Em 5 de outubro de 1988, o Brasil promulgava a Constituição Federal que marcaria o renascimento da democracia após um longo período de autoritarismo. Batizada de “Constituição Cidadã” por Ulysses Guimarães, ela simbolizou a reconstrução da vida política, a valorização dos direitos humanos e a refundação das instituições republicanas. Trinta e sete anos depois, a Carta Magna continua sendo o esteio da ordem democrática e da convivência civilizada. Contudo, o tempo presente exige uma reflexão sobre o papel da advocacia — enquanto função essencial à administração da justiça — na preservação desse pacto constitucional, especialmente em tempos de crise institucional, desinformação e ameaças ao Estado de Direito.
A Constituição de 1988 nasceu de um movimento de abertura política e de intensa participação popular. O processo constituinte foi marcado pela pluralidade e pela presença de diversos segmentos da sociedade civil, que reivindicavam o reconhecimento de direitos e garantias historicamente negados. Bonavides (2019) afirma que a Carta de 1988 “restituiu à soberania popular o seu lugar de origem”, consolidando uma democracia que se pretende substantiva, voltada não apenas à organização do poder, mas à promoção da dignidade humana. Essa perspectiva confere à Constituição um caráter dirigente, como explica Canotilho (2003), no sentido de que ela não se limita a ser uma norma jurídica suprema, mas um projeto político de transformação social.
No texto constitucional, a advocacia foi reconhecida de modo inédito como função essencial à administração da justiça. O artigo 133 da CF/88 dispõe que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Trata-se de uma inovação de profundo significado democrático. Ao atribuir à advocacia esse status constitucional, o legislador reconheceu que não há justiça sem defesa, nem Estado de Direito sem a atuação livre, técnica e ética dos advogados e advogadas.
Essa prerrogativa não é um privilégio corporativo, mas uma garantia da cidadania. Como ensina Moraes (2022), o advogado “atua como defensor não apenas de interesses individuais, mas do próprio sistema jurídico-constitucional, funcionando como guardião da legalidade e mediador entre o cidadão e o Estado”. Assim, o exercício da advocacia se confunde com a própria efetividade dos direitos fundamentais, pois é por meio dela que o cidadão encontra voz e proteção diante do poder.
A Constituição de 1988 estabeleceu uma arquitetura institucional pautada na separação dos poderes, na independência judicial e na garantia de direitos. Todavia, a concretização desses valores depende, em grande medida, da advocacia. É o advogado quem provoca o Judiciário, quem formula a argumentação jurídica, quem assegura o contraditório e a ampla defesa, e quem sustenta a inviolabilidade da liberdade e da dignidade humana. O papel da advocacia, portanto, transcende a mera representação técnica: é um instrumento de concretização da democracia constitucional.
Ao longo dos 37 anos da Constituição, a advocacia brasileira esteve presente em momentos cruciais da defesa do Estado de Direito. Nas décadas que se seguiram à redemocratização, advogados e entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) desempenharam papel determinante em episódios como o impeachment de presidentes, o combate à corrupção, a defesa das prerrogativas profissionais e, sobretudo, na resistência a retrocessos institucionais. A OAB, inclusive, foi uma das entidades que mais contribuíram para o processo constituinte de 1987-1988, apresentando propostas que resultaram em garantias expressas no texto constitucional, como os direitos fundamentais, o habeas data e o controle da constitucionalidade das leis.
Em tempos de instabilidade política e ascensão de discursos antidemocráticos, o papel da advocacia se torna ainda mais relevante. A polarização social e o crescimento da desinformação têm colocado em risco princípios básicos do Estado de Direito, como o respeito ao devido processo legal e à presunção de inocência. Barroso (2022) observa que a Constituição de 1988 é “um pacto civilizatório, um compromisso coletivo de que o poder deve estar submetido ao direito e de que a dignidade humana é o centro do ordenamento”.
Nesse contexto, a advocacia é chamada a reafirmar sua função contramajoritária, atuando como barreira jurídica e moral contra o arbítrio, seja ele estatal, político ou midiático.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem reconhecido a importância da advocacia para a proteção da Constituição. Em diversos precedentes, o Tribunal destacou que a atuação do advogado é essencial à própria existência do contraditório e da ampla defesa. Na ADI 1.127/DF, o STF reafirmou que “as prerrogativas da advocacia não são privilégios pessoais, mas instrumentos indispensáveis à administração da justiça”. Essa visão reforça a ideia de que a advocacia é uma função pública com papel constitucional, e que qualquer tentativa de restringi-la atinge diretamente os fundamentos democráticos da República.
