O Brasil permanece entre os países com maiores índices de violência contra a mulher no mundo, e os números mais recentes do relatório “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2025, comprovam a gravidade do cenário, escancarando a persistência da violência de gênero como fenômeno estrutural e cotidiano. Em 2024, uma em cada três brasileiras afirmou ter sido vítima de algum tipo de violência, incluindo agressões físicas, ameaças, perseguição, violência sexual ou psicológica. No caso das mulheres negras, a proporção é ainda mais alarmante: 41% relataram ter sofrido violência no último ano. A maioria desses casos ocorreu dentro de casa e teve como autores os próprios companheiros, ex-parceiros ou pessoas do círculo familiar. Apenas 11% dessas mulheres buscaram a polícia ou o sistema de justiça, o que revela o tamanho da subnotificação e da invisibilidade. Esses dados não apenas reiteram o caráter estrutural da violência de gênero, mas também demonstram a necessidade de um sistema de justiça preparado para responder de forma efetiva, humanizada e célere às situações de risco enfrentadas pelas mulheres.
É nesse contexto que se insere a importância da Lei Maria da Penha, que completa 19 anos em 2025 e representa um dos maiores marcos legislativos do país em matéria de direitos humanos. Sancionada em 7 de agosto de 2006, a Lei nº 11.340/2006 foi uma resposta direta às recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – caso méritos 12.051 – que reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pela violência sofrida por Maria da Penha Maia Fernandes, destacando a negligência e omissão do sistema de justiça. A legislação que leva seu nome rompeu com a lógica privatista e de menor potencial ofensivo que dominava o tratamento jurídico da violência doméstica e passou a reconhecê-la como grave violação de direitos humanos e forma específica de discriminação de gênero.
A Lei nº 11.340/2006, mais do que uma norma de natureza penal, se consolidou, ao longo de quase duas décadas, como base de um verdadeiro microssistema jurídico de proteção às mulheres em situação de violência. Mas o que se entende por microssistema jurídico? Trata-se de um conjunto de normas, mecanismos e procedimentos que – ainda que espalhados por diversas áreas do Direito – são coordenados entre si com o objetivo comum de garantir proteção específica a um grupo social vulnerável: as mulheres. No caso da violência de gênero, esse microssistema é composto não apenas pela Lei Maria da Penha, mas também por outras legislações penais, cíveis e processuais, além de políticas públicas e protocolos institucionais que se articulam com foco na prevenção da violência, na proteção da vítima e na responsabilização do agressor. Esse sistema multifacetado garante respostas integradas e efetivas, não se limitando à punição, mas incorporando ações educativas, assistenciais e reparadoras. Dentro desse microssistema, a Lei Maria da Penha cumpre papel central de coordenação normativa, estabelecendo diretrizes para a atuação dos diversos órgãos do sistema de justiça, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Polícia Civil, o Judiciário e os serviços de atendimento psicossocial.
Outro conceito-chave que a Lei Maria da Penha incorporou ao sistema de justiça é o da perspectiva de gênero. Trata-se de um modo de interpretar e aplicar o Direito levando em consideração as desigualdades históricas, sociais e culturais entre homens e mulheres. Como assevera Latif Antonia Cassab, na obra Dicionário Feminino da Infâmia, a expressão “violência de gênero” designa um fenômeno complexo, que ultrapassa a ideia de um ato isolado e individualizado para revelar uma lógica estrutural de dominação. Ao citar Joan Scott, Cassab reforça que “gênero é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos” e que, portanto, o gênero funciona como “um primeiro modo de dar significado às relações de poder”.
Essa perspectiva se articula diretamente com o entendimento adotado por organismos internacionais. De acordo com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), ratificada pelo Brasil, a violência doméstica constitui uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres, que conduziram à dominação e discriminação contra as mulheres pelos homens e impedem o pleno avanço das mulheres na sociedade.
Perspectiva de gênero, no campo jurídico, significa considerar as desigualdades historicamente impostas entre homens e mulheres como fator relevante na interpretação e aplicação do Direito. Conforme conceituação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, instituído pela Resolução nº 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), implica reconhecer que a neutralidade aparente das leis muitas vezes ignora as assimetrias sociais e esconde uma lógica patriarcal e excludente. Ao incorporar essa perspectiva, o sistema de justiça é chamado a compreender a violência contra a mulher não como episódio isolado, mas como resultado de uma cultura patriarcal que ainda naturaliza a subordinação feminina. A partir dessa compreensão, os avanços no campo penal nos últimos 19 anos foram significativos.
