Proposta de Emenda Constitucional conhecida como PEC da Blindagem tem sido objeto de intenso debate no cenário político e jurídico brasileiro. A iniciativa, defendida por parte do Congresso Nacional, busca ampliar as prerrogativas dos parlamentares frente ao Poder Judiciário, restringindo o alcance de decisões que possam interferir no exercício do mandato.
Embora seja apresentada como uma forma de reforçar a independência do Legislativo, a proposta desperta preocupações legítimas: até que ponto ela preserva a autonomia dos Poderes e em que medida compromete a harmonia entre eles?
À luz da Constituição de 1988 e da teoria dos freios e contrapesos, inspirada em Montesquieu, este artigo de opinião sustenta que a PEC da Blindagem representa um risco democrático, pois enfraquece o papel fiscalizador do Judiciário, favorece a impunidade parlamentar e rompe com o pacto constitucional firmado no processo de redemocratização.
A Constituição Federal de 1988, marco da redemocratização brasileira, consagra no artigo 2º o princípio da separação dos poderes, estabelecendo o Legislativo, o Executivo e o Judiciário como independentes e harmônicos entre si. Como ensina José Afonso da Silva (2018, p. 112), “a separação dos Poderes não significa ausência de controles recíprocos, mas um mecanismo de equilíbrio indispensável ao Estado Democrático de Direito”.
Inspirada na teoria de Montesquieu, essa estrutura visa evitar a concentração de poder e proteger as liberdades individuais por meio de um sistema de freios e contrapesos (checks and balances), no qual cada poder exerce sua função primordial – legislar, administrar e julgar – mas também desempenha, de forma limitada, competências complementares. A separação dos poderes é considerada cláusula pétrea (art. 60, § 4º), inalterável por emendas constitucionais, reforçando sua centralidade para o equilíbrio do Estado e a garantia do bem comum. (ou assegurando a proteção das liberdades individuais e o funcionamento equilibrado do Estado.)
Assim, qualquer iniciativa que desequilibre esse arranjo – como a PEC da Blindagem – viola não apenas a harmonia institucional, mas o núcleo intangível da Constituição de 1988.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2021, conhecida como PEC da Blindagem ou PEC das Prerrogativas, aprovada pela Câmara dos Deputados no dia 16 de setembro de 2025, visa alterar os artigos 53 e 102 da CF/88 para ampliar as imunidades parlamentares e o foro privilegiado.
O artigo 53 reformulado estabelece que deputados e senadores, a partir da diplomação, só podem ser julgados ou alvos de medidas cautelares pelo STF (§ 1º). Porém, prisões (exceto em flagrante de crime inafiançável) e processos penais dependem de autorização prévia da Câmara ou Senado, por maioria absoluta em votação secreta, em até 90 dias (§ 2º e § 3º). Em prisões por flagrante, a Casa decide em 24 horas se mantém ou suspende a custódia (§ 3º). Se a licença for negada, a prescrição do crime é suspensa durante o mandato (§ 4º). O § 5º é revogado.
O artigo 102, inciso I, alínea b, estende o foro privilegiado no STF aos presidentes de partidos com assento no Congresso para crimes comuns, equiparando-os a parlamentares e outras autoridades.
Na prática, a PEC cria um escudo poderoso para parlamentares e líderes partidários. A justificativa, segundo o relator, deputado Claudio Cajado, é proteger o mandato contra “perseguições políticas” e resgatar as prerrogativas originais da Constituição de 1988.
Entretanto, essa PEC traz consigo um questionamento importante: “Essa imunidade não é um jeito de blindar quem comete crimes, como corrupção ou até atos contra a democracia?
A votação secreta, prevista na PEC, também gera sérios problemas de transparência, contrariando o princípio republicano e o direito fundamental de acesso à informação (art. 5º, XXXIII, CF/88).
É indiscutível que a imunidade parlamentar possui relevância democrática, pois protege o mandato contra perseguições políticas e garante liberdade de atuação. No entanto, a PEC da Blindagem ultrapassa o limite da prerrogativa funcional e adentra o campo do privilégio pessoal.
A PEC 3/2021, reacende o debate sobre o equilíbrio entre prerrogativas parlamentares, essenciais para a proteção do mandato e da democracia, e privilégios que podem minar a igualdade perante a lei.
A PEC é criticada por criar privilégios inaceitáveis que ferem o princípio da isonomia, O artigo 5º, caput, da CF/88 assegura a igualdade de todos perante a lei, sem distinções. Quando uma categoria de agentes políticos passa a dispor de um regime jurídico que inviabiliza sua responsabilização, cria-se uma quebra de isonomia, incompatível com a Constituição. Nesse sentido, Canotilho (2003, p. 245) lembra que “a igualdade jurídica constitui não apenas direito fundamental, mas condição de legitimidade do próprio Estado Democrático de Direito”.
