I. Introdução: A Progressividade da Reforma Tributária e o Setor Elétrico
A Lei Complementar nº 214/2025, que regulamenta a reforma da tributação sobre o consumo, introduziu uma série de inovações com o objetivo de tornar o sistema tributário mais justo e menos regressivo. Um dos mecanismos centrais para alcançar esse fim é o cashback, um sistema de devolução de impostos destinado a famílias de baixa renda. Este artigo se propõe a analisar, ainda que de forma introdutória, e antes mesmo da vigência dessa política pública, os impactos desse mecanismo especificamente na fatura de energia elétrica, detalhando seus critérios, sua implementação e sua relação com a Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE).
A Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE), é um benefício do Governo Federal instituído pela Lei n.º 10.438/2002 e regulamentada pela Lei n.º 12.212/2010 e pelo Decreto n.º 7.583/2011, que oferece desconto na conta de luz para famílias com menor renda, de acordo com o consumo mensal da residência.
De acordo com a regulamentação acima mencionada, podem receber a Tarifa Social os clientes que atendem uma das situações abaixo:
As faixas de desconto da TSEE estão regulamentadas nos §§1º e 2º do art. 179 da Resolução Normativa – REN nº 1.000, de 7 de dezembro de 2021, e replicadas nas Resoluções Homologatórias – REH que estabelecem as tarifas a serem aplicadas pelas distribuidoras.
A Medida Provisória n.º 1.300/2025, ainda que seja um texto legal passível de alteração no decurso do processo legisla vo, tem eficácia imediata, e as alterações promovidas da TSEE, nos termos do art. 10, passam a vigorar 45 dias contados de sua publicação, ou seja, a partir de 5 de julho de 2025.
Com isso, a regulamentação e as Resoluções Homologatórias teriam disposições diferentes do novo texto legal, o que ensejou as alterações normativas realizadas pela Aneel.
II. Fundamentos do Cashback: Elegibilidade e Percentuais de Devolução
O cashback é um sistema de devolução de valores pagos a título de tributos nas operações de consumo. Ele foi criado para mitigar o impacto de uma tributação baseada no consumo, que afeta desproporcionalmente a parcela mais pobre da população. Por exemplo, uma família de baixa renda que gasta uma grande parte de seu orçamento em bens essenciais, como alimentos e energia, pode receber uma parte significativa dos tributos pagos de volta, aliviando assim sua carga financeira.
A elegibilidade para o benefício é restrita a famílias que atendem a critérios específicos. Para ter direito ao cashback, o responsável familiar deve estar inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) (art. 113, caput, da Lei Complementar n. 214/2025) e possuir renda familiar mensal por pessoa de até meio salário mínimo (art. 113, caput, I). Por exemplo, uma família composta por quatro pessoas, onde a renda total é de dois salários mínimos, seria elegível para o cashback, pois a renda per capita é de meio salário mínimo.
A Lei Complementar nº 214/2025 estabelece percentuais de devolução diferenciados para serviços essenciais, como a energia elétrica. Na fatura de luz, a lei prevê a devolução de 100% da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que é o tributo de competência federal, e de 20% do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que é o tributo de competência estadual e municipal (art. 118, I, da Lei Complementar n. 214/2025). Por exemplo, se uma família paga R$ 100,00 de CBS e R$ 50,00 de IBS em sua conta de luz, ela receberá R$ 100,00 de volta referente ao CBS e R$ 10,00 referente ao IBS, totalizando R$ 110,00 de cashback.
A legislação ainda permite que estados e municípios, por meio de lei própria, possam elevar o percentual de devolução do IBS, caso haja espaço fiscal para tal (art. 118, § 1.º, da Lei Complementar n.º 214/2025). Por exemplo, um estado pode decidir aumentar a devolução do IBS para 30%, caso suas finanças permitam, proporcionando um alívio ainda maior para as famílias elegíveis.
É importante destacar que o cashback não se aplica a produtos e serviços sujeitos ao Imposto Seletivo (art. 117, § 2.º, I, da Lei Complementar n.º 214/2025). Produtos como cigarros e bebidas alcoólicas, que são tributados de forma seletiva devido aos seus impactos na saúde pública, não são elegíveis para o cashback.
III. Implementação e Operacionalização do Mecanismo na Conta de Luz
A implementação do sistema de cashback para a energia elétrica está prevista para ocorrer de forma gradual, em linha com a transição dos novos tributos. O mecanismo de devolução da CBS entrará em vigor a partir de janeiro de 2027, enquanto o do IBS será aplicado a partir de 2029 (art. 123, inciso I e II, da Lei Complementar n.º 214/2025).
A devolução dos valores será realizada diretamente na fatura de energia elétrica, simplificando o processo para o consumidor (art. 116, § 1.º, da Lei Complementar n.º 214/2025) A legislação prevê que o cálculo dos valores a serem devolvidos levará em consideração o consumo total de produtos pelas famílias, com base em dados de documentos fiscais vinculados ao CPF de todos os membros da unidade familiar, e a renda declarada no CadÚnico. (art. 117, § 2.º, II e III da Lei Complementar n.º 214/2025). A Receita Federal e o Comitê Gestor do IBS ainda deverão editar as regras para definir o método exato de cálculo e de devolução dos tributos (art. 122 da Lei Complementar n.º 214/2025).
