Thales Etelvan Cabral Oliveira

VALEU, BOI!*: O efeito backlash e a supremacia do Judiciário

Postado em 03 de setembro de 2025 Por Thales Etelvan Cabral Oliveira advogado e jornalista, graduado em Direito pela UFPE com foco em Direito Administrativo, Regulatório, Econômico, Mediação e Arbitragem. Diretor da Editora Digital da OAB-PE, membro da Comissão Nacional de Direito da Infraestrutura (OAB Federal), Comissão de Direito do Petróleo e Gás, Comissão de Direito Aduaneiro e Comissão de Direito da Energia da OAB-Pernambuco.

Introdução

O constitucionalismo brasileiro é marcado por intensos embates entre as decisões judiciais contramajoritárias e as respostas políticas ou sociais que surgem em sua esteira. Esse fenômeno, conhecido como efeito backlash, reflete o choque entre a função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal e a força das maiorias políticas e culturais, representadas no Congresso Nacional. O termo backlash é utilizado para descrever reações intensas contra decisões judiciais que desafiam ou modificam práticas sociais amplamente aceitas.

A metáfora do grito característico das arenas de vaquejada – “VALEU, BOI!*” – é aqui utilizada para denotar uma expressão de resistência contra as decisões judiciais que impõem limites constitucionais. Em algumas situações, o Congresso Nacional reage rapidamente, aprovando normas em tempo recorde para contestar ou flexibilizar essas decisões. Em outras, o STF mantém sua posição, realizando uma verdadeira “puxada limpa*” e consolidando seus posicionamentos, apesar das pressões sociais e políticas.

Este artigo explora três episódios emblemáticos que ilustram essa dinâmica no Brasil: a emenda da vaquejada (EC 96/2017), a união homoafetiva (ADI 4277/ADPF 132) e a Lei da Anistia (ADPF 153). Cada um desses casos exemplifica, à sua maneira, como o “VALEU, BOI!” ecoa na arena constitucional.

O Caso da Vaquejada: O “Chama na Bota*” do Congresso

Em 2016, o STF, ao julgar a ADI 4983, declarou inconstitucional a lei cearense que regulamentava a vaquejada, com base na proteção ao meio ambiente e à dignidade dos animais. A decisão, que proibiu a prática de vaquejada em todo o Brasil, foi recebida como um ato contramajoritário por amplos setores sociais e econômicos, especialmente no Nordeste, onde a vaquejada tem profunda significância cultural e econômica.

A resposta do Congresso Nacional foi imediata: em 2017, promulgou a Emenda Constitucional 96, que acrescentou o §7º ao artigo 225 da Constituição, reconhecendo como manifestações culturais práticas desportivas que utilizam animais, desde que regulamentadas por lei. O novo texto constitucional estabelece que essas práticas não são consideradas cruéis, desde que atendam a determinadas regulamentações.

A saber:

Art. 225. (omissis)

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.

Para seus defensores, a emenda foi uma forma de garantir o espaço das tradições culturais diante do controle judicial. Já para os críticos, a mudança representou um retrocesso em relação à proteção dos direitos fundamentais dos animais. A rapidez e firmeza da reação legislativa evidenciam o impacto do backlash, quando o Congresso, em uma reação direta à decisão do STF, buscou reverter os efeitos da interpretação judicial.

União Homoafetiva: Entre a “Puxada Limpa” do STF e o Backlash Conservador

Em 2011, o STF julgou a ADI 4277 e a ADPF 132, reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e garantindo-lhes os mesmos direitos das uniões heteroafetivas. A decisão foi um exemplo claro de atuação contramajoritária, fundamentada nos princípios da dignidade humana, da igualdade e da vedação à discriminação.

No entanto, essa decisão foi seguida por um backlash significativo, com setores conservadores da sociedade e do Congresso Nacional apresentando projetos de lei e propostas de emenda constitucional para restringir ou anular os efeitos da decisão. Esses movimentos buscavam limitar os direitos das uniões homoafetivas e da população LGBTQIA+.

Apesar da resistência, o STF manteve sua postura firme, consolidando jurisprudência e abrindo caminho para o reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Nesse caso, a manobra política do Parlamento não foi suficiente para sobrepor-se à supremacia judicial em defesa de direitos fundamentais, o que evidencia o poder de resistência do STF diante de pressões externas.

Observe-se alguns excertos da ementa do julgado

2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA

3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA.

4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”.

6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES.  Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva

A Lei da Anistia

Outro episódio clássico de backlash ocorreu em torno da Lei da Anistia de 1979 e sua reafirmação pelo STF na ADPF 153 (2010). A Lei da Anistia, que surgiu como um pacto político da transição democrática, foi alvo de intensas críticas devido à sua abrangência, que incluiu agentes estatais acusados de graves violações de direitos humanos durante o regime militar.

