A Constituição Federal consagra a dignidade da pessoa humana como um dos pilares do Estado Democrático de Direito, impondo ao poder público o dever de assegurar tratamento diferenciado aos grupos vulneráveis – inclusive no âmbito tributário. Nesse contexto, a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) sobre herdeiros com deficiência revela-se incompatível com os valores constitucionais, sobretudo quando compromete sua sobrevivência, autonomia e inclusão social.
No estado de Pernambuco, a Lei nº 13.974/2009 e o Decreto nº 35.985/2010 regulamentam o ITCMD, prevendo isenções tributárias específicas para grupos como ex-combatentes, servidores públicos e trabalhadores rurais. Contudo, não há previsão normativa expressa de isenção para pessoas com deficiência. Esse silêncio legislativo, entretanto, não pode servir de alicerce para omitir-se diante da proteção constitucional assegurada a essas pessoas.
A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova York/2006), incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status de emenda constitucional (Decreto nº 6.949/2009), o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) e o Decreto nº 3.298/1999 determinam que o Estado adote medidas para garantir a efetividade dos direitos dessas pessoas, orientam a interpretação normativa com base na inclusão e na igualdade substancial, e reconhecem a necessidade de eliminar barreiras — inclusive econômicas — que comprometam sua plena autonomia e participação social. Exigir o pagamento do ITCMD de um herdeiro com deficiência – muitas vezes em situação de dependência contínua e com limitações para inserção no mercado de trabalho – implica onerar ainda mais quem já se encontra em desvantagem estrutural.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, notadamente o julgamento do REsp 1.150.356/SP (Tema 391), firmou o entendimento de que, em inventários judiciais regulares (não sumários), é possível ao magistrado, após a oitiva da Fazenda Pública, reconhecer a isenção do ITCMD em casos excepcionais de hipossuficiência. No mesmo sentido, em recente decisão (AgInt no REsp 2.098.432/AL), o STJ reafirmou a validade dessa possibilidade mesmo na ausência de lei específica, desde que demonstrada a vulnerabilidade do herdeiro e adotado o procedimento adequado. A controvérsia, portanto, não reside na viabilidade jurídica da isenção, mas na forma processual e na robustez da demonstração da vulnerabilidade do herdeiro.
Portanto, aplicar o princípio da legalidade tributária (art. 150, I e §6º, da CF/88) sem considerar os princípios da dignidade, da igualdade material e da proteção às pessoas com deficiência seria uma interpretação formalista e, sobretudo, inconstitucional. Não se trata de criar privilégios fiscais arbitrários, mas de concretizar o direito fundamental à justiça tributária e à igualdade substancial, conforme os valores estruturantes da Constituição.
Diante de todo esse arcabouço, é legítimo e necessário que o Poder Judiciário, diante de situações concretas de herdeiros com deficiência em condição de vulnerabilidade, reconheça a inaplicabilidade do ITCMD, mesmo que a legislação estadual não preveja expressamente essa hipótese. A hipossuficiência, nesses casos, não se limita à ausência de renda formal, mas revela-se como uma condição estrutural. Pessoas com deficiência frequentemente dependem de terceiros para atividades básicas como alimentação, locomoção e higiene, e enfrentam obstáculos persistentes à conquista de um trabalho digno que lhes assegure sustento próprio. Esse cenário compromete não apenas a autonomia financeira, mas também a realização plena dos direitos à igualdade e à cidadania. Ignorar esses elementos na aplicação do direito tributário é negar a própria essência da igualdade substancial.
Mais do que juridicamente possível, a isenção do ITCMD nesses casos é um imperativo de coerência normativa, justiça tributária e respeito à dignidade humana. Não se trata apenas de uma interpretação conforme a Constituição — trata-se de uma exigência ética. Por isso, é fundamental que a advocacia atue de forma ativa e propositiva nos processos de inventário, suscitando, fundamentando e reiterando o pedido de isenção em favor de pessoas com deficiência. É preciso fomentar uma nova cultura processual que leve a sério os direitos fundamentais e supere a passividade diante de omissões legislativas inconstitucionais. A prática forense precisa corresponder à altura do compromisso civilizatório firmado pela Constituição de 1988.
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