IV. A Relação entre o Cashback e a Tarifa Social de Energia Elétrica
O mecanismo de cashback foi criado para coexistir e complementar outros programas sociais já existentes. Durante a tramitação da reforma tributária, houve uma preocupação em assegurar que o novo sistema oferecesse um benefício equivalente ao da Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE), programa que já concede descontos na conta de luz para famílias de baixa renda (Lei n.º 12.212/2010 e Medida Provisória n.º 1.300/2025). A TSEE é um benefício auditado e regulamentado, destinado a famílias do CadÚnico ou que recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC), concedendo descontos progressivos ou integrais na tarifa de energia elétrica.
Recentemente, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), através do Despacho n.º 1.731/2025, publicado no D.O. de 18.06.2025, seção 1, p. 91, v. 163, n. 114 e o retificado no D.O.U. de 24.06.2025, regulamentou as regras para que os beneficiários da TSEE recebam 100% de desconto nos primeiros 80 kWh consumidos mensalmente, cobrando apenas os custos não associados à energia, como ICMS e contribuição de iluminação pública. Por exemplo, uma família que consome até 80 kWh por mês terá um desconto total na energia consumida, pagando apenas os tributos e taxas adicionais.
A preferência da Agência em regulamentar por Despacho, e não por meio de Resolução Normativa, se deveu ao fato de a Medida Provisória n.º 1.300/2025 ainda estar em tramitação no Congresso Nacional, conforme explicitado no voto da Diretora Relatora: “35. Por fim, considerando a possibilidade de mudança do texto da MP nº 1.300/2025 e o prazo exíguo para vigência das novas regras, demandando máxima brevidade de definições regulatórias para realização das adaptações em sistemas comerciais e de faturamento das distribuidoras, entendo dispensável realização de Consulta Pública prévia à aplicação das disposições da MP nº 1.300/2025 para a TSEE. Isso é possível pelo fato de haver pouca discricionariedade na regulamentação relacionada à TSEE, bem como da possibilidade de realização da CP após a conversão da MP em Lei, oportunidade em que se poderá aprofundar acerca das alterações normativas necessárias para efetiva aplicação do novo texto legal.” (trecho do voto da Diretora Relatora Ludimila Lima da Silva que fundamenta do Despacho n.º 1.731/2025, exarado no Processo Administrativo Aneel n.º 48500.017955/2025-88).
Assim, o cashback atua como um mecanismo adicional para reduzir a regressividade tributária, garantindo que a devolução de impostos sobre o consumo de energia elétrica complemente os descontos já previstos em programas como a TSEE. Por exemplo, uma família que já recebe descontos na tarifa de energia elétrica através da TSEE pode se beneficiar ainda mais com o cashback, recebendo de volta uma parte dos tributos pagos, o que pode resultar em uma economia significativa no orçamento familiar.
V. Considerações Finais: O Desafio da Efetividade
O cashback é uma ferramenta fundamental da reforma tributária para tornar o sistema fiscal mais justo e proteger os consumidores mais vulneráveis do potencial aumento da carga tributária. No entanto, sua eficácia dependerá de uma implementação transparente e da garantia de que o ressarcimento dos valores seja ágil e sem burocracia. A expectativa é que o novo sistema, ao devolver os impostos pagos diretamente na conta de luz, cumpra seu papel de reduzir as desigualdades sociais e garantir o acesso a serviços essenciais para a população de baixa renda.
Para que o cashback atinja seu objetivo, é crucial que haja uma comunicação clara e eficiente com os beneficiários. As famílias de baixa renda devem ser informadas sobre seus direitos e sobre como acessar o benefício. Campanhas de conscientização e educação financeira podem desempenhar um papel importante nesse processo, ajudando os consumidores a entenderem como o cashback funciona e como ele pode impactar positivamente suas finanças.
Além disso, a implementação do cashback deve ser acompanhada de mecanismos de monitoramento e avaliação. É necessário garantir que os valores devolvidos estejam realmente chegando às famílias elegíveis e que o processo seja livre de fraudes e irregularidades. A transparência nas operações e a prestação de contas são fundamentais para manter a confiança dos beneficiários e da sociedade como um todo.
Um exemplo prático da importância da transparência e da eficiência na implementação do cashback pode ser visto em programas similares de devolução de impostos em outros países. Em alguns lugares, a falta de clareza nas regras e a burocracia excessiva resultaram em baixa adesão ao programa e em dificuldades para os beneficiários acessarem os valores devidos. Portanto, é essencial que o Brasil aprenda com essas experiências e adote as melhores práticas para garantir o sucesso do cashback.
Outro ponto importante é a integração do cashback com outros programas sociais existentes, como a Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE). A sinergia entre esses programas pode potencializar os benefícios para as famílias de baixa renda, proporcionando um alívio ainda maior na carga tributária e garantindo o acesso a serviços essenciais. Por exemplo, uma família que já recebe descontos na tarifa de energia elétrica através da TSEE pode se beneficiar ainda mais com o cashback, recebendo de volta uma parte dos tributos pagos, o que pode resultar em uma economia significativa no orçamento familiar.
Em resumo, o sucesso do cashback como ferramenta de justiça fiscal dependerá de uma implementação bem planejada, transparente e eficiente. A devolução dos impostos pagos diretamente na conta de luz tem o potencial de reduzir as desigualdades sociais e garantir o acesso a serviços essenciais para a população de baixa renda, desde que sejam adotadas as medidas necessárias para garantir a eficácia e a integridade do processo.
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