O sistema internacional contemporâneo repousa sobre dois pilares fundamentais do Direito Internacional Público: o princípio da autodeterminação dos povos e o princípio da nãointervenção. Estes preceitos, consagrados na Carta das Nações Unidas e reafirmados pela Declaração sobre os Princípios do Direito Internacional (Resolução 2625 da AGNU), constituem os alicerces normativos que garantem a coexistência pacífica entre Estados soberanos e a proteção da autonomia política das comunidades nacionais.
As recentes declarações do ex-presidente Donald J. Trump, sugerindo a imposição de tarifas punitivas de 50% sobre produtos brasileiros, e a resposta do Estado Brasileiro em defesa de sua soberania e integridade institucional, oferecem um caso paradigmático para examinar a aplicação destes princípios no século XXI. Mais reveladora ainda é a dissonância observada entre segmentos da população brasileira que se autodenominam “patriotas” e sua postura ambivalente diante de ameaças externas à soberania nacional.
O princípio da autodeterminação dos povos, reconhecido como jus cogens pelo Direito Internacional, estabelece que cada povo tem o direito inalienável de determinar livremente seu status político e de buscar seu desenvolvimento econômico, social e cultural sem interferência externa. Este princípio transcende a mera independência formal, abrangendo a capacidade de um povo de estruturar suas instituições, eleger seus representantes e definir seus rumos econômicos segundo sua própria vontade coletiva.
No contexto brasileiro, a autodeterminação manifesta-se através do sistema democrático representativo, em que suas instituições – incluindo o Poder Judiciário, cuja independência é garantida constitucionalmente – constituem a expressão da soberania popular. A ameaça de imposição de medidas econômicas coercitivas por parte de um Estado estrangeiro, visando influenciar o funcionamento dessas instituições, configura uma tentativa de violação direta do direito do povo brasileiro à autodeterminação.
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em suas análises sobre a erosão democrática, demonstram que a sustentabilidade dos regimes democráticos depende não apenas de marcos legais, mas do respeito às normas informais e à autonomia institucional. Pressões externas que visam alterar o funcionamento dessas instituições representam, portanto, uma ameaça à própria essência da autodeterminação democrática.
O princípio da não-intervenção, corolário da igualdade soberana dos Estados, proíbe qualquer forma de ingerência – direta ou indireta – nos assuntos que caem essencialmente dentro da jurisdição doméstica de outro Estado. Esta norma fundamental, codificada no artigo 2º(7) da Carta da ONU, abrange não apenas a intervenção militar, mas também a coerção econômica e a pressão política destinadas a influenciar as decisões internas de um Estado soberano.
A declaração de Trump, ao condicionar medidas econômicas ao funcionamento do sistema judiciário brasileiro, transcende os limites da legítima política comercial e adentra o território da intervenção indevida. Tal conduta, se concretizada, configuraria uma violação do princípio da não-intervenção, indo muito além do mero exercício ao direito à liberdade de expressão, pois utiliza instrumentos econômicos para pressionar (coerção) mudanças no ordenamento jurídico-institucional interno de outro Estado.
É crucial distinguir essa situação de atos que, embora politicamente controversos, permanecem dentro dos limites da liberdade de expressão e da condução diplomática, a exemplo da visita recentemente realizada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva à ex-presidente argentina Cristina Kirchner, por exemplo, pois embora manifeste discordância ideológica quanto à condenação, o Chefe de Estado brasileiro não proferiu ameaças ou anunciou medidas constritivas ao país vizinho..
A análise das reações domésticas às declarações de Trump, especialmente pelos apoiadores do ex-Presidente Jair Bolsonaro, revela uma contradição fundamental no discurso dos segmentos que se autodenominam “patriotas”. Tradicionalmente, o patriotismo genuíno pressupõe a defesa irrestrita da soberania nacional e a repulsa a qualquer forma de ingerência externa. Contudo, observa-se uma incongruência entre essa postura declarada e o apoio a figuras estrangeiras cujas ações podem comprometer a autodeterminação nacional.
Yuval Noah Harari, em suas reflexões sobre a construção de narrativas na era pósfatos, oferece elementos para compreender como a lealdade política pode se sobrepor à coerência principiológica. Neste contexto, surge a questão: pode ser considerado verdadeiramente patriótico apoiar líderes estrangeiros que ameaçam a soberania econômica e institucional do próprio país?
Analisando as patologias da sociedade contemporânea, Byung-Chul Han identifica na superficialidade informacional e na exaustão crítica fatores que comprometem a capacidade de reflexão sobre as implicações de longo prazo de certas adesões políticas. O “patriotismo” de alguns pode, assim, refletir mais uma identificação emocional com figuras transnacionais do que um compromisso genuíno com os princípios da autodeterminação e não-intervenção.
A ameaça de imposição de tarifas punitivas como meio de pressão política constitui uma forma de coerção econômica que viola o princípio da não-intervenção. A Corte Internacional de Justiça, em diversos precedentes, reconheceu que medidas econômicas podem constituir intervenção ilícita quando destinadas a pressionar mudanças na ordem jurídica interna de outro Estado.
A resposta do Estado Brasileiro, reafirmando a solidez de suas instituições democráticas, representa não apenas uma defesa econômica, mas uma reivindicação dos princípios fundamentais do Direito Internacional. Ao destacar a independência do Poder Judiciário e a intangibilidade do sistema democrático, o Brasil invoca sua prerrogativa soberana de organizar suas instituições segundo sua própria vontade, livre de pressões externas.
Em tempos de populismo amplificado pelas redes sociais, o episódio em análise transcende o mero embate bilateral, constituindo um teste para a efetividade dos princípios estruturantes do Direito Internacional. A forma como a comunidade internacional responde a tentativas de coerção econômica determinará se estes princípios mantêm sua força normativa ou se tornam meras declarações retóricas.
A defesa da autodeterminação dos povos e da não-intervenção não constitui apenas um imperativo jurídico, mas uma necessidade existencial para a preservação da ordem internacional baseada no respeito mútuo e na igualdade soberana. Estados que cedem a pressões externas sobre seu ordenamento jurídico interno não apenas comprometem sua própria soberania, mas enfraquecem todo o sistema internacional.
O verdadeiro patriotismo, conforme os ditames do Direito Internacional Público, exige a defesa intransigente dos princípios da autodeterminação dos povos e da não-intervenção. Aqueles que se reivindicam patriotas são compelidos a uma reflexão crítica sobre a coerência entre suas convicções declaradas e suas lealdades políticas.
A encruzilhada está claramente delineada: de um lado, a defesa dos princípios que garantem a autonomia nacional e a dignidade internacional do Estado; de outro, a adesão acrítica a figuras que, independentemente de suas qualidades ou defeitos, podem comprometer estes mesmos princípios quando suas ações transcendem os limites da não-intervenção.
A reação do Estado Brasileiro às declarações de Trump, reafirmando sua soberania e a intangibilidade de suas instituições, representa um exemplo paradigmático de como um Estado deve responder a tentativas de coerção externa. A verdadeira medida do patriotismo reside não na lealdade pessoal a líderes estrangeiros, mas na defesa inabalável dos princípios que garantem a autodeterminação do povo brasileiro e a preservação da ordem jurídica internacional.
As escolhas futuras dos cidadãos brasileiros, particularmente daqueles que se autodenominam patriotas, revelarão se o compromisso com a soberania nacional é genuíno ou se constitui mera conveniência retórica, subordinada a alianças ideológicas que podem comprometer os próprios fundamentos da autodeterminação dos povos e da não-intervenção no Direito das Gentes.
A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.
Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.