Estamos vivendo uma mudança silenciosa e profunda na forma como o trabalho é organizado. O que antes chamávamos de capitalismo industrial, com fábricas, patrões e empregados formais, dá lugar a uma nova estrutura: o tecnofeudalismo. Nesse modelo, o poder econômico já não está mais na posse de fábricas ou terras, mas sim nas mãos daqueles que controlam plataformas digitais – os “senhores da nuvem”.
Empresas como Uber, iFood, Amazon e outras plataformas não funcionam como empregadores no sentido tradicional. Elas não contratam, mas conectam. Não produzem diretamente, mas controlam o acesso. E, em vez de pagar salários, cobram taxas de quem deseja trabalhar em seus domínios. Trata-se de uma nova forma de dominação: algorítmica, invisível e disfarçada de autonomia.
O trabalhador da era digital não é mais um assalariado no sentido clássico. Ele é um “usuário-produtor”, como apontam estudiosos do tema. Usa seu carro, sua bicicleta, seu tempo e seu corpo para gerar valor. Mas quem extrai esse valor são as plataformas, que definem quanto ele ganha, como trabalha e até mesmo quando é “desconectado”. É uma servidão moderna travestida de liberdade empreendedora.
É nesse ponto que enfrentamos um desafio urgente: nosso Direito do Trabalho ainda vive na lógica da fábrica. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criada para proteger o trabalhador assalariado, parte do pressuposto de que existe um empregador claro, que detém os meios de produção e impõe regras ao empregado. Mas no mundo das plataformas, esse modelo entra em colapso. Quem é o patrão? Quem determina a jornada? Onde estão os direitos?
As plataformas alegam que os trabalhadores são “parceiros independentes”. Na prática, porém, há uma dependência profunda: sem a plataforma, o trabalhador não tem acesso ao mercado, nem consegue ser visto. Seu esforço, sua reputação e até mesmo sua pontuação são precificados por algoritmos opacos. Trata-se de um tipo de poder que não se expressa por ordens diretas, mas por códigos e métricas, e que retira do trabalhador até o direito de saber por que ganha menos hoje do que ontem.
O problema é que essa nova forma de exploração ainda escapa à maior parte da nossa legislação. Não há vínculo empregatício formal, logo não há garantias básicas como férias, 13º, descanso semanal ou previdência. Essa “liberdade” é, muitas vezes, uma armadilha que empurra milhões para a informalidade digital, sem proteção nem horizonte de estabilidade.
Diante disso, o Brasil precisa repensar com urgência o seu modelo de proteção trabalhista. Não se trata de aplicar a CLT tal como está, mas de reconhecer que o mundo do trabalho mudou — e que essa mudança exige novas categorias jurídicas. Talvez seja hora de falarmos em “subordinação algorítmica” como uma nova forma de dependência, que também merece proteção. Ou de criarmos uma regulação específica para o trabalho em plataformas, como já se discute em países europeus.
Não podemos permitir que o discurso do empreendedorismo digital continue mascarando a precarização das relações de trabalho. A era digital não precisa ser uma era de exploração disfarçada. Para isso, é preciso coragem política, atualização conceitual e, acima de tudo, o compromisso de proteger quem mais precisa: o trabalhador que hoje está sozinho diante de um aplicativo. Se o tecnofeudalismo já é uma realidade, cabe ao Direito do Trabalho — e à sociedade — decidir se continuará preso ao passado ou se será capaz de reinventar suas bases para enfrentar um novo tipo de senhorio. Um que não anda de armadura, mas que domina pelo algoritmo.
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