A PORTA DE ENTRADA PARA CRIMES: ADULTIZAÇÃO DIGITAL, LEGISLAÇÃO E A PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA
No ambiente digital, onde curtidas e visualizações se transformam em capital, a infância corre o risco de se tornar um objeto de monetização. A adultização, conceito definido pela Fundação Abrinq como a atribuição de comportamentos e responsabilidades precoces ao público infantil, vem ganhando novas formas nas redes sociais. Ao vestir crianças com padrões estéticos e linguagens próprias do universo adulto, muitas vezes com o objetivo de gerar engajamento como uma moeda de troca, pais e responsáveis expõem seus filhos a um ambiente sombrio e predatório: a internet. A superexposição digital de crianças e adolescentes pode, entre outros graves problemas, incentivar a sexualização precoce, como também abrir espaço a crimes de natureza sexual, como a pedofilia, a exploração sexual, a pornografia infantil e o aliciamento online de menores. Predadores cibernéticos encontram nesse cenário um vasto acervo de imagens e vídeos que, embora aparentemente inofensivos, podem ser reutilizados com fins criminosos. Surge então o questionamento: até que ponto o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) admitem a exposição de menores nas redes sociais, considerando que essa prática pode servir de porta de entrada para crimes mais severos? O presente artigo visa discutir a dimensão social e científica da adultização digital, mas também as consequências jurídicas e o risco à infância e à proteção integral da criança e do adolescente.
ADULTIZAÇÃO DIGITAL E O IMPACTO NEGATIVO À INFÂNCIA
A adultização é entendida como a exposição precoce de crianças e adolescentes a comportamentos, padrões estéticos e responsabilidades próprias da vida adulta. Tem sido potencializada pelas redes sociais, com consequências significativas para o desenvolvimento físico, emocional e psicológico na fase mais vulnerável da vida. A exposição infantil a conteúdos de conotação sexualizada pode gerar distorções nas suas imagens, além da aceleração da maturidade sexual e comprometimento da saúde mental. Esse processo transforma crianças e adolescentes em alvos de consumo simbólico, estimulando comportamentos e aparências que não correspondem à sua faixa etária. A repercussão recente do vídeo crítico produzido pelo influenciador e youtuber Felca, que denunciou perfis destinados à exploração sexual infantil disfarçada de entretenimento, trouxe o tema ao debate público nacional. O caso do influenciador digital Hytalo Santos, preso em 13 de agosto de 2025, investigado por expor menores em conteúdos de cunho sensual, é um retrato concreto de como a fronteira entre entretenimento e abuso pode ser perigosamente diluída no ambiente online. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso X, garante a inviolabilidade da imagem, da intimidade e da honra de toda pessoa, o que inclui crianças e adolescentes. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por sua vez, em seu artigo 17, assegura que: “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. Embora o termo adultização não esteja previsto expressamente no Código Penal, sua prática está intrinsecamente ligada à violação de direitos fundamentais e à exposição de menores a exploração sexual. Portanto, ignorar esse fenômeno é normalizar uma brecha para a prática da violência sexual contra a infância. É urgente que sejam revisadas medidas de fiscalização de segurança que reconheçam a gravidade do problema e atuem de forma coordenada para coibir conteúdos e condutas que antecipam, distorcem e exploram o desenvolvimento infantil.
