A cultura popular sempre foi um espelho da sociedade. Nas letras de músicas, novelas, filmes e expressões artísticas em geral, é possível identificar representações do cotidiano, com suas virtudes e contradições. A canção “Engravidou”, de Anderson Neiff, inserida no universo do brega-funk, é um exemplo emblemático desse fenômeno. Ainda que a música seja marcada por um tom humorístico e irreverente, sua mensagem expõe, de forma involuntária, um problema estrutural e persistente: o abandono paterno.
Antes de mais nada, é importante ressaltar que este artigo (e seu autor) não crítica o artista, tampouco sua obra, considerando que sua importância para a cultura popular pernambuca – e por que não brasileira – notadamente para milhares de crianças e adolescentes periféricas. Esta é uma crítica ao patriarcado e a cultura do abandono paterno que, em alguma medida, se reflete também na música aqui citada.
Dito isso, vamos aos fatos! O Brasil convive historicamente com elevados índices de ausência paterna. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, há mais de 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai no registro civil. A paternidade, em muitos casos, é tratada como um ato opcional ou secundário, cuja responsabilidade recai quase integralmente sobre as mães. A letra de “Engravidou” traduz essa lógica: diante da notícia da gravidez, a reação é marcada pela surpresa descompromissada, sem qualquer reconhecimento imediato do dever de corresponsabilidade.
O abandono parental se manifesta em duas dimensões igualmente graves. A primeira é a material, quando o genitor se recusa a contribuir com os recursos necessários para o sustento da criança. A segunda é a afetiva, caracterizada pela ausência do convívio, do cuidado e da presença emocional. Ambas configuram formas de violência contra a criança e violam diretamente o princípio do melhor interesse previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Do ponto de vista jurídico, o abandono paterno é objeto de crescente atenção. Além da tradicional ação de alimentos, a jurisprudência brasileira vem reconhecendo a possibilidade de responsabilização civil por abandono afetivo, gerando indenizações por danos morais. Embora ainda haja divergências, esse movimento reafirma o entendimento de que o cuidado não é faculdade, mas dever jurídico. A Constituição Federal, em seu art. 226, §7º, ao tratar do planejamento familiar, estabelece claramente que homens e mulheres possuem iguais direitos e deveres, sendo a paternidade responsável um valor constitucional.
Ao relacionarmos esse quadro jurídico-social com a música de Anderson Neiff, percebemos a força da cultura popular como termômetro da realidade. A batida envolvente e a linguagem acessível não escondem o que está por trás da narrativa: a naturalização de uma postura masculina de distanciamento e omissão diante da parentalidade. O “engravidou” enunciado na canção não é apenas a descrição de um fato biológico, mas a reafirmação de um comportamento social que precisa ser urgentemente desconstruído.
Nesse sentido, a advocacia e as instituições jurídicas, como a Ordem dos Advogados do Brasil, têm papel central. É preciso provocar reflexões, construir debates e fomentar políticas públicas que assegurem o exercício pleno da paternidade responsável. A música, enquanto expressão cultural, pode e deve ser utilizada como ponto de partida para essas discussões, pois traduz de maneira simples e imediata aquilo que os textos legais, muitas vezes, não conseguem comunicar com igual potência.
Em conclusão, “Engravidou” é mais do que uma canção de sucesso no cenário do brega funk: é um retrato da naturalização do abandono paterno no Brasil. Ao invés de apenas consumirmos essa obra como entretenimento, precisamos compreendê-la como sintoma de um problema social urgente. Romper com essa lógica é um desafio coletivo, que exige responsabilização jurídica, mudança cultural e compromisso ético. A paternidade não pode ser reduzida a um acidente ou a uma consequência indesejada: é um dever legal, humano e inadiável.
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