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Quando o Direito fala para todos: A acessibilidade cognitiva como caminho para o futuro

Postado em 26 de novembro de 2025 Por Camila Maria Correia Wanderley Estudante de Direito na UNIFG e estagiária no TRE-PE.

1.    O que é Acessibilidade Cognitiva no Direito

A acessibilidade cognitiva consiste na eliminação de barreiras que dificultam a compreensão da informação jurídica. Trata-se de um enfoque que não altera a substância do Direito, mas aprimora a forma como ele é apresentado.

Seus principais pilares incluem:

Linguagem clara e direta, substituindo jargões e termos técnicos excessivos por explicações compreensíveis;
Organização textual funcional, com parágrafos objetivos, títulos adequados e fluxo lógico;
Sistemas e interfaces intuitivas, facilitando a navegação por plataformas judiciais e administrativas;
Materiais visuais e explicativos, como infográficos, fluxogramas, quadros e roteiros;
Inclusão comunicacional, garantindo que pessoas com diferentes perfis cognitivos consigam compreender e participar de processos jurídicos.

A acessibilidade cognitiva não pretende “simplificar o Direito”, mas sim “simplificar o acesso ao Direito”, preservando rigor técnico e garantindo efetividade comunicacional.

2.    A Linguagem como Porta de Entrada para a Cidadania

A compreensão da lei é requisito essencial para o exercício da cidadania. Quando a linguagem utilizada pelo Estado se torna inacessível, o cidadão perde não apenas informação, mas perde autonomia.

Hoje, muitos indivíduos não entendem:

  1. como funciona um processo;
  2. o que significa uma decisão judicial;
  3. quais são os prazos;
  4. como agir diante de uma violação de direitos;
  5. onde procurar ajuda ou orientação.

A barreira linguística afasta pessoas do sistema de justiça e as coloca em situação de vulnerabilidade.

Documentos processuais confusos, notificações pouco explicativas e sentenças excessivamente técnicas acabam gerando insegurança, ansiedade e, não raramente, descumprimento de decisões.

Quando a linguagem jurídica se torna mais clara, os ganhos são múltiplos:

  1. diminuição de retrabalho;
  2. redução de recursos;
  3. aumento da confiança institucional;
  4. melhoria da eficiência;
  5. maior participação social.

A clareza não compromete a técnica. Ao contrário: aperfeiçoa a função social do Direito, tornando-o compreensível para quem dele mais precisa.

3. Legal Design: Uma Nova Forma de Pensar o Direito

O Legal Design é uma das ferramentas mais inovadoras e necessárias para promover acessibilidade cognitiva.

Ele combina Direito, design, psicologia e usabilidade para criar documentos que as pessoas realmente entendem. Isso inclui:

  1. contratos visuais e amigáveis;
  2. fluxos processuais em formato gráfico;
  3. explicações passo a passo;
  4. sistemas organizados com foco no usuário;
  5. uso de hierarquias textuais claras;
  6. escolhas de fontes, ícones e espaçamentos que favoreçam a leitura.

Tribunais brasileiros vêm adotando iniciativas relevantes: TJBA, TJSC e TJDFT já têm projetos de linguagem simples e manuais internos de comunicação clara. A tendência é que outros tribunais sigam o mesmo caminho.

4. Tecnologias Assistivas e Inclusão Digital

Ferramentas tecnológicas potencializam a inclusão cognitiva e ampliam o alcance da informação jurídica:

  1. leitores de tela;
  2. legendagem automática;
  3. vídeos explicativos sobre procedimentos;
  4. interfaces adaptáveis;
  5. mecanismos de acessibilidade em sites e sistemas;
  6. tutoriais interativos sobre prazos e etapas processuais.

Essas tecnologias funcionam como pontes entre o Judiciário e o cidadão, removendo barreiras que antes pareciam intransponíveis.

5. A Perspectiva das Mulheres Neurodivergentes

Mulheres com TDAH e TEA enfrentam obstáculos específicos no sistema de justiça. Para muitas delas, navegar por documentos densos ou compreender comunicações complexas não é apenas difícil — é exaustivo.

O atendimento jurídico, quando não sensível a essas diferenças, pode gerar:

  1. sobrecarga cognitiva;
  2. aumento da ansiedade;
  3. dificuldade de compreensão de medidas protetivas;
  4. insegurança quanto a prazos;
  5. receio de participar de audiências ou procedimentos.

A acessibilidade cognitiva, nesse contexto, não é apenas técnica. É cuidado, humanidade. É o reconhecimento de desigualdades estruturais que podem ser mitigadas pela comunicação adequada.

6. Acessibilidade Cognitiva como Imperativo Jurídico

O compromisso com uma linguagem clara e acessível está alinhado a normas nacionais e internacionais.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com status constitucional no Brasil, estabelece que o Estado deve garantir pleno acesso à informação.

Isso inclui:

  1. textos jurídicos;
  2. decisões;
  3. atos oficiais;
  4. serviços públicos;
  5. plataformas digitais.

Portanto, promover acessibilidade cognitiva não é apenas uma boa prática é uma obrigação jurídica e democrática.

Conclusão – Um Direito que Fala e Transforma

A acessibilidade cognitiva nos convida a repensar o próprio propósito do sistema de justiça: não basta garantir direitos se as pessoas não conseguem compreendê-los. Um Judiciário verdadeiramente moderno é aquele que combina inovação tecnológica com sensibilidade humana, comunicando-se de forma clara, acolhedora e alinhada às diferentes formas de perceber o mundo.

O futuro do Direito será definido menos pela velocidade dos sistemas e mais pela qualidade da comunicação, pela capacidade institucional de reduzir barreiras, aproximar cidadãos e permitir que cada indivíduo participe plenamente da vida jurídica. Quando decisões são compreensíveis, quando documentos são claros e quando a linguagem acolhe e não exclui o acesso à justiça deixa de ser um ideal abstrato e se torna uma prática cotidiana.

Porque, no fim, um Direito que fala a língua das pessoas não apenas informa: ele emancipa, inclui e transforma realidades. E é justamente nesse ponto que a justiça deixa de ser distante para, enfim, alcançar quem mais precisa.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD). Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Brasília, DF: Presidência da República, 2009.

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MADEIRO, Natália. Linguagem Simples no Direito: Fundamentos, Métodos e Aplicações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.

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REDISH, Janice. Letting Go of the Words: Writing Web Content that Works. 2. ed. Burlington: Morgan Kaufmann, 2012.

SANTAELLA, Lúcia. Cultura das Interfaces: Comunicação, Cognição e Arte. São Paulo: Paulus, 2019.

SILVA, Ricardo; OLIVEIRA, Helena. Acessibilidade Cognitiva e Cidadania: Fundamentos e Aplicações no Setor Público. Brasília: ENAP, 2021.

TJDFT – Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Manual de Linguagem Simples do TJDFT. Brasília, 2022.
Disponível     em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/aurora/tjdft-simples/guia-rapido-de-linguagem-simples.pdf

TJSC – Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Manual de Comunicação Clara e Acessível. Florianópolis, 2023.
Disponível     em: https://www.tjsc.jus.br/documents/66294/0/pequeno+manual+%283%29.pdf/b9d3ef07-d0ad-d5e1-7191-190ec92641bd?t=1710870269333

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