rosa freitas e Renata Tavares Leal

Imóveis da União e Aforamento: Aspectos Jurídicos e Administrativos

Postado em 02 de julho de 2025 Por Rosa Maria Freitas e Renata Tavares Leal 

Rosa Maria Freitas, doutora em Direito e advogada

Renata Tavares Leal, Pós-Graduada em Direito Imobiliário.

Cerca de 770.335 imóveis, distribuídos em 649 municípios dos 27 estados brasileiros, pertencem à União. Esses imóveis geram o lançamento de receitas patrimoniais em razão dos regimes de aforamento e ocupação.

Além dos bens da União, também há imóveis aforados pela Igreja Católica e pela Família Real Brasileira (enfiteuse civil), mas estes estão sujeitos às regras da legislação civil, ao passo que as áreas da União (enfiteuse administrativa) são reguladas por um conjunto de leis específicas, o que lhes confere a caracterização de Patrimônio Público.

No presente artigo, vamos explicar um pouco desse tema que é tão pouco conhecido, apesar de impactar muitos imóveis no Brasil. Recife, por sua relação peculiar com o mar, rios, mangues e canais, possui muitas áreas caracterizadas como terrenos de marinha, acrescidos de marinha e mangues.

1. O que são?

As terras situadas em regiões costeiras, às margens de rios, lagos e lagoas e em áreas sujeitas aos efeitos das marés são classificadas como terrenos de marinha e outros imóveis definidos em lei, sendo administradas pela Superintendência do Patrimônio da União (SPU). Nas áreas conceituadas como terreno de marinha e acrescido de marinha, apresenta-se uma figura jurídica antiga que representa um mecanismo de ocupação do solo sem que haja a propriedade plena (quiritária).

Assim, posse e propriedade não se confundem: a propriedade continua sendo da União, e o foreiro possui uma parte do domínio útil, sendo 83% para o particular e 17% para a União. No caso de ocupação, a União detém 100% do domínio útil, sendo o particular mero ocupante. A figura jurídica se assemelha ao moderno direito de superfície, embora o aforamento e a ocupação não tenham prazo determinado e se transmitam aos herdeiros.

O regime jurídico dos terrenos de marinha permanece vigente por quase dois séculos, tendo sido incorporado pela Constituição Federal de 1988, no art. 20, inciso VII, que reconhece como bens da União “os terrenos de marinha e seus acrescidos” (BRASIL, 1988). Nos termos do art. 1º da Lei n.º 9.760/1946 (BRASIL, 1946), incluem-se entre os bens imóveis da União: a) os terrenos de marinha e seus acrescidos; b) os terrenos marginais dos rios navegáveis, nos territórios federais, se não pertencerem a particulares; c) os terrenos marginais de rios e as ilhas situadas na faixa de fronteira do território nacional e nas zonas sujeitas à influência das marés.

Nos casos de imóveis sob gestão da SPU, o valor pago pelo foreiro ou ocupante não tem natureza tributária nem privada, sendo classificado como preço público, devido anualmente em razão do aforamento ou ocupação.

A Lei n.º 13.240/2015 (BRASIL, 2015) dispõe sobre a administração, alienação e transferência da gestão de bens imóveis da União. Tanto imóveis urbanos quanto rurais podem pertencer à União. Para que um imóvel seja considerado urbano, deve apresentar algum elemento de urbanização, conforme o art. 8º, §2º, da referida lei.

2. Por que a União está interessada em receber informações dos municípios?

O valor do foro e ocupação pagos anualmente não deve considerar benfeitorias ou construções, mas apenas o valor da terra nua. Segundo o art. 4º, parágrafo único, do Decreto-Lei n.º 3.438/1941: “O foro é de 0,6%, calculado sobre o valor do domínio pleno do terreno, deduzido o valor das benfeitorias porventura existentes” (BRASIL, 1941).

O Tema 1.142 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu as seguintes teses: a) A ausência de registro imobiliário (contratos de gaveta) não impede a incidência do laudêmio; b) O termo inicial para a constituição dos créditos é o momento em que a União tem ciência do fato gerador, nos termos do § 1º do art. 47 da Lei n.º 9.636/1998 (BRASIL, 1998), com redação da Lei n.º 9.821/1999 (BRASIL, 1999); c) O art. 47 da Lei n.º 9.636/1998 (BRASIL, 1998) regula a decadência e prescrição das receitas patrimoniais da União, sejam periódicas (foro e taxa) ou esporádicas (laudêmio) (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, [s.d.]).

Na prática, a SPU busca o envio das plantas genéricas de valores, que servem como base de cálculo do IPTU. Embora o IPTU considere benfeitorias, o laudêmio se baseia exclusivamente no valor do metro quadrado da terra nua. Com essas informações, é possível atualizar a cobrança das receitas patrimoniais de foro e ocupação.

Até bem pouco tempo, de acordo com o STF Tema 796 (RE 882.461/MG – Repercussão Geral): “É constitucional a atualização do IPTU por índice oficial de inflação por meio de decreto, desde que não implique aumento real do tributo” (BRASIL, [s.d.]a). No mesmo sentido, o STJ entende no REsp 1.111.189/SP: a atualização monetária não equivale à majoração da base de cálculo, por isso dispensa a edição de lei específica. Pode-se aplicar índice de inflação oficial, porém, como se trata de bens imóveis, seria mais adequado o INCC, mas não existe previsão detalhada para tanto, de forma que pode ser aplicado qualquer índice de inflação oficial (ex.: IPCA-E, INPC, IGPM).

Entretanto, com a Emenda Constitucional n.º 132/2023 (BRASIL, 2023), tornou-se possível atualizar a planta genérica de valores por decreto do Executivo, sem necessidade de projeto de lei a ser debatido e aprovado pela Câmara Municipal, conforme a nova redação do art. 156, III, da CF.

3. O interesse dos municípios

De acordo com a Lei n.º 9.636/1998 (BRASIL, 1998), os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e a iniciativa privada, a critério da Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União, observadas as instruções que regulamentam a matéria, poderão firmar, mediante convênios ou contratos com essa Secretaria, compromisso para executar ações de demarcação, de cadastramento, de avaliação, de venda e de fiscalização de áreas do patrimônio da União, assim como para o planejamento, a execução e a aprovação dos parcelamentos urbanos e rurais.

Já o art. 17 da Lei n.º 13.240/2015 (BRASIL, 2015) e o art. 6º-B do Decreto-Lei 2.398/1987 (BRASIL, 1987), os municípios recebem 20% dos valores arrecadados pela União referentes à cobrança das receitas patrimoniais de ocupação, foro e laudêmio de imóveis localizados em seus territórios. O foro anual apresenta alíquota de 0,6%, a taxa de ocupação com alíquota de 2%, e o laudêmio com alíquota de 5%, calculados sobre o valor do domínio pleno do terreno, excluídas as benfeitorias.

Esse repasse deve ser feito até 1º de fevereiro do ano seguinte, via conta do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), conforme a Lei n.º 13.240/2015 (BRASIL, 2015). É importante destacar que os recursos repassados não possuem vinculação orçamentária, podendo ser utilizados livremente pelas administrações municipais.

4. Necessidade de atualização das demarcações

A demarcação é de competência da SPU, que deve se basear em documentos históricos e plantas de autenticidade irrecusável relativas ao ano de 1831 ou época próxima. A demarcação das áreas da União é realizada pela SPU, contando com plantas e mapas históricos, dados maregráficos, podendo contar com dados, aerofotos, fotos e documentos apresentados por particulares e entes públicos, conforme regulamento da Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União, observando-se os procedimentos aplicáveis.

Para áreas litorâneas, as áreas de terreno de marinha são as que possuem 33 metros medidos horizontalmente da linha do preamar médio de 1831, conforme a Lei n.º 9.760/1946 (BRASIL, 1946): a) os situados no continente, ao longo da costa marítima, rios e lagoas que têm influência das marés; b) em torno de ilhas influenciadas pelas marés. Há ainda os acrescidos de marinha que se formam em seguimento aos terrenos de marinha, sendo formados natural ou artificialmente. Já as áreas conceituadas como Marginal de Rio são os rios navegáveis fora da influência das marés, indo até a distância de 15 metros para a parte de terra, medidos da linha média das enchentes ordinárias.

Muitos terrenos sujeitos à influência das marés perderam sua caracterização original. Áreas anteriormente alagadas foram aterradas e ocupadas por obras públicas, construções e redes de esgoto. Duas perguntas surgem a partir dessas pontuações: (1) Um imóvel pode deixar de ser terreno da União por acréscimos de sedimentos que ampliem as margens de rios e áreas de influência das marés? E (2) A União pode demarcar novas áreas que tiveram a redução de faixa de sedimentos causados por ações da natureza?

A Lei n.º 9.636/98 (BRASIL, 1998) deixa claro que é possível a demarcação de novas áreas de domínio da União, inclusive mediante parceria com estados e municípios. O que não fica claro são os trâmites para a revisão das áreas e a exigência esdrúxula de medição segundo as áreas afetadas em 1831 para fundamentar o pedido dos particulares. A revisão das demarcações pode ser solicitada pelos interessados, nos termos dos arts. 36 e seguintes da Instrução Normativa nº 28/2022 (BRASIL, 2022). A morosidade da União nesses procedimentos se deve, em parte, à escassez de documentos históricos, grande faixa territorial a ser demarcada, insuficiência de insumos e equipe técnica, instabilidade das águas interiores e exteriores, sujeitas a modificações por ação humana e fenômenos ambientais, o que pode ampliar ou reduzir as áreas sob domínio federal.

Não poderíamos deixar de mencionar a Proposta de Emenda à Constituição – PEC n.º 3/2022, que propõe: (a) que estados e municípios possam assumir a propriedade dos terrenos de marinha ocupados pelo serviço público; (b) que foreiros (pessoas que pagam foro, uma espécie de aluguel) e ocupantes particulares possam adquirir a propriedade desses terrenos, mediante pagamento; e (c) que a União manteria a propriedade apenas das áreas afetadas ao serviço público federal (BRASIL, 2022a). Envolta em um enredo de críticas e notícias falsas, a PEC ficou paralisada no Congresso Nacional. De qualquer modo, o argumento que mais circulou na mídia não tinha procedência, pois as “praias” continuam sendo propriedade da União de acordo com o art. 20, IV, da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

Conclusões

Podemos concluir que:

  1. Os terrenos de marinha têm origem historicamente no período colonial com as Ordens Régias e as sesmarias, e mantêm-se até os dias atuais, prestes a completar dois séculos em 2031.
  2. Aos municípios são reservados 20% das arrecadações dessas áreas, decorrentes das receitas patrimoniais de Foro, Laudêmio e Taxas de Ocupação.
  3. O laudêmio incide sobre o valor da terra nua sem construções ou benfeitorias; mesmo assim, a base de cálculo está desatualizada.
  4. A União pode usar a planta genérica de valores utilizada pelos municípios no IPTU para efetuar o lançamento do laudêmio atualizado.
  5. A partir da EC nº 132/2023, os municípios podem atualizar a planta genérica de valores através de Decreto do Poder Executivo.
  6. Grande parte das áreas interiores e exteriores vem passando por processo de demarcação, conforme o Plano Nacional de Caracterização (SPU), diante dos impactos das ações naturais e humanas que descaracterizaram as áreas, impondo distâncias maiores ou menores nas águas exteriores ou interiores; porém, o processo de revisão é lento e complexo.
  7. O particular pode provocar a SPU para fazer a reavaliação de seu imóvel segundo o procedimento previsto na Lei n.º 9.760/1946.
  8. Os municípios têm até o dia 30 de junho de todos os anos para enviar a atualização da base de cálculo do m² da planta genérica de valores para que, em 2026, possam receber atualizada a parcela de 20% do arrecadado pela SPU em razão dos terrenos em seus territórios.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: [Link, se houver acesso online]. Acesso em: [Data do acesso, se aplicável].

BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.398, de 21 de dezembro de 1987. Dispõe sobre bens imóveis da União e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 dez. 1987. Disponível em: [Link, se houver acesso online]. Acesso em: [Data do acesso, se aplicável].

BRASIL. Decreto-Lei n.º 3.438, de 17 de julho de 1941. Altera a Legislação sobre aforamento de terrenos de marinha e acrescidos de marinha. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 19 jul. 1941. Disponível em: [Link, se houver acesso online]. Acesso em: [Data do acesso, se aplicável].

BRASIL. Emenda Constitucional n.º 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o sistema tributário nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 2023. Disponível em: [Link, se houver acesso online]. Acesso em: [Data do acesso, se aplicável].

BRASIL. Lei n.º 9.636, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a administração dos bens imóveis da União e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 maio 1998. Disponível em: [Link, se houver acesso online]. Acesso em: [Data do acesso, se aplicável].

BRASIL. Lei n.º 9.760, de 5 de setembro de 1946. Dispõe sobre os bens imóveis da União. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 9 set. 1946. Disponível em: [Link, se houver acesso online]. Acesso em: [Data do acesso, se aplicável].

BRASIL. Lei n.º 9.821, de 23 de agosto de 1999. Altera dispositivos da Lei n.º 9.636/1998. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 ago. 1999. Disponível em: [Link, se houver acesso online]. Acesso em: [Data do acesso, se aplicável].

BRASIL. Lei n.º 13.240, de 30 de dezembro de 2015. Dispõe sobre a administração, a alienação, a transferência de gestão de imóveis da União. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 2015. Disponível em: [Link, se houver acesso online]. Acesso em: [Data do acesso, se aplicável].

BRASIL. Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União. Instrução Normativa SPU/MGI nº 28, de 18 de agosto de 2022. Dispõe sobre os procedimentos para a demarcação das áreas de domínio da União. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 ago. 2022. Disponível em: [Link, se houver acesso online]. Acesso em: [Data do acesso, se aplicável].

BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição n.º 3, de 2022. Altera o art. 20 da Constituição Federal, para dispor sobre a propriedade dos terrenos de marinha. Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 2022a. Disponível em: [Link, se houver acesso online]. Acesso em: [Data do acesso, se aplicável].

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 882461 RG / MG – MINAS GERAIS – RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator: Ministro Roberto Barroso. DJe 27/05/2020. [s.d.a]. Disponível em: [Link, se houver acesso online]. Acesso em: [Data do acesso, se aplicável].

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Tema Repetitivo n.º 1.142. [s.d.]. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 28 jun. 2025.

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