A energia elétrica parece uma corrente invisível que flui sem interrupção. Mas, por trás dessa aparente simplicidade, existe uma operação complexa. A frequência de 60 Hz[1] é o pulso vital do sistema, um sinal que garante o equilíbrio entre a energia gerada e a consumida. Pequenos desvios nesse pulso são um sinal de estresse que pode levar a um colapso em cascata.
Historicamente, a micro e minigeração distribuída (MMGD) foi vista como uma solução simples para o consumo próprio, reduzindo a conta de luz e o impacto ambiental. No entanto, uma análise mais profunda revela uma nova e complexa dinâmica: o crescimento exponencial da MMGD, que hoje a ONS não controla diretamente, cria uma vulnerabilidade para o sistema. O operador enxerga apenas a carga líquida, a métrica que é o consumo total deduzido da energia da MMGD. Isso dificulta o planejamento e a operação, especialmente em momentos de baixa demanda e alta geração solar e eólica. O sistema se torna refém de uma fonte que ele não comanda.
O artigo defende que a MMGD não pode ser vista apenas como um “desafio”, mas como uma oportunidade estratégica. O potencial de seus inversores modernos para estabilizar a rede é o que nos permite vislumbrar um futuro onde a MMGD atua como um verdadeiro baluarte da frequência, transformando a atual vulnerabilidade em uma nova e poderosa forma de resiliência para o sistema.
O Brasil já ultrapassou a marca de 42 GW[2] de potência instalada em MMGD, com mais de 5 milhões[3] de unidades consumidoras usufruindo dos créditos de energia. Esse crescimento robusto e constante posiciona a MMGD como uma das principais fontes de expansão da matriz elétrica nacional, superando em potência instalada o parque termelétrico do país. No entanto, as usinas despacháveis como as termelétricas e hidrelétricas, que são a base de sustentação do sistema, fornecem a inércia e a resposta rápida essenciais para manter a frequência.
O problema emerge quando a geração de fontes intermitentes, como a MMGD e as grandes usinas eólicas e solares centralizadas, excede o consumo. Para evitar que a frequência suba demais, o ONS precisa reduzir a geração. Essa ação força o curtailment das grandes usinas eólicas e solares, que hoje são as que mais sofrem com esse fenômeno, principalmente devido a restrições na rede de transmissão. Além disso, o ONS desliga usinas termelétricas que são despacháveis e solicita o vertimento turbinável em hidrelétricas, liberando a
água sem gerar energia.
Essa situação cria um sério problema econômico para as grandes geradoras, que estão “vendidas”, ou seja, possuem contratos de longo prazo para entregar energia, mas são proibidas de gerar. Isso as expõe ao mercado de curto prazo, onde precisam comprar energia a preços elevados para cumprir seus contratos, gerando prejuízos.
A MMGD, por sua vez, não sofre curtailment porque o ONS não tem controle sobre ela. Embora a Lei 14.300/2022 proteja os créditos de seus geradores, a causa operacional do problema é a falta de controle e visibilidade do operador sobre a MMGD. Esse cenário de desequilíbrio leva o sistema a uma situação de risco e onera as usinas centralizadas, que precisam ser pagas para não gerar.
O cerne da disputa regulatória reside na proposta de compensar as grandes geradoras por seus prejuízos. Há um movimento para que um rateio em espécie seja criado, repassando o custo do curtailment imposto a elas para toda a base de consumidores. Essa medida, embora pareça uma solução pragmática para um problema operacional, representa um ataque direto e injusto aos pequenos e médios geradores da MMGD.
A tese de que os pequenos deveriam subsidiar os grandes encontra barreiras sólidas, tanto jurídicas quanto de justiça distributiva. As grandes usinas, em sua maioria, operam no Ambiente de Contratação Livre (ACL), onde gerenciam seus próprios riscos comerciais, negociando contratos de longo prazo (estão “vendidas”) e assumindo a exposição ao mercado de curto prazo. Quando o ONS as proíbe de gerar, elas enfrentam perdas financeiras, mas essa é uma consequência do modelo de negócio que escolheram. Elas têm condições de mitigar esses riscos, seja por meio de investimentos em bancos de baterias, que lhes dariam flexibilidade, seja através de cláusulas contratuais mais robustas.
Em contraste, a MMGD não atua nesse mercado. Seu modelo de negócio é baseado no autoconsumo e no Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE), que a Lei nº 14.300/2022 estabeleceu e protege. O pequeno investidor, seja o dono de uma residência, uma pequena empresa ou uma escola, fez seu investimento e planejamento financeiro com base nas regras claras e na segurança jurídica oferecida por essa lei.
