RESUMO
Este artigo aborda de forma clara e objetiva a exorbitante taxação de erro do Poder Judiciário do Estado de Pernambuco quando se trata da atuação das torcidas organizadas. A criminalização coletiva dessas entidades revela não apenas uma distorção jurídica, mas também uma incompreensão histórica e sociocultural sobre o papel que tais agremiações desempenham no tecido urbano e na cultura esportiva brasileira. As torcidas organizadas, como conhecemos hoje, emergiram no Brasil em meio à Ditadura Militar, entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, como uma forma de resistência simbólica ao regime autoritário. Com estrutura burocrática e inspiração em modelos associativos, elas se consolidaram como espaços de pertencimento, identidade e mobilização popular.
No estado de Pernambuco, esse fenômeno ganhou contornos próprios. As maiores torcidas organizadas da região não apenas sobreviveram às tentativas de repressão institucional, como também se reinventaram ao longo das décadas. Os chamados “bailes de corredores”, realizados entre os anos 1980 e 2000 em casas noturnas da Região Metropolitana do Recife, ilustram como essas entidades extrapolam o ambiente esportivo e se inserem na dinâmica cultural da juventude periférica. Ainda hoje, muitos torcedores organizados atuam politicamente, reivindicando melhorias na experiência do torcedor comum, lutando por ingressos acessíveis, segurança nos estádios e respeito às suas formas de expressão. Contudo, a explosão das torcidas organizadas em Pernambuco a partir dos anos 1990 também trouxe desafios. A intensificação de conflitos entre grupos rivais, especialmente em dias de clássicos, levou o Estado a adotar medidas repressivas que, em muitos casos, confundem o indivíduo com o coletivo. A violência, embora real e preocupante, passou a ser tratada como justificativa para a extinção de CNPJs, proibição de símbolos e criminalização de manifestações culturais legítimas. Como aponta
Capez (1996, p. 49), o enfrentamento da violência no futebol exige mais do que repressão: requer inteligência, proporcionalidade e respeito aos direitos fundamentais. O objetivo deste trabalho é propor uma reorientação dos mecanismos jurídicos e administrativos utilizados pelo Estado de Pernambuco, de modo a garantir que o torcedor organizado possa retornar aos estádios com segurança, dignidade e liberdade de expressão. Isso inclui o direito de vestir as cores de sua entidade; camisa, calça, agasalho e boné sem ser alvo de opressão policial, bem como o direito de cantar suas músicas e ocupar os espaços públicos de forma legítima. A criminalização indiscriminada das torcidas organizadas não apenas viola princípios constitucionais, como também compromete a eficácia das políticas de segurança. É preciso punir o CPF, não o CNPJ, responsabilizar quem comete o ilícito, sem estigmatizar o associativismo torcedor como um todo.
Direitos e Deveres
A atuação estatal frente às torcidas organizadas deve ser guiada por três pilares jurídicos fundamentais: legalidade estrita, proporcionalidade e individualização da conduta. O Estatuto do Torcedor (Lei nº 10.671/2003) inaugura uma nova era na relação entre o torcedor e o Estado, reconhecendo o torcedor como sujeito de direitos e impondo obrigações às entidades organizadas, como o cadastro junto aos órgãos competentes e a colaboração com medidas de segurança. Já a Lei Geral do Esporte (Lei nº 14.597/2023) aprofunda esse regime ao tipificar condutas violentas e prever sanções individualizadas, como bans temporários e medidas cautelares específicas.
Essas normas não autorizam a dissolução sumária de coletivos por atos isolados de seus membros. Ao contrário, exigem que qualquer sanção seja precedida de processo legal, prova robusta e motivação densa. A responsabilização coletiva, sem individualização, fere o princípio da presunção de inocência e transforma o associativismo em alvo, não em parceiro da segurança pública.
A Inconstitucionalidade das Medidas Coletivas
A dissolução de torcidas organizadas por decisão judicial, sem comprovação de desvio institucional sistemático, representa uma afronta direta à liberdade de associação prevista no artigo 5º, inciso XVII, da Constituição Federal. A jurisprudência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao suspender portarias que proibiam genericamente o acesso de torcidas aos estádios, reforça a vedação a atos normativos judiciais sem base legal específica e sem individualização das condutas.
Além disso, tais medidas violam o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, pois não se mostram adequadas, necessárias nem proporcionais ao fim pretendido. A extinção de uma entidade por atos isolados de seus membros equivale a punir uma escola por um aluno indisciplinado, uma lógica que compromete a legitimidade da ação estatal.
Entre Extinções e Reversões
Em Pernambuco, a decisão judicial de 2020 que determinou a extinção de torcidas organizadas e o cancelamento de seus CNPJs marcou um ponto de inflexão na política de segurança pública. Embora motivada por episódios graves de violência, a medida gerou efeitos colaterais indesejados, como a informalização das torcidas e a perda de canais de interlocução com o Estado.
