Há ditaduras que se impõem com tanques nas ruas, censura declarada e toques de recolher. Outras preferem um figurino mais moderno: funcionam sob o verniz da legalidade, sob aplausos institucionais e com o beneplácito de parte da sociedade civil. São autoritarismos de rosto limpo e fala mansa, onde a repressão não afasta a democracia, apenas a subverte. É a ditadura democrática.
Nessa versão sofisticada do arbítrio, o cotidiano segue normal: o comércio abre, os voos partem, os festivais acontecem, carnaval, São João, e reveillon. A máquina pública funciona, os serviços são prestados, os tribunais produzem decisões. Não há ruptura visível. A Constituição é citada com reverência, e as instituições ostentam normalidade, desde que você não reclame, não resista, não se oponha.
O maior triunfo de um regime de exceção não é o controle absoluto, mas a ilusão de normalidade. A maioria não sente o peso do autoritarismo porque não está entre os alvos. E, se não há tanques nas ruas nem censura explícita, então não pode ser uma ditadura, preferem pensar assim, pois assim, não há cobrança sobre a responsabilidade cidadã.
A história mostra que nem todo regime autoritário precisa interromper a vida civil. Durante o período militar no Brasil, grande parte da população seguiu sua rotina: trabalhava, estudava, casava, votava para vereador, deputado, senador e até prefeito, e as repartições públicas atendiam a população com servidores civis. Os serviços funcionavam, o Estado operava e muita gente não percebia a natureza do regime. O mesmo se repete, agora com novos códigos para quem não é opositor, a vida segue. É a ditadura democrática, onde o regime se traveste de legalidade e sustenta sua autoridade com aparência de normalidade.
Mas a sofisticação desse modelo está justamente aí: em manter o sistema em pleno funcionamento para alguns, enquanto outros são julgados sem contraditório, processados sem prova ou punidos sem direito. Quem se opõe é tratado como inimigo da ordem, sabotador da paz, extremista ou antidemocrático, e o mais comum: golpista.
O Estado substitui a garantia de direitos pela concessão de favores. Premia a lealdade, pune a crítica. E parcela da sociedade agradece: há quem prefira a segurança da omissão ao desconforto da lucidez. E há quem, beneficiado pelo arranjo, opte por chamar repressão de justiça, silêncio de paz e censura de responsabilidade social.
A autocensura tornou-se o mecanismo mais eficiente. Não é preciso proibir: basta incutir o medo. Medo de perder contratos, reputações, cargos ou espaço. O cidadão, mesmo o instruído, aprende a não ver, a não perguntar e, sobretudo, a não se opor.
Parte dessa engenharia autoritária depende da manipulação da informação. Uma imprensa militante, que renunciou ao papel de fiscal do poder para se converter em seu sustentáculo, ajuda a anestesiar o debate público. Em lugar de pluralidade, difunde versões; em vez de crítica, distribui narrativas. O resultado é uma cidadania emocionalmente mobilizada, mas politicamente desinformada, e incapaz de perceber a erosão silenciosa do Estado Democrático de Direito.
Do ponto de vista institucional, os processos tramitam, os autos correm, as partes se defendem e os recursos são interpostos. Mas esse fluxo processual, que parece prova de normalidade, é apenas a face ainda intacta de um sistema cuja seletividade compromete a própria ideia de justiça. Nas relações privadas, a jurisdição funciona. Nos temas sensíveis ao poder, a toga pode virar instrumento.
A ditadura democrática não precisa de unanimidade. Basta-lhe a apatia da maioria e a fidelidade dos favorecidos. Com isso, sustenta sua legitimidade sobre o conforto dos que não enfrentam o arbítrio e a exclusão dos que ousam fazê-lo. Persegue uns, recompensa outros, e assim segue a sociedade, dividida e desatenta, aplaudindo o teatro imaginando que o regime interpreta um épico, mas se trata de uma tragédia e de sua própria atuação.
Se você ainda não viu a ditadura, talvez seja porque ela não bateu à sua porta, ou você pode apenas estar entorpecido com a promessa de estabilidade, progresso e legalidade. Tudo, é claro, dentro dos ritos democráticos.
A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.
Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.