Quando o STF foi provocado a reinterpretar a lei, decidiu manter sua redação original, reforçando a leitura histórica do legislador e a necessidade de respeitar o pacto político da transição. A Corte optou por não confrontar diretamente o pacto político, mantendo a Lei da Anistia e evitando aprofundar-se na discussão sobre as responsabilidades de agentes estatais envolvidos em crimes contra a humanidade.

Confira-se o julgado:

EMENTA: LEI N. 6.683/79, A CHAMADA “LEI DE ANISTIA”. ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. CRIMES CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA ANISTIA, AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SUCESSÃO DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997, QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E “AUTO-ANISTIA”. INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE.

Esse caso reflete uma forma diferente de backlash, na qual a própria Corte Suprema se posiciona como guardiã de um pacto político, confirmando o status quo e evitando um confronto direto com as maiorias políticas da época.

Supremacia Judicial e Diálogo Institucional

A Constituição de 1988 conferiu ao STF o papel de guardião da Constituição. Contudo, essa centralidade não é absoluta, e o sistema jurídico brasileiro admite a possibilidade de um diálogo institucional entre os diferentes poderes. O efeito backlash é uma expressão desse diálogo, muitas vezes tenso e ruidoso, em que o STF se vê desafiado por reações políticas e sociais.

Nos casos analisados, observamos três dinâmicas distintas:

  1. A vaquejada: O Congresso reagiu diretamente à decisão do STF, legislando para reverter os efeitos da decisão.
  2. A união homoafetiva: O Congresso tentou reagir, mas o STF manteve sua posição, consolidando a defesa de direitos fundamentais.
  3. A Lei da Anistia: A própria Corte reafirmou a decisão política original, evitando alterar o pacto político da transição democrática.

Em comum, esses casos demonstram que, embora o diálogo institucional seja fundamental para a convivência democrática, o Judiciário continua a ocupar seu lugar como guardião da Constituição, sendo responsável por evitar retrocessos em direitos fundamentais e princípios estruturantes do Estado de Direito.

Considerações Finais

O constitucionalismo democrático brasileiro é construído por uma série de embates, diálogos e reações. O grito “Valeu, boi!” simboliza as respostas políticas e sociais às decisões judiciais que desagradam maiorias. Em alguns casos, o Congresso pode “chamar na bota” e legislar rapidamente contra as decisões do STF. Em outros, o Supremo realiza uma “puxada limpa”, consolidando avanços em direitos. E, em certos casos, a própria Corte pode reforçar pactos políticos históricos, como no caso da Lei da Anistia.

A breve comparação revela três padrões: (1) Reversão legislativa eficaz quando há custo político baixo para alterar o texto constitucional e forte apoio regional (vaquejada); (2) Supremacia judicial robusta quando a Corte ancora sua decisão em cláusulas de igualdade e dignidade e cria efeitos práticos duradouros (união homoafetiva); (3) Autocontenção estratégica diante de pactos de transição e eventuais conflitos com o direito internacional (anistia). Esses desfechos dependem da natureza do direito afetado, da capacidade de coordenação do Congresso e do custo constitucional de mudança.

O desafio constante é garantir que cada poder, ao reagir a decisões judiciais, respeite os limites da Constituição, preservando os direitos fundamentais e a integridade do Estado de Direito.

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***Pequeno glossário das expressões usadas no universo da vaquejada:

  • VALEU, BOI

Sentido básico: exclamação de validação da prova; indica que a derrubada do boi foi válida e pontuou.

Origem/Contexto: expressão típica de pista, dita por narradores/juízes após conferir regras (linhas, tempo, posição da queda).

Exemplo: “Derrubou dentro da faixa — valeu, boi!

Uso figurado: “deu certo”, “foi aprovado”. Em texto acadêmico, pode-se traduzir por “resultado validado”.

  • CHAMA NA BOTA

Sentido básico: incentivo para acelerar/ir com tudo, literalmente remetendo à bota do vaqueiro (pisar firme).

Origem/Contexto: bordão de vaqueiros e locutores; também aparece na cultura do forró/sertanejo para ‘esquentar’ o ritmo.

Exemplo: “Tá longe? Chama na bota, vaqueiro!”

Uso figurado: “intensificar o esforço” / “apertar o ritmo”. Em linguagem analítica: “elevar o grau de mobilização/pressão”.

  • PUXADA LIMPA

Sentido básico: derrubada correta, sem infração — a manobra de “puxar pelo rabo” cumpre as regras (queda no local devido, controle do animal, sem faltas).

Origem/Contexto: critério técnico de julgamento na vaquejada (influencia pontuação).

Exemplo: “Foi puxada limpa: queda na área, sem perder o controle.”

Uso figurado: execução impecável, “sem vícios” ou “sem nulidades”. Em texto jurídico/analítico: “ato praticado conforme os requisitos formais e materiais”.

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