Leticia Ferreira da Silva

Entre silêncio e luta: O descaso com mulheres negras ou periféricas na aplicação da Lei Maria da Penha

Postado em 20 de agosto de 2025 Por Letícia Ferreira da Silva  Bacharel em Direito pela Faculdade Imaculada Conceição do Recife

Existem mecanismos de proteção e responsabilização das mulheres brasileiras contra a violência doméstica desde então, mas a Lei Maria da Penha foi um marco importante na civilização. No entanto, revela uma lacuna preocupante, apesar da extensão de sua eficácia: mulheres negras, pobres e periféricas permanecem à margem da proteção real. A violência doméstica está longe de ser uma característica universal, mas, como este país, inclui inerentemente outras articulações ontológicas — em cor, classe e território — sobre como viver e sobreviver.

Essa desigualdade não é recente. De acordo com os dados mais atualizados do Atlas da Violência 2025, que analisam números de 2023, as mulheres negras representaram 68,2% das vítimas de homicídio feminino no Brasile foram assassinadas a uma taxa 1,7 vezes maiordo que as mulheres não negras. Segundo o mesmo estudo, a disparidade racial permanece estável há anos, reforçando que, no Brasil, a cor da pele continua sendo um coeficiente mortal de risco.

Denunciar a violência para muitas mulheres negras à margem é uma ação tanto corajosa quanto perigosa: muitas vezes significa enfrentar a falta de moradia, perda de pensão alimentícia, falta de creche ou chance de acesso ao trabalho. O dilema de denunciar ou não é claro porque vai além do que a Lei resolve isoladamente e que só começa a ser efetivamente resolvido com políticas públicas capazes de suprimir barreiras econômicas, sociais e até emocionais.

Para as mulheres e homens capitalistas, medidas protetivas e apoio psicológico são relativamente fáceis de encontrar; para aqueles nas periferias, no entanto, delegacias despreparadas, profissionais insensíveis e justiça seletiva lenta. Em vez de ajuda, sofrem questionamentos re-traumatizantes, dúvidas sobre a validade de sua denúncia e deficiências no atendimento único. O atendimento psicológico e social inadequado, a falta de alinhamento na formação dos profissionais de segurança e justiça em relação aos princípios antirracistas também leva à subnotificação da violência policial.

O racismo institucional reforça essa exclusão. Mitos reforçam continuamente que mulheres negras raramente sofrem violência doméstica, devido à sua aparente “força” ou por serem “masculinas”, negando-lhes assim como sobreviventes em encontros de abuso. Essa lente pervertida de ver a justiça prepara ainda mais as instituições para levantarem as mãos, e amplia as barreiras invisíveis de classe social e raça como árbitro para o acesso à justiça.

A falta de políticas públicas verdadeiramente interseccionais agrava a situação. Faltam delegacias específicas abertas 24 horas por dia, campanhas de conscientização nas comunidades negras e periféricas e programas de abrigo em casos de emergência, além de iniciativas que promovam a autonomia financeira das mulheres. A violência econômica é uma das correntes mais severas que prende uma vítima a um relacionamento abusivo — liberdade, para muitos, significa descer à pobreza, acabar na rua ou até mesmo se expor ao perigo.

Não basta que a Lei Maria da Penha exista, é preciso implementá-la. O pleno funcionamento da rede de proteção (CREAS, CRAS, Centros de Referência para Mulheres, Defensoria Pública) com um investimento consistente e formação antirracista dos profissionais de segurança e judiciário é essencial. As vítimas devem ter acesso a moradia segura e estável, renda, bem como educação para permitir que reconstruam suas vidas.

O preço do abandono é alto: continua o ciclo de violência, apoia traumas intergeracionais, diminui a cidadania e mantém a lógica da exclusão. A mulher que testemunha, mas não é ouvida e que, por isso, carrega na pele os pesos de uma omissão colegial porque é uma síntese de todas aquelas que não tiveram coragem de falar. Entender que a violência tem uma cor, uma classe e um endereço é a primeira condição para acabar com ela.

É necessário parar de ver na Lei Maria da Penha apenas uma letra especificada no papel e transformá-la em uma política que ganhe vida, garantindo a proteção de todas as mulheres, especialmente daquelas que são negadas pela sociedade. A justiça não pode residir como uma promessa ilusória; deve ser uma inocência real, disponível e igual. Silêncio… ou Sobrevivência… “Nenhuma mulher deveria ter que fazer essa escolha.”

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