A exigência de votação secreta por maioria absoluta para autorizar processos ou prisões (art. 53, §§ 2º e 3º) pode dificultar a responsabilização por crimes graves, como corrupção, lavagem de dinheiro ou atos antidemocráticos, enfraquece a publicidade dos atos estatais, princípio basilar da administração pública previsto no artigo 37 da CF/88. Isso abre espaço para decisões corporativistas, afastadas do controle popular. Sugerindo uma proteção corporativista.
A teoria dos freios e contrapesos, concebida por Montesquieu e consolidada no constitucionalismo contemporâneo, pretende impedir que um Poder se sobreponha aos demais. Ao condicionar decisões judiciais a uma autorização do próprio Legislativo, a PEC cria um paradoxo institucional: o Parlamento passa a ser, simultaneamente, réu e julgador de si.
O Supremo Tribunal Federal já ressaltou a importância do equilíbrio entre os Poderes. No julgamento do Inquérito 3.983/DF (caso Natan Donadon), o STF reafirmou que “as imunidades parlamentares não podem ser utilizadas como salvo-conduto para a prática de crimes comuns”. Situação semelhante ocorreu no HC 193.726/DF (caso Daniel Silveira), em que a Corte destacou que a imunidade não é absoluta e não pode legitimar ataques às instituições democráticas.
Portanto, ao enfraquecer a atuação do Judiciário, a PEC não apenas viola o artigo 2º da CF/88, mas compromete o exercício do controle de constitucionalidade, função central do artigo 102.
Os defensores da PEC sustentam que a medida reforçaria a independência do Legislativo diante do Judiciário. No entanto, como ensina Luigi Ferrajoli (2011, p. 89), “a independência institucional só se legitima quando acompanhada de responsabilidade e limites jurídicos”.
A independência dos Poderes, prevista no art. 2º da CF/88, não pode ser interpretada como licença para agir sem controle. O que a PEC promove é a irresponsabilidade parlamentar, ao transformar imunidade em impunidade e retirar do Judiciário sua função de contrapeso.
A aprovação da PEC da Blindagem acarretaria graves riscos à democracia brasileira, pois institucionalizaria a impunidade parlamentar, afastando os representantes da aplicação plena da lei e ferindo o princípio constitucional da igualdade (art. 5º, CF/88). Além disso, ampliaria a deslegitimação política e a perda de confiança social nas instituições, ao criar privilégios incompatíveis com a lógica republicana. Como adverte Montesquieu (2000, p. 181), “tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo de principais, exercesse esses três poderes”.; nesse sentido, ao enfraquecer o Judiciário e os mecanismos de freios e contrapesos (art. 2º, CF/88), a proposta ameaça o próprio Estado de Direito.
Experiências internacionais, como as reformas judiciais na Hungria e na Polônia, demonstram que medidas semelhantes resultaram em retrocessos democráticos, perda de autonomia judicial e críticas de organismos internacionais, como a União Europeia e a OSCE.
A chamada PEC da Blindagem, sob a justificativa de reforçar a independência parlamentar, revela-se, na verdade, como um grave atentado ao equilíbrio constitucional. Ao ampliar desproporcionalmente as imunidades parlamentares e submeter decisões judiciais ao crivo do próprio Congresso Nacional, a proposta rompe com a lógica dos freios e contrapesos e com a harmonia entre os Poderes prevista no artigo 2º da Constituição de 1988.
Trata-se de um movimento que ameaça cláusulas pétreas do texto constitucional, em especial a separação dos Poderes (art. 60, §4º, III), e compromete o princípio republicano e da isonomia, consagrado no art. 5º, caput. Como resultado, institucionaliza-se a impunidade, fragiliza-se a confiança social nas instituições e cria-se um risco concreto de supremacia legislativa incompatível com a democracia constitucional.
Nesse cenário, é imprescindível destacar o papel da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como instituição que, historicamente, esteve na vanguarda da defesa da cidadania e da ordem democrática. O artigo 133 da Constituição afirma que “o advogado é indispensável à administração da justiça”, e o artigo 44 do Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94) reforça que a entidade tem como finalidade a defesa da Constituição, da ordem jurídica do Estado democrático de direito, dos direitos humanos e da justiça social.
Assim, cabe à OAB não apenas se posicionar de forma contrária à PEC da Blindagem, mas também mobilizar a sociedade civil, o Congresso Nacional e o Judiciário na defesa intransigente da Constituição de 1988. Aprovar a PEC significaria retroceder a um modelo de privilégios corporativos e enfraquecer conquistas democráticas arduamente conquistadas.
Portanto, rejeitar a PEC da Blindagem não é apenas uma escolha política ou jurídica, mas um imperativo ético e democrático. A advocacia, por meio da OAB, deve reafirmar seu compromisso histórico com a democracia, a igualdade e a responsabilidade republicana, garantindo que o Brasil siga fiel à promessa de 1988: nenhum Poder absoluto, nenhum privilégio acima da lei e todo poder sempre submetido à Constituição.
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