SUPEREXPOSIÇÃO DIGITAL (SHARENTING) COMO UMA BRECHA PARA CRIMES SEXUAIS
O termo Sharenting refere-se à exposição excessiva de crianças nas redes sociais por pais ou responsáveis. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) alerta que essa prática pode direcionar conteúdo para as mãos de predadores quando compartilhado publicamente sem a devida segurança e privacidade. Podendo, inclusive, ser distorcido e adulterado por exploradores em crimes de violência e abusos nas redes internacionais de pedofilia ou pornografia. Segundo a pesquisa realizada pelo TIC Kids Online Brasil (2021), 80% das crianças e adolescentes de 9 a 17 anos tiveram acesso a redes sociais, e essa presença do público infanto-juvenil amplia a visibilidade e utilização indevida de imagens e vídeos, mesmo quando publicados por familiares com caráter afetivo. Com o fenômeno do shareting, ocorre a exposição excessiva do público infantil e, por sua vez, a distorção de sua imagem inocente para uma satisfação pessoal de abusadores, com isso, as mídias sociais tornaram-se o principal acervo de atuação dos predadores virtuais. A SaferNet realizou um estudo que constatou o seguinte: mais de 1,25 milhão de usuários do Telegram, uma rede social pertinente, participam de algum grupo que compartilha conteúdos relacionados às imagens de pornografia infantil ou até mesmo abusos sexuais. Desse modo, indica a referida pesquisa como conteúdos supostamente inocentes podem ser desviados para fins criminosos, com resultados alarmantes.
SEXUALIZAÇÃO INFANTIL: UM ATAQUE À INFÂNCIA E À INOCÊNCIA
A sexualização infantil, forma explícita de adultização, expõe crianças e adolescentes a danos que ultrapassam a infância, resultando em impactos profundos e permanentes. O vídeo em que o Youtuber Felca fez a denúncia de outro influenciador, de nome Hytalo Santos, cujo conteúdo viralizou pela conotação sexual envolvendo menores, revelou como é normal assistir a crianças e adolescentes dançando de forma sexualizada na internet, além de relativizarem o modo de serem tratadas como adultos, normalizando a adultização. Comentários com sexualização são disseminados, evidenciando a gravidade do problema, e demonstram a pouca ou nenhuma fiscalização de quem deveria ser o responsável por supervisionar esses menores. A exposição e vivência inadequadas a tais conteúdos podem levar essas crianças e adolescentes a
ingressarem na vida adulta com uma percepção distorcida da sexualidade e da moralidade, criando um ambiente propício para o desequilíbrio psíquico e a desregulação moral. Outro caso polêmico, ocorrido em meados de 2020, deu grande visibilidade ao tema da superexposição e gerou grandes debates nas redes: o canal “Bel para Meninas”. A mãe da menor Youtuber foi acusada de expor a filha a situações humilhantes e vexatórias, algumas com conotação sexual, em troca de visualizações e monetização. Os vídeos, que deveriam ser apenas entretenimento, acabaram por revelar um cenário de abandono digital parental, em que os próprios responsáveis entregam a imagem da criança ao mercado virtual sem considerar os danos à sua dignidade e ao seu desenvolvimento emocional. Além disso, o caso evidenciou um grave ponto cego do ordenamento jurídico: a ausência de regulamentação clara sobre a exploração sexual e a exposição abusiva de crianças no âmbito das redes sociais.
E foi com esse intuito de prevenir e combater a exploração sexual no ambiente digital, que a ONG Terre des Hommes desenvolveu a inteligência artificial ‘Sweetie’. Esta ferramenta consistia em uma garota virtual inserida em salas de bate-papo, com um perfil em rede social cuidadosamente elaborado para atrair predadores sexuais. Em apenas dez semanas, a iniciativa revelou um número assombroso: mais de vinte mil pedófilos foram identificados. Esse dado alarmante escancara a periculosidade do ambiente digital para crianças expostas nas redes, além de evidenciar como tal exposição acelera o processo de amadurecimento psíquico, culminando na adultização precoce. Diante de um cenário tão alarmante de vulnerabilidade infantil no meio digital, a legislação brasileira estabelece rigorosas punições para crimes dessa natureza. O Código Penal, em seu artigo 217-A, determina que ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos resulta em pena de reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. Complementarmente, o artigo 218-B tipifica a conduta de submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone, com pena de reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por sua vez, em seu artigo 240, criminaliza a produção, reprodução, direção, fotografia, filmagem ou registro, por qualquer meio, de cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente, com pena de reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. O artigo 241 do mesmo diploma legal define que vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente importa em pena de reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. Mas mesmo com uma proteção legal tão avançada no país, a sexualização infantil ocorrida no ambiente digital por meio da adultização acende um alerta no contexto social atual da sociedade. Sem a devida regulamentação das redes sociais, promovendo a fiscalização e censura de conteúdos envolvendo menores e a proteção e fiscalização efetiva do Estado, as crianças estão expostas à um ambiente erótico e perigoso que se disfarça sob o codinome de internet. Fica demonstrada, desta forma, a necessidade de uma efetiva ação de regulamentação pelo Estado das próprias plataformas digitais, como também a reflexão sobre o a responsabilidade da família na proteção integral do menor.
