evidencia a urgência em se debater como o nosso sistema previdenciário tem lidado com essa questão.
A Invisibilidade da Doença e o Desafio da Comprovação
O sistema previdenciário brasileiro, em especial a Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei nº 8.213/91), oferece benefícios aos seus segurados quando estes sofrem de incapacidade laboral temporária ou permanente. O auxílio por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença) ou a aposentadoria por incapacidade permanente são alguns desses benefícios destinados àqueles que se encontram impossibilitados de trabalhar. Contudo, quando essa incapacidade é decorrente de doenças psiquiátricas, a concessão desses benefícios pode encontrar um desafio peculiar e complexo: a dificuldade de comprovação.
Diferentemente de uma lesão física evidente, doenças mentais como depressão, ansiedade e síndrome de burnout são, em sua maioria, subjetivas. Conforme apontado no artigo “A crise do diagnóstico em psiquiatria e os manuais diagnósticos”, a semiologia médica, que fundamenta o diagnóstico, se baseia tanto em sinais objetivos (percebidos por outros) quanto em sintomas subjetivos (relatados pelo próprio paciente). O diagnóstico clínico avaliativo é um “processo intersubjetivo, no qual o médico tem a função de tradutor.” E essa “tradução” pode não ser realizada da mesma forma que em um laudo médico do paciente comparada à das perícias médicas realizadas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
O Papel da Perícia e a Judicialização dos Casos
As perícias médicas do INSS frequentemente se baseiam em critérios que não capturam a totalidade do impacto de uma doença mental na capacidade laborativa, o que coloca os segurados em uma posição de vulnerabilidade.
A ausência de exames objetivos que mensurem a gravidade da condição resulta em uma alta taxa de indeferimento de requerimentos administrativos. Isso ocorre porque o foco na objetividade e a dificuldade em se afastar da busca por sinais físicos aparentes, prejudica a avaliação da realidade experienciada pelo indivíduo.
A judicialização dos benefícios previdenciários por incapacidade diante de indeferimentos na via administrativa tem crescido muito nos últimos anos. De acordo com o relatório “Justiça em Números 2024” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), processos de direito previdenciário estão entre os que mais tramitam na Justiça Federal, com o auxílio por incapacidade temporária sendo o mais recorrente, seguido pela aposentadoria por incapacidade permanente.
Isso reflete a dificuldade dos segurados em obter o reconhecimento de seus direitos na via administrativa, forçando-os a recorrer à justiça na qual, em muitos casos, resulta na reversão da negativa, concedendo o benefício pela via judicial.
A Necessidade de um Olhar Holístico e Humanizado
A fim de enfrentar o desafio de se comprovar a incapacidade laboral decorrente de doenças mentais, é fundamental que haja maior conscientização e preparo no sistema previdenciário para que possa avaliar de forma mais holística as doenças psiquiátricas. É preciso que as perícias médicas evoluam para além dos sinais físicos aparentes, considerando o histórico clínico detalhado, exames e laudos médicos de especialistas. Além disso, a definição das doenças mentais depende, essencialmente, do contexto sociocultural, histórico, e da trajetória de desenvolvimento do indivíduo, levando em conta o caráter subjetivo da avaliação médica.
Entender o que leva o segurado ao afastamento do trabalho (alto nível de estresse, atividades mais exaustivas emocionalmente, assédio moral, aumento da carga de trabalho, etc.) também pode ajudar no diagnóstico e no resultado da perícia. A colaboração com profissionais de saúde mental e o uso de critérios atualizados e específicos para cada transtorno podem otimizar o processo e garantir um olhar mais completo sobre a condição do paciente.
Conclusão
A concessão de benefícios previdenciários por incapacidade em casos de doenças psiquiátricas é um desafio que expõe uma lacuna entre a legislação e a realidade dos segurados. Para garantir o acesso a um direito fundamental, é crucial aprimorar os métodos de avaliação pericial, investir em capacitação e adotar uma abordagem mais humanizada. Somente assim, o sistema previdenciário poderá cumprir seu papel de proteger os mais vulneráveis, reconhecendo que a saúde mental é tão importante quanto a saúde física e merece semelhante atenção, cuidado e proteção.
Referências Bibliográficas
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