Existem mecanismos de proteção e responsabilização das mulheres brasileiras contra a violência doméstica desde então, mas a Lei Maria da Penha foi um marco importante na civilização. No entanto, revela uma lacuna preocupante, apesar da extensão de sua eficácia: mulheres negras, pobres e periféricas permanecem à margem da proteção real. A violência doméstica está longe de ser uma característica universal, mas, como este país, inclui inerentemente outras articulações ontológicas — em cor, classe e território — sobre como viver e sobreviver.
Essa desigualdade não é recente. De acordo com os dados mais atualizados do Atlas da Violência 2025, que analisam números de 2023, as mulheres negras representaram 68,2% das vítimas de homicídio feminino no Brasile foram assassinadas a uma taxa 1,7 vezes maiordo que as mulheres não negras. Segundo o mesmo estudo, a disparidade racial permanece estável há anos, reforçando que, no Brasil, a cor da pele continua sendo um coeficiente mortal de risco.
Denunciar a violência para muitas mulheres negras à margem é uma ação tanto corajosa quanto perigosa: muitas vezes significa enfrentar a falta de moradia, perda de pensão alimentícia, falta de creche ou chance de acesso ao trabalho. O dilema de denunciar ou não é claro porque vai além do que a Lei resolve isoladamente e que só começa a ser efetivamente resolvido com políticas públicas capazes de suprimir barreiras econômicas, sociais e até emocionais.
Para as mulheres e homens capitalistas, medidas protetivas e apoio psicológico são relativamente fáceis de encontrar; para aqueles nas periferias, no entanto, delegacias despreparadas, profissionais insensíveis e justiça seletiva lenta. Em vez de ajuda, sofrem questionamentos re-traumatizantes, dúvidas sobre a validade de sua denúncia e deficiências no atendimento único. O atendimento psicológico e social inadequado, a falta de alinhamento na formação dos profissionais de segurança e justiça em relação aos princípios antirracistas também leva à subnotificação da violência policial.
O racismo institucional reforça essa exclusão. Mitos reforçam continuamente que mulheres negras raramente sofrem violência doméstica, devido à sua aparente “força” ou por serem “masculinas”, negando-lhes assim como sobreviventes em encontros de abuso. Essa lente pervertida de ver a justiça prepara ainda mais as instituições para levantarem as mãos, e amplia as barreiras invisíveis de classe social e raça como árbitro para o acesso à justiça.
A falta de políticas públicas verdadeiramente interseccionais agrava a situação. Faltam delegacias específicas abertas 24 horas por dia, campanhas de conscientização nas comunidades negras e periféricas e programas de abrigo em casos de emergência, além de iniciativas que promovam a autonomia financeira das mulheres. A violência econômica é uma das correntes mais severas que prende uma vítima a um relacionamento abusivo — liberdade, para muitos, significa descer à pobreza, acabar na rua ou até mesmo se expor ao perigo.
Não basta que a Lei Maria da Penha exista, é preciso implementá-la. O pleno funcionamento da rede de proteção (CREAS, CRAS, Centros de Referência para Mulheres, Defensoria Pública) com um investimento consistente e formação antirracista dos profissionais de segurança e judiciário é essencial. As vítimas devem ter acesso a moradia segura e estável, renda, bem como educação para permitir que reconstruam suas vidas.
O preço do abandono é alto: continua o ciclo de violência, apoia traumas intergeracionais, diminui a cidadania e mantém a lógica da exclusão. A mulher que testemunha, mas não é ouvida e que, por isso, carrega na pele os pesos de uma omissão colegial porque é uma síntese de todas aquelas que não tiveram coragem de falar. Entender que a violência tem uma cor, uma classe e um endereço é a primeira condição para acabar com ela.
É necessário parar de ver na Lei Maria da Penha apenas uma letra especificada no papel e transformá-la em uma política que ganhe vida, garantindo a proteção de todas as mulheres, especialmente daquelas que são negadas pela sociedade. A justiça não pode residir como uma promessa ilusória; deve ser uma inocência real, disponível e igual. Silêncio… ou Sobrevivência… “Nenhuma mulher deveria ter que fazer essa escolha.”
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