A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL E PENAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
A proteção integral da criança e do adolescente é um pilar do ordenamento jurídico brasileiro, com raízes na Constituição Federal de 1988. Seu artigo 227 estabelece, de forma inequívoca, o dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar, com absoluta prioridade, direitos fundamentais como a vida, a saúde, a educação, a dignidade, o respeito e a liberdade, além de protegê-los de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. No âmbito infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) detalha e operacionaliza essa proteção, inclusive por meio de tipificações penais próprias que criminalizam a produção, armazenamento, divulgação e posse de pornografia infantil, bem como a indução à exploração sexual. Contudo, a efetividade dessas normas depende de interpretação e aplicação rigorosa pelos operadores do direito, para que não se favoreça a impunidade. A omissão ou atuação tardia das autoridades pode configurar grave violação ao próprio princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), expondo a vítima à continuidade da violência e a danos psicológicos irreparáveis. Dessa forma, a garantia constitucional e penal à proteção da criança e do adolescente é um dever jurídico imperativo, ético e social, cuja observância demanda a integração da atuação judicial e a responsabilidade social coletiva. Nesse contexto de crescente preocupação com a segurança digital infantil, tramita o Projeto de Lei (PL) 2628/22, que visa justamente aprimorar a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, reconhecendo a exposição a conteúdos prejudiciais (como pornografia, estímulo ao suicídio, bullying e jogos de azar). O texto, já aprovado na Câmara dos Deputados, estabelece uma série de procedimentos e exigências aos fornecedores de aplicativos e plataformas. Entre suas principais diretrizes, destacam-se a implementação de mecanismos mais seguros de verificação de faixa etária, a retirada imediata de conteúdo nocivo e criminoso, o reforço da supervisão parental e a restrição de publicidade abusiva e jogos de azar direcionados a menores. O descumprimento dessas medidas implicará em sanções que variam desde advertências até multas de R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais), além da possibilidade de suspensão e banimento das plataformas no país. Este PL representa um avanço significativo para fechar a lacuna entre a proteção legal e a realidade digital, buscando assegurar a efetividade dos direitos previstos na Constituição e no ECA.
O PREÇO DA INOCÊNCIA: UM CHAMADO URGENTE POR REGULAÇÃO E JUSTIÇA
A adultização digital e a superexposição infantil não são fenômenos isolados da vida privada. Constituem, antes, uma questão de ordem pública, jurídica e moral que deve ser discutida. Ao permitir que a inocência seja convertida em mercadoria e publicidade, a sociedade compactua com as infrações penais que vai do ambiente doméstico às mais obscuras camadas da criminalidade cibernética. Os casos estudados ao longo do presente artigo mostram que a exploração sexual infantil não é um problema distante, é real, presente e, muitas vezes, alimentado pela própria sociedade, que se omite na intervenção para proteger as crianças e adolescentes. O ordenamento jurídico brasileiro já reconhece a infância como fase de proteção integral, mas a distância entre a norma e a realidade ainda é abissal. É dever do Estado fortalecer a prevenção e ampliar o sistema de fiscalização e repressão contra os crimes cibernéticos, além de fomentar a justa punibilidade dos agentes. A regulamentação efetiva das redes sociais é um caminho viável para inibir os efeitos da adultização digital. Desse modo, essa lacuna jurídica deve servir como impulso no combate ao crime.
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