Gleice Ferreira Costa

Câmeras corporais nas fardas e nas consciências: Entre a proteção e a vigilância, o que queremos da nossa polícia?

Postado em 06 de agosto de 2025 Por Gleice Ferreira Costa Academica de Direito , atualmente no sexto período.

Vivemos sob a promessa de um Estado Democrático de Direito. Um Estado que deveria garantir, em primeiro lugar, liberdade, dignidade e igualdade para todas as pessoas — inclusive no momento em que o braço mais visível do poder estatal, a polícia, entra em cena. Mas será que esse sistema tem funcionado assim? Será que a atuação policial tem cumprido esse papel de garantir segurança sem ferir direitos?

A estrutura da segurança pública no Brasil é marcada por contradições históricas. Criada para proteger a sociedade, a polícia também carrega — e perpetua — traços de violência, racismo estrutural e desigualdade social. Não é exagero dizer que, para muitos grupos sociais, sobretudo pessoas negras, pobres e periféricas, a presença policial é mais motivo de medo do que de alívio.

É nesse contexto que ganham força os debates sobre políticas públicas de segurança que busquem reequilibrar essa balança, protegendo os direitos de quem é abordado, mas também assegurando as condições adequadas para que a polícia atue com eficiência, ética e respeito.

Políticas públicas são instrumentos essenciais para concretizar direitos no cotidiano da população. Elas representam a atuação planejada do Estado para enfrentar problemas sociais, com base em diagnósticos reais e compromissos institucionais. No campo da segurança, uma dessas políticas tem despertado atenção nos últimos anos: o uso de câmeras corporais acopladas ao uniforme de agentes policiais.

As chamadas bodycams não são apenas dispositivos tecnológicos. Elas representam uma mudança de paradigma. Quando uma câmera grava uma abordagem policial, ela registra não apenas o comportamento da pessoa abordada, mas também da autoridade que atua em nome do Estado. É um espelho da conduta policial, mas também um escudo para o profissional que age dentro da legalidade.

Os dados não mentem: em estados como São Paulo e Santa Catarina, a implementação das câmeras corporais está associada à redução significativa da letalidade policial e das denúncias de abuso de autoridade. Ao mesmo tempo, essas mesmas imagens servem para absolver policiais acusados injustamente ou afastar qualquer dúvida quanto à correção de sua conduta. Ou seja, todos ganham quando a transparência é regra.

Mas como quase toda política pública, o uso das câmeras também carrega seus desafios. Há quem critique a idéia de que o policial deva ser filmado o tempo todo, inclusive em situações de alto estresse e tomada rápida de decisões. Algumas vozes alertam para o risco de transformar a atividade policial em um espetáculo permanentemente vigiado, no qual o medo de ser mal interpretado possa comprometer a agilidade, a confiança e a firmeza necessárias ao exercício da função.

É verdade. A supervigilância, quando mal calibrada, pode se transformar em um novo tipo de opressão — dessa vez contra o próprio profissional da segurança pública. É por isso que o debate sobre as câmeras não deve ser feito em clima de hostilidade à polícia, mas com um olhar honesto e equilibrado. A pergunta não é se a polícia deve ser controlada, mas como garantir um controle democrático que fortaleça sua atuação, ao invés de fragilizá-la.

A resposta talvez esteja no meio do caminho. Em reconhecer que a transparência é uma aliada, não uma inimiga. Que o registro audiovisual pode coibir abusos, sim, mas também proteger o bom policial — aquele que respeita a Constituição, que atua com técnica, coragem e humanidade.

Defender o uso das câmeras não é criminalizar a polícia. Pelo contrário. É defender uma polícia cidadã, legítima, confiável e respeitada. É recusar a idéia de que segurança pública precisa ser sinônimo de medo. É dizer que, num Estado Democrático de Direito, ninguém está acima da lei, mas também ninguém deve estar abaixo da proteção legal.

A atividade policial é nobre. E é exatamente por isso que ela precisa ser exercida com responsabilidade, preparo e limites claros. Quando bem regulado, o uso das câmeras não tolhe a autoridade — ele a legitima.

O Direito Penal não pode ser ferramenta de perseguição seletiva, nem de omissão conivente. O que se espera é que ele seja instrumento de proteção à dignidade humana, de combate à violência institucional e de construção de uma cultura jurídica baseada na justiça — e não no medo.

Se queremos um país mais seguro, mais justo e mais igual, precisamos também de uma polícia mais transparente, mais valorizada e mais comprometida com os direitos fundamentais. Uma polícia que use a câmera no peito, mas tenha a Constituição na cabeça e o respeito pelas pessoas no coração.

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