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As dissidências como verdades futuras e um Direito de família proativo

Postado em 23 de julho de 2025 Por Jones Figueirêdo Alves Desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC), membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Advogado, Consultor e Parecerista.

As dissidências desafiam o consenso dominante, podem representar as verdades futuras e mais das vezes moldam o curso da história nos seus impactos duradouros.

A dissidência de Galileu Galilei foi uma oposição científica e filosófica ao geocentrismo – a visão de que a Terra era o centro do universo. Ele defendia o modelo heliocêntrico de Nicolau Copérnico, que propunha que o Sol estava no centro do sistema solar, e não a Terra. Essa posição o colocou em conflito com a Igreja Católica, que na época apoiava a visão geocêntrica de Ptolomeu como compatível com as escrituras bíblicas (Josué 10:12-13). Julgado e condenado pela Inquisição em 1633, somente em 1992, o Papa João Paulo II, declarou oficialmente que a Igreja havia errado ao condená-lo.

Neste atual momento de pós-verdades, idiossincrasias políticas e discursos radicais, certo é que dissentir pode significar a busca da verdade real, no rumo mais correto da história.

Assinala-se o legado do juiz Oliver Wendell Holmes Jr., da Suprema Corte norte-americana. Conhecido como “O Grande Dissidente“, suas opiniões nem sempre prevaleciam; muitas delas, porém, se tornaram fundamentais, adiante, especialmente em temas como os da liberdade de expressão e federalismo. Influenciou o pensamento jurídico, com seus notáveis votos, sob a sua premissa memorável de que a “a vida do direito não tem sido lógica; tem sido experiência.”

As grandes dissidências políticas deram certo. Aquelas em que figuras ou movimentos desafiaram o consenso dominante de sua época e, com o tempo, suas ideias se tornaram amplamente aceitas ou implementadas, moldando o curso da história. Esses “dissidentes políticos” enfrentaram resistência ou perseguição quando defenderam suas ideias, mas seus esforços influenciaram transformações duradouras na sociedade, política e economia.

Os Pais Fundadores dos Estados Unidos, como Thomas Jefferson, Benjamin Franklin e John Adams, desafiaram o domínio colonial britânico, especialmente em relação à tributação sem representação e à falta de autonomia política. A dissidência levou à Guerra da Independência Americana e ao surgimento dos Estados Unidos como uma nação independente, baseada em princípios de liberdade individual e democracia representativa. A assinatura da Declaração de Independência em 1776 foi um ato de dissidência contra o Rei George III e o Império Britânico.

A dissidência teve seu Impacto duradouro: a independência dos EUA inspirou movimentos de libertação estabelecendo novos padrões para governos republicanos e direitos humanos.

A seu turno, a Abolição da Escravidão serve de um dos paradigmas de dissidência. Nos EUA, Frederick Douglass, Harriet Tubman, William Lloyd Garrison e outros se posicionaram contra a escravidão ao tempo que a prática era amplamente aceita, especialmente nos estados do Sul. Na Grã-Bretanha, William Wilberforce liderou o movimento abolicionista no Parlamento Britânico.

Esses dissidentes enfrentaram forte resistência política, social e econômica, mas continuaram pressionando por reformas. Nos EUA, a escravidão foi abolida após a Guerra Civil Americana, com a aprovação da 13ª Emenda em 1865. Na Grã-Bretanha, o comércio de escravos foi abolido em 1807 e a escravidão foi completamente proibida no Império Britânico em 1833.

Seu Impacto duradouro: a abolição da escravidão marcou uma vitória para os direitos humanos, lançando as bases para as futuras lutas pelos direitos civis e pela igualdade racial.

Assim ocorreu com o movimento sufragista, onde dissidentes Susan B. Anthony, Elizabeth Cady Stanton (EUA), Emmeline Pankhurst (Reino Unido) que lutaram pelo direito de voto feminino. As sufragistas enfrentaram décadas de resistência, prisão e desprezo social ao lutar contra as estruturas políticas e culturais que negavam às mulheres o direito ao voto. Nos EUA, as mulheres conquistaram o direito ao voto com a ratificação da 19ª Emenda em 1920. No Reino Unido, o direito ao voto feminino começou a ser garantido em 1918 e ampliado em 1928.

Seu impacto duradouro: o movimento sufragista abriu caminho para o avanço dos direitos das mulheres em várias áreas, incluindo educação, trabalho e política.

7. Mahatma Gandhi e a Independência da Índia configuram capítulo de valia histórica das dissidências. Gandhi, líder do movimento de independência indiano, desafiou o Império Britânico usando táticas de não violência e desobediência civil, como a famosa Marcha do Sal (1930), que protestou contra o monopólio britânico sobre o sal. A independência da Índia foi alcançada em 1947, após décadas de luta política e social.

Seu impacto duradouro: Gandhi inspirou movimentos de libertação em outros países e líderes como Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela.

Segue-se o Movimento pelos Direitos Civis nos EUA (Década de 1950-1960), figurando como dissidentes Martin Luther King Jr., Rosa Parks, Malcolm X, John Lewis e muitos outros líderes e ativistas que lutaram contra a segregação racial e a discriminação nos EUA. Desafiando as leis segregacionistas do Sul (as chamadas Leis Jim Crow), esses dissidentes organizaram protestos pacíficos, como a Marcha sobre Washington em 1963. A aprovação do Civil Rights Act, de 1964 e do Voting Rights Act, de 1965, acabaram com a segregação legal e garantiram direitos de voto para os afro-americanos.

Seu impacto duradouro: O movimento pelos direitos civis redefiniu a democracia americana e inspirou movimentos de justiça social em todo o mundo.

09. Nelson Mandela e a luta contra o apartheid na África do Sul representam significantes dissidências históricas. Mandela, líder do Congresso Nacional Africano (ANC) desafiou o regime de segregação racial do apartheid. Ele e outros ativistas enfrentaram décadas de prisão, censura e repressão por se oporem ao