Entretanto, a advocacia também enfrenta desafios internos e éticos que comprometem sua credibilidade social. A mercantilização da profissão, a banalização de litígios e a atuação política desmedida de alguns profissionais geram distorções que fragilizam a imagem institucional da advocacia. Nesse ponto, é preciso resgatar o ideal republicano que inspirou o artigo 133: o advogado como servidor da justiça, comprometido com a verdade e com o bem comum. A ética profissional, a qualificação técnica e o compromisso com os direitos humanos são as bases para que a advocacia continue sendo uma força de equilíbrio e legitimidade dentro do sistema de justiça.
Com a expansão das tecnologias digitais, surgem também novas dimensões para a advocacia constitucional. A proteção de dados, o uso de inteligência artificial no Judiciário e o acesso à informação pública são temas que demandam atuação técnica e comprometida com os valores democráticos. O advogado contemporâneo deve ser um intérprete do direito e também um defensor da democracia digital. Como adverte Sarlet (2023), “a proteção dos direitos fundamentais na era digital depende de uma nova advocacia, capaz de compreender a interdependência entre liberdade, privacidade e cidadania”. Assim, a advocacia se reinventa como guardiã das garantias constitucionais em um mundo cada vez mais mediado pela tecnologia.
A atuação da OAB também merece destaque nesse contexto. Ao longo das últimas décadas, a entidade manteve-se como uma das vozes mais firmes em defesa da Constituição.
Durante crises institucionais, como as ocorridas entre 2016 e 2023, a Ordem reiterou sua missão histórica de defender a legalidade democrática e as instituições da República. Esse protagonismo remonta à própria fundação da OAB, cuja trajetória se confunde com a luta contra regimes autoritários e pela consolidação do Estado Democrático de Direito. Como afirma Streck (2022), “a advocacia é o primeiro bastião contra o autoritarismo, e a Constituição é o escudo que a protege”.
Aos 37 anos da Constituição Cidadã, é preciso reconhecer que sua sobrevivência e efetividade dependem da vigilância constante da sociedade e, em especial, da advocacia. A defesa da Constituição não se resume à atuação judicial; envolve a promoção da cultura constitucional, a educação jurídica, a participação em debates públicos e o compromisso com a verdade e a transparência. Cada advogado, ao exercer sua profissão com ética e coragem, torna-se um agente da democracia.
Os desafios que se impõem ao Brasil contemporâneo — desigualdade social, ataques às instituições, tentativas de manipulação do sistema de justiça e discursos de ódio — exigem da advocacia uma postura ativa e comprometida com o constitucionalismo democrático. Hesse (1991) lembra que a força normativa da Constituição só se realiza quando há vontade de cumpri-la. Essa vontade, no caso da advocacia, manifesta-se na atuação cotidiana em defesa dos direitos, no enfrentamento da injustiça e na preservação do devido processo legal, mesmo contra o clamor popular ou o poder político.
Celebrar os 37 anos da Constituição é, portanto, celebrar a resistência da democracia e o papel essencial da advocacia na sua manutenção. Sem advogados independentes, não há justiça; sem justiça, não há Constituição viva. O artigo 133 da CF/88, mais do que um dispositivo, é uma declaração de princípios: o advogado é indispensável à administração da justiça porque é dele que depende a concretização das liberdades e garantias individuais que sustentam o Estado de Direito. Como já afirmou o ministro Celso de Mello, “a advocacia é o instrumento de defesa da cidadania contra as opressões do poder e contra os excessos do Estado”.
Trinta e sete anos depois, o Brasil ainda enfrenta os desafios da consolidação democrática. A Constituição de 1988 segue como um farol de direitos, e a advocacia, como sua guardiã natural. É pela palavra do advogado, pelo argumento jurídico e pela coragem ética que a Constituição se renova a cada dia nos tribunais, nas praças e nas instituições. A defesa intransigente da Carta de 1988 é, em última instância, a defesa da própria liberdade.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo . 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional . 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição . 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição . Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional . 13. ed.
São Paulo: Atlas, 2022.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais . 17. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2023.
STRECK, Lenio Luiz. Verdades e Mentiras sobre a Constituição de 1988 . São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2022.
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