Já em 2025, decisões judiciais reverteram proibições amplas, optando por medidas tecnológicas como biometria e reconhecimento facial. Essa mudança sinaliza uma preferência por instrumentos de controle individual, mais compatíveis com o ordenamento jurídico e com as evidências empíricas sobre prevenção da violência.
Efeitos Colaterais da Criminalização Coletiva
A repressão institucional ao associativismo torcedor empurra a organização para a clandestinidade, dificultando o monitoramento e a cooperação. Confrontos passam a ocorrer fora dos perímetros formais, marcados por aplicativos e redes fechadas. O Estado perde interlocução, dados e capacidade de prevenção — um paradoxo que mina a própria segurança pública.
Além disso, a estigmatização das torcidas organizadas alimenta narrativas de perseguição e reforça a polarização entre torcedores e instituições. O resultado é um ambiente de desconfiança mútua, que dificulta a construção de soluções compartilhadas e sustentáveis.
Protocolo de Jogos de Risco: Prevenção Situacional
Propõe-se a criação de um Protocolo Unificado de Jogos de Risco, com base em análise preditiva: histórico de incidentes, horário, logística de deslocamento e eventos concorrentes. Essa classificação deve orientar o planejamento tático, com rotas segregadas, policiamento escalonado e janelas de dispersão.
A prevenção situacional, baseada em evidências, permite antecipar riscos e alocar recursos de forma eficiente. Ao invés de medidas genéricas, o Estado deve adotar estratégias específicas para cada contexto, respeitando os direitos dos torcedores e garantindo a segurança de todos.
Tecnologias com Governança
A implementação de bilhetagem nominal, biometria e reconhecimento facial deve ser direcionada exclusivamente à execução de bans judiciais e administrativos. A governança dessas tecnologias deve ser compartilhada entre MPPE, TJPE, Defensoria, clubes e sociedade civil, com auditoria independente e proteção de dados.
A transparência e o controle social são essenciais para evitar abusos e garantir que as tecnologias sejam utilizadas de forma legítima e proporcional. Sem governança, qualquer inovação pode se transformar em instrumento de repressão.
Reabertura de Canais com Torcidas
O Estado deve reconhecer as torcidas organizadas como parceiras na construção da segurança. Para isso, exige-se contrapartidas: cadastro atualizado, código de conduta, plano de deslocamento e formação de stewards. Em troca, as torcidas devem ter voz ativa na prevenção de conflitos e na mediação de tensões.
Essa reabertura regulada permite reconstruir a confiança entre instituições e coletivos, criando um ambiente mais colaborativo e menos conflituoso. A exclusão não resolve — apenas agrava.
TACs com Indicadores de Desempenho
Os Termos de Ajustamento de Conduta devem ser instrumentos de gestão por resultados: metas de redução de incidentes, adesão à bilhetagem nominal, percentual de membros cadastrados e cumprimento de rotas. A transparência e a revisão periódica são essenciais para legitimar as medidas.
Ao invés de retórica, é preciso desempenho mensurável. Os TACs devem sair do papel e se transformar em ferramentas de transformação institucional.
O Papel do Ministério Público
O MPPE deve priorizar a responsabilização penal de organizadores de confrontos, com uso de provas digitais e cooperação interinstitucional. Ações civis públicas contra torcidas devem ser excepcionais, condicionadas à comprovação de desvio institucional e nexo causal com os ilícitos.
A atuação do Ministério Público deve ser técnica, focada e proporcional. O foco deve ser o CPF, não o CNPJ.
O Judiciário e a Proporcionalidade
O TJPE deve adotar medidas cautelares personalizadas, como proibição de comparecimento e monitoração eletrônica. A dissolução de entidades deve ser tratada como última ratio, com motivação densa e controle jurisdicional rigoroso. A criação de varas especializadas pode contribuir para a padronização de decisões e execução de bans.
A justiça não pode ser genérica. Precisa ser precisa.
Clubes e Federação: Corresponsabilidade
Clubes e federação devem assumir responsabilidade pela segurança nos estádios, com planos próprios, stewarding, segmentação de setores e campanhas educativas. A responsabilização civil deve ser baseada em culpa comprovada, não em presunções coletivas.
A segurança é uma construção coletiva. Não pode ser terceirizada apenas à polícia.
Cultura Torcedora e Direito à Cidade
Torcidas organizadas são expressões legítimas da cultura popular. Cânticos, bandeiras e baterias não são ameaças à ordem, mas manifestações de identidade coletiva. O desafio é regular sem reprimir, garantindo que o espetáculo esportivo seja também um espaço de cidadania. Reprimir cultura é reprimir o povo.
Transparência e Dados Abertos
A publicação de painéis semestrais com dados sobre incidentes, prisões, cumprimento de bans e percepção de segurança permite escrutínio público e correção de rota. Sem dados, qualquer política é apenas retórica.
Governança exige informação.
• BRASIL. Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003. Dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 16 maio 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.671.htm. Acesso em: 21 out. 2025.
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