Imagine um traficante que trabalha sozinho, vende uma quantidade pequena de droga e não tem ligações com crime organizado. Parece justo que ele receba o mesmo tratamento de quem comanda uma operação internacional de narcotráfico? O Supremo Tribunal Federal disse que não. E essa decisão muda bastante coisa na forma como os condenados por tráfico privilegiado cumprem pena.
Em setembro de 2025, o STF aprovou a Súmula Vinculante nº 63, que finalmente colocou um ponto final em uma discussão que deveria ter sido resolvida há muito tempo: o tráfico privilegiado, previsto no artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, não é crime hediondo. Isso parece técnico, mas as consequências práticas são enormes para quem está preso. A decisão foi tomada em sessão virtual, no julgamento da Proposta de Súmula Vinculante (PSV) 125.
O que mudou de verdade?
Quando um crime é considerado hediondo, a lei fica brutalmente rigorosa. A pessoa precisa cumprir 40% da pena para conseguir passar para um regime menos rigoroso de prisão, em vez de 16%. E para sair da cadeia em liberdade condicional? Tem que cumprir dois terços da pena, em vez de um terço. São diferenças que significam anos a mais na prisão.
O tráfico privilegiado existe justamente porque o legislador reconheceu que nem todo traficante é igual. Quando alguém realiza o tráfico de droga sem usar violência, sem envolvimento com crime organizado e sem porte de arma de fogo, o crime recebe um tratamento menor. Faz sentido. Mas durante anos, havia um caos jurídico: alguns juízes aplicavam as regras dos crimes hediondos, outros não. Presos recorriam constantemente, e ninguém sabia ao certo qual era a lei que realmente valia.
A lógica por trás da decisão
O raciocínio do STF é bastante simples, mas poderoso. A Lei de Crimes Hediondos criou essa categoria especial para os “piores dos piores” crimes. Incluiu homicídio qualificado, estupro, crimes contra o patrimônio com morte. Quando a lei fala em “tráfico de entorpecentes”, ela está se referindo ao tráfico normal, aquele descrito no caput do artigo 33: o crime sem qualificadores.
O tráfico privilegiado é diferente. Ele é uma atenuante legal; é uma forma de reconhecer que algumas condutas relacionadas ao tráfico são menos graves. Se o legislador criou essa figura jurídica exatamente para isso, isto é, para distinguir o pequeno traficante do grande traficante, não faz nenhum sentido encaixá-lo entre os crimes mais graves do ordenamento.
Além disso, há coerência constitucional nessa leitura. A Constituição protege os direitos dos presos, e um dos pilares disso é a progressão de regime. O próprio Código Penal, em seu artigo 83, estabelece que qualquer condenado tem o direito de passar para regimes menos rigorosos após cumprir um terço da pena. Por que o traficante privilegiado seria diferente? Porque a lei geral diz que sim, mas a lei especial sobre crimes hediondos jamais mencionou o tráfico privilegiado.
A reação ao caos jurídico anterior
O STF já tinha decidido isso em casos pontuais. Em 2016, no habeas corpus 118.533, o Tribunal Pleno reconheceu que não fazia sentido aplicar as regras dos hediondos ao tráfico privilegiado. Mas a decisão não era vinculante para todos os juízes. Resultado? Milhares de pessoas continuaram presas sob regras mais rigorosas, enquanto outras em situação similar conseguiam liberdade condicional. Alguns magistrados ignoravam a jurisprudência, e o sistema ficava fragmentado.
Foi para resolver justamente essa insegurança jurídica que a Defensoria Pública Federal propôs a Súmula Vinculante. Não era para criar algo novo, mas para consolidar o que o STF já vinha dizendo desde 2016.
Como funciona agora
A partir de agora, nenhum juiz pode dizer que o traficante privilegiado é condenado por crime hediondo. Ponto. Todos os parâmetros de execução penal mudam. Em vez de cumprir 40% para progredir de regime, cumpre 16%. Em vez de dois terços para livramento condicional, cumpre um terço.
Isso não significa que o tráfico privilegiado deixou de ser crime grave. Ninguém está sendo libertado por decreto. O condenado ainda vai cumprir sua pena, ainda será punido, mas de forma proporcional ao que realmente fez. É exatamente isso que a Constituição pede: proporcionalidade.
O alcance da decisão para o sistema
Essa súmula também resolve problemas que iam além da progressão de regime. A possibilidade de indulto, por exemplo, ou seja, quando o presidente perdoa uma sentença, também estava sendo questionada. Se o tráfico privilegiado é crime hediondo, não poderia ser incluído em decretos de indulto. A decisão do STF, reafirmada em 2025, deixa claro que sim, podem.
Para o sistema prisional brasileiro, que já sofre com superlotação e violações de direitos básicos, essa decisão contribui para que presos que fizeram crimes menos graves não ocupem espaço indefinidamente por falta de oportunidade de sair. Para o Direito Penal, reafirma que a diferença entre o traficante ocasional e o traficante profissional deve ser levada a sério, não só na sentença inicial, mas durante toda a execução da pena.
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