Com base nesses fundamentos, a Lei Maria da Penha inaugurou uma nova lógica no sistema de justiça criminal: o enfrentamento à violência doméstica não como mera aplicação de penas, mas como intervenção estatal voltada à proteção da vida, da dignidade e da integridade psíquica das mulheres. Destacam-se, entre os principais avanços penais: i) o afastamento da aplicação da Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95) aos crimes praticados no contexto de violência doméstica, impedindo, por exemplo, que lesões corporais fossem tratadas como infrações de menor potencial ofensivo; ii) a criação das medidas protetivas de urgência, que podem ser deferidas independentemente de boletim de ocorrência ou inquérito policial, permitindo ao Judiciário determinar o afastamento do agressor do lar e a proibição de contato com a vítima, entre outras medidas.
A atuação judicial passou a ser orientada não apenas por critérios legais, mas pela urgência da proteção da vida e da integridade da mulher em risco. Com o passar dos anos, novas legislações passaram a integrar o microssistema. A Lei nº 13.104/2015 tipificou o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, reconhecendo o assassinato de mulheres motivado por gênero como crime hediondo, sendo alterada pela Lei nº 14.994/2024, que o transformou em crime autônomo. Em 2021, duas importantes conquistas foram incorporadas ao Código Penal: a criminalização da violência psicológica (Lei nº 14.188/2021), por meio do artigo 147-B, e a criação do crime de perseguição, conhecido como stalking (Lei nº 14.132/2021), previsto no artigo 147-A. Outro avanço relevante foi a Lei nº 14.541/2023, que visa garantir o funcionamento ininterrupto das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs). Em 2025, a Lei nº 15.125/2025 alterou a Lei Maria da Penha para possibilitar o uso de tornozeleira eletrônica em agressores que estão sob medida protetiva de urgência, padronizando o uso da tecnologia em nível nacional. Já a Lei nº 15.123/2025 aumentou a punição para quem cometer violência psicológica contra mulheres utilizando inteligência artificial ou qualquer outro recurso tecnológico, como no caso de deepfakes.
Essas mudanças revelam um avanço qualitativo do sistema penal, que se mostra mais sensível à realidade das mulheres e mais eficiente na responsabilização dos agressores, sem perder de vista a necessidade de garantias e respeito aos direitos fundamentais. Ainda assim, os desafios permanecem imensos. O país ainda carece de uma rede de proteção sólida e universalizada. Muitos municípios não dispõem de delegacias especializadas, varas exclusivas, centros de atendimento psicossocial ou abrigos emergenciais. As mulheres negras e periféricas seguem sendo as maiores vítimas — e também aquelas com menor acesso a medidas protetivas e decisões judiciais céleres. Além disso, o machismo institucional e a revitimização seguem como entraves à efetividade do sistema: mulheres ainda são desacreditadas, desestimuladas a denunciar, julgadas moralmente e expostas nos processos judiciais.
Também há tentativas de retrocessos legislativos, como propostas que relativizam o conceito de violência doméstica ou dificultam a concessão de medidas protetivas. Há, portanto, a necessidade de se reafirmar que a Lei Maria da Penha não é punitivista, mas protetiva. Seu eixo é a defesa da vida e da liberdade das mulheres, o que inclui — mas não se limita — ao uso do sistema penal.
Celebrar quase duas décadas de vigência dessa legislação é reconhecer que houve uma ruptura histórica no tratamento jurídico da violência de gênero. É reconhecer que o ordenamento jurídico brasileiro estruturou um sistema que articula prevenção, punição e assistência, colocando a mulher como sujeito de direitos e não apenas como objeto de tutela. É reconhecer que o Direito Penal, desde que aplicado com responsabilidade e sensibilidade, pode ser instrumento de proteção e transformação social. Não se trata de defender o encarceramento em massa, mas de afirmar que a impunidade também mata.
A Lei Maria da Penha não é punitivista: ela é uma resposta proporcional, protetiva e reparadora frente à omissão histórica do Estado. Foi criada como medida excepcional, emergencial e transitória diante da constatação da negligência estatal em garantir os direitos das mulheres. Era para ser uma ponte. Mas, 19 anos depois, seguimos atravessando o mesmo abismo da violência. Não se trata de comemorar a permanência da lei, mas de lamentar que ela ainda seja tão necessária para garantir o básico: o direito das mulheres à vida, à liberdade e à dignidade.
Adotar a perspectiva de gênero, portanto, é romper com o mito da neutralidade e reconhecer que o Direito também está imerso em disputas simbólicas e institucionais que produzem exclusão. É assumir que o enfrentamento da violência contra a mulher exige mais do que penas e procedimentos. Não se trata de criminalizar mais, mas de compreender que o Direito Penal com perspectiva de gênero é uma resposta proporcional, protetiva e reparadora frente à omissão histórica do Estado.
A Lei Maria da Penha, nesses 19 anos, salvou vidas. Mas ainda temos muito a transformar. A luta continua — e é coletiva. A pergunta que fica é: de que lado do sistema nós estamos?
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