Qualquer tentativa de impor um rateio que penalize os créditos da MMGD seria uma violação direta do princípio da segurança jurídica. A lei criou expectativas legítimas de retorno sobre o investimento e garantiu os direitos adquiridos de quem já está conectado. Subverter essa lógica em favor de grandes corporações que gerenciam seus próprios riscos comerciais não apenas deslegitimaria o marco legal, mas abriria uma perigosa porta para a judicialização em massa. A advocacia especializada teria razões concretas para defender a ilegalidade de uma medida que onera os pequenos, que já pagam pela rede e são, ironicamente, a força motriz por trás da transição energética do país.
A experiência internacional mostra que o curtailment não é um problema exclusivo do Brasil. Outros países que adotaram maciçamente a energia renovável intermitente já exploram soluções para lidar com o excedente de geração. O caminho não é único, mas aponta para a integração entre tecnologia, regulação e modelos de negócio, com uma diferença fundamental: a proteção e, em alguns casos, a compensação da MMGD.
Esses exemplos mostram que, embora o curtailment seja uma realidade global, a abordagem regulatória em mercados maduros é a de compensar os geradores por perdas de receita, e não onerar a MMGD com custos de ineficiência de rede, como se propõe no Brasil.
A micro e minigeração distribuída não deve mais ser vista como um mero apêndice do sistema elétrico. Ela é a espinha dorsal de uma nova infraestrutura de estabilidade, descentralizada e resiliente. O paradoxo atual, onde uma tecnologia de transição se torna um ponto de vulnerabilidade para a
operação do sistema, não é um problema da MMGD, mas sim um problema regulatório a ser superado.
É fundamental que o setor reconheça que os pequenos geradores, que já investem e pagam pelo uso da rede, são a força motriz da transição energética. Penalizá-los com rateios para compensar grandes geradoras que não gerenciaram adequadamente seus riscos comerciais não é apenas injusto, mas
representa um sério risco à segurança jurídica do país. Como mostram as lições de outros países, a abordagem mais madura é compensar os geradores por perdas de receita, e não onerar a MMGD com custos de ineficiência de rede. Uma medida como essa atacaria diretamente as expectativas legítimas criadas pela Lei nº 14.300/2022 e abriria um precedente para a judicialização em larga escala, travando o avanço que tanto precisamos.
O caminho para o futuro é claro: em vez de onerar os pequenos, devemos habilitá-los. O próximo passo da regulação é traduzir as lições internacionais para o contexto brasileiro, remunerando os inversores por serviços ancilares que ajudem a manter a frequência e a estabilidade.
Cabe à advocacia especializada liderar esse movimento. Nossa missão é traduzir as necessidades técnicas da operação em um arcabouço legal que fomente a inovação e a segurança, garantindo que a rede seja não só mais inteligente, mas também mais justa. O objetivo final é um sistema elétrico que dança no compasso certo dos 60 Hz, com as luzes acesas por uma força de inteligência distribuída, equidade e visão de futuro.
[1] ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico). Submódulo 10.1 – Requisitos de Desempenho para os Serviços Ancilares. Requisitos de Frequência do SIN.
[2] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENERGIA SOLAR FOTOVOLTAICA (ABSOLAR). Brasil atinge 42 GW de potência instalada em Geração Distribuída Solar Fotovoltaica. 2024. Disponível em: <
htps://www.absolar.org.br/nocias–externas/energia–solar–ange-60-gw-de-capacidade–instalada–nobrasil >. Acesso em: 19 ago. 2025.
[3] AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA (ANEEL). Brasil supera a marca de 5 milhões de consumidores com créditos de micro e minigeração distribuída. 2025. Disponível em: htps://www.gov.br/aneel/ptbr/assuntos/nocias/2025/brasil–supera–a–marca-de-5–milhoes-de-consumidores–com–creditos-demicro-e-minigeracao–distribuida. Acesso em: 19 ago. 2025.
[4] ALEMANHA. Erneuerbare-Energien-Gesetz (EEG): lei alemã sobre fontes de energia renovável de 2014. Diário Oficial da União, Berlim, n. 47, 21 jul. 2014. Disponível em: htps://www.gesetze–iminternet.de/eeg_2014/. Acesso em: 19 ago. 2025.
[5] CALIFORNIA PUBLIC UTILITIES COMMISSION (CPUC). Decisão D.13-10-040: Decisão que Estabelece Metas de Aquisição de Armazenamento de Energia para Empresas de Serviços Públicos de Propriedade do Investidor da Califórnia. 17 de out. de 2013. Disponível em:
htps://docs.cpuc.ca.gov/PublishedDocs/Published/G001/M080/K190/80190802.PDF. Acesso em: 19 ago. 2025.
[6] U.S. DEPARTMENT OF ENERGY (DOE). 2015 U.S. Demand Response: Status and Trends in Energy Markets. 2015. Disponível em: htps://www.energy.gov/sites/prod/files/2015/09/f26/2015–demandresponse–report–9-16-15.pdf. Acesso em: 19 ago. 2025.
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