Emerson Rodrigues de Souza

“Engravidou”, de Anderson Neiff, como reflexo da cultura patriarcal do abandono paterno

Postado em 17 de setembro de 2025 Por Émerson Rodrigues de Souza Advogado. Militante na área de Direito das Famílias e Diversidade Sexual e de Gênero

A cultura popular sempre foi um espelho da sociedade. Nas letras de músicas, novelas, filmes e expressões artísticas em geral, é possível identificar representações do cotidiano, com suas virtudes e contradições. A canção “Engravidou”, de Anderson Neiff, inserida no universo do brega-funk, é um exemplo emblemático desse fenômeno. Ainda que a música seja marcada por um tom humorístico e irreverente, sua mensagem expõe, de forma involuntária, um problema estrutural e persistente: o abandono paterno.

Antes de mais nada, é importante ressaltar que este artigo (e seu autor) não crítica o artista, tampouco sua obra, considerando que sua importância para a cultura popular pernambuca – e por que não brasileira – notadamente para milhares de crianças e adolescentes periféricas. Esta é uma crítica ao patriarcado e a cultura do abandono paterno que, em alguma medida, se reflete também na música aqui citada.

Dito isso, vamos aos fatos! O Brasil convive historicamente com elevados índices de ausência paterna. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, há mais de 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai no registro civil. A paternidade, em muitos casos, é tratada como  um ato opcional ou secundário, cuja responsabilidade recai quase integralmente sobre as mães. A letra de “Engravidou” traduz essa lógica: diante da notícia da gravidez, a reação é marcada pela surpresa descompromissada, sem qualquer  reconhecimento imediato do dever de corresponsabilidade.

O abandono parental se manifesta em duas dimensões igualmente graves. A primeira é a material, quando o genitor se  recusa a contribuir com os recursos necessários para o sustento da criança. A segunda é a afetiva, caracterizada pela ausência do convívio, do cuidado e da presença emocional. Ambas configuram formas de violência contra a criança e violam diretamente o princípio do melhor interesse previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Do ponto de vista jurídico, o abandono paterno é objeto de crescente atenção. Além da tradicional ação de alimentos, a jurisprudência brasileira vem reconhecendo a possibilidade de responsabilização civil por abandono afetivo, gerando indenizações por danos morais. Embora ainda haja divergências, esse movimento reafirma o entendimento de que o cuidado não é faculdade, mas dever jurídico. A Constituição Federal, em seu art. 226, §7º, ao tratar do planejamento familiar, estabelece claramente que homens e mulheres possuem iguais direitos e deveres, sendo a paternidade responsável um valor constitucional.

Ao relacionarmos esse quadro jurídico-social com a música de Anderson Neiff, percebemos a força da cultura popular  como termômetro da realidade. A batida envolvente e a linguagem acessível não escondem o que está por trás da narrativa: a naturalização de uma postura masculina de distanciamento e omissão diante da parentalidade. O “engravidou” enunciado na canção não é apenas a descrição de um fato biológico, mas a reafirmação de um comportamento social que precisa ser urgentemente desconstruído.

Nesse sentido, a advocacia e as instituições jurídicas, como a Ordem dos Advogados do Brasil, têm papel central. É  preciso provocar reflexões, construir debates e fomentar políticas públicas que assegurem o exercício pleno da  paternidade responsável. A música, enquanto expressão cultural, pode e deve ser utilizada como ponto de partida para  essas discussões, pois traduz de maneira simples e imediata aquilo que os textos legais, muitas vezes, não conseguem  comunicar com igual potência.

Em conclusão, “Engravidou” é mais do que uma canção de sucesso no cenário do brega funk: é um retrato da naturalização  do abandono paterno no Brasil. Ao invés de apenas consumirmos essa obra como entretenimento, precisamos compreendê-la  como sintoma de um problema social urgente. Romper com essa lógica é um desafio coletivo, que exige responsabilização jurídica, mudança cultural e compromisso ético. A paternidade não pode ser reduzida a um acidente ou a uma consequência indesejada: é um dever legal, humano e inadiável.

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