O 11 de agosto, data que marca a criação dos primeiros cursos jurídicos no Brasil, em 1827, é sempre apresentado como um símbolo de avanço e institucionalização do saber jurídico. Entretanto, como todo marco histórico, ele carrega camadas de significados que precisam ser revisitadas à luz dos desafios atuais. Celebrar essa data é, sim, reconhecer a importância da educação jurídica. Mas é, sobretudo, encarar de frente as contradições que ainda persistem e questionar: qual Direito estamos ensinando, e para quem?
Historicamente, os cursos jurídicos foram moldados a partir de um paradigma eurocêntrico, com currículos que, por muito tempo, ignoraram a diversidade étnico-racial, social e cultural do Brasil. A formação do profissional do Direito se deu — e em muitos espaços ainda se dá — como um treinamento técnico voltado à manutenção de um sistema jurídico que, embora fale em igualdade, foi construído sobre bases profundamente desiguais. Não é por acaso que o acesso à profissão foi, durante décadas, privilégio de uma elite restrita, enquanto as vozes negras, indígenas e populares eram sistematicamente silenciadas.
No Brasil contemporâneo, a formação jurídica não pode se limitar à repetição de fórmulas doutrinárias ou à memorização acrítica da lei. O cenário social é marcado por desigualdades estruturais, por um racismo institucional que se infiltra nas práticas forenses e por demandas urgentes de acesso à justiça. A relevância do profissional do Direito na sociedade brasileira exige um compromisso ético e político que ultrapassa a técnica: exige consciência histórica, sensibilidade social e coragem para enfrentar privilégios.
Em Pernambuco, Estado com tradição de resistência, da Revolução Pernambucana aos movimentos negros e populares contemporâneos, a educação jurídica tem potencial para ser mais do que um repositório de normas. Pode — e deve — ser um instrumento de emancipação. Para isso, é preciso repensar profundamente a forma como formamos nossas e nossos juristas. O fortalecimento da educação jurídica não se mede apenas pelo número de faculdades ou pela expansão do ensino à distância; ele se mede pela qualidade da formação, pelo grau de compromisso social dos egressos e pela sua capacidade de dialogar com as demandas reais da população.
O racismo estrutural é um ponto inescapável nessa reflexão. Não basta inserir disciplinas optativas sobre direitos humanos ou questões raciais como um “acessório” no currículo. É necessário também racializar o ensino jurídico, incorporando a compreensão de que a desigualdade racial é um elemento constitutivo do próprio sistema de justiça. A ausência dessa perspectiva faz com que a aplicação da lei continue a reproduzir desigualdades, mesmo quando se afirma neutra. Um profissional do Direito bem formado hoje precisa compreender que a sua atuação pode tanto perpetuar injustiças quanto desmontá-las — e essa escolha começa ainda na graduação.
Além disso, a formação jurídica contemporânea precisa abandonar a falsa ideia de que o Direito é um espaço isolado da realidade social. A prática forense, a advocacia, a magistratura, o Ministério Público e a defensoria não são mundos apartados: estão intrinsecamente ligados à vida cotidiana de milhões de brasileiros. Um juiz que desconhece a realidade socioeconômica de uma família periférica pode aplicar a lei de forma formalmente correta, mas materialmente injusta. Um advogado que não entende as barreiras de acesso ao Judiciário para comunidades quilombolas ou ribeirinhas corre o risco de se tornar cúmplice da exclusão.
A função social da advocacia e das demais carreiras jurídicas precisa ser ensinada como eixo central da formação. Não se trata de romantizar o papel do jurista, mas de compreender que, numa sociedade desigual como a nossa, a neutralidade é uma escolha política — e quase sempre favorável à manutenção do status quo.
O fortalecimento da educação jurídica em Pernambuco passa também pela integração entre universidade e comunidade. Projetos de extensão, núcleos de prática jurídica e atividades em territórios vulnerabilizados não devem ser apenas requisitos formais para o diploma, mas experiências transformadoras que preparem estudantes para lidar com o Brasil real. Ao conhecer de perto as demandas de uma ocupação urbana, de um quilombo ou de um grupo de trabalhadoras domésticas, o futuro profissional amplia seu repertório e fortalece seu compromisso com a justiça.
Outro ponto crucial é a democratização do acesso à formação jurídica. Não é possível falar em fortalecimento do ensino do Direito sem enfrentar as barreiras econômicas e sociais que ainda afastam estudantes negros e de baixa renda das faculdades. As políticas de cotas raciais e sociais, os programas de bolsas e o incentivo a uma permanência estudantil digna são medidas que não apenas promovem diversidade, mas elevam a qualidade do ensino — afinal, quanto mais plural for o corpo discente, mais rica será a troca de experiências e perspectivas.
No contexto atual, em que o Brasil enfrenta crises políticas, econômicas e sociais, o profissional do Direito tem papel estratégico. Sua atuação pode contribuir para a reconstrução da confiança nas instituições, para a garantia de direitos fundamentais e para a efetividade da democracia. Mas, para isso, é preciso que esteja preparado para dialogar com um país que é, ao mesmo tempo, profundamente desigual e profundamente plural. Isso implica rever metodologias de ensino, estimular o pensamento crítico, valorizar a interdisciplinaridade e, sobretudo, cultivar um olhar atento para as realidades invisibilizadas.
Celebrar o 11 de agosto, portanto, não pode ser apenas um ritual de homenagem ao passado. Deve ser um chamado à ação. É preciso reafirmar o compromisso com uma educação jurídica que não se contente em reproduzir fórmulas, mas que forme profissionais capazes de fazer do Direito um instrumento vivo de transformação social. Em Pernambuco, esse compromisso se traduz na necessidade de formar juristas que conheçam a história de luta do nosso povo, que compreendam as marcas do racismo e da desigualdade e que estejam dispostos a atuar de forma propositiva para construir uma sociedade mais justa.
O profissional do Direito que o Brasil precisa hoje não é o que se limita a interpretar a lei segundo um manual, mas aquele que a interpreta à luz da Constituição, dos tratados internacionais de direitos humanos e, sobretudo, da realidade concreta das pessoas que busca defender. É o jurista que entende que o fortalecimento da educação jurídica não é um fim em si mesmo, mas um meio para alcançar o fortalecimento da própria democracia.
Assim, no dia 11 de agosto, ao celebrarmos o nascimento dos cursos jurídicos, precisamos também renovar o pacto com o futuro. Um futuro em que a educação jurídica em Pernambuco e no Brasil seja, de fato, comprometida com a justiça racial, com a igualdade de oportunidades e com a transformação social. Porque formar para o Direito é, antes de tudo, formar para a vida — e para a vida de todos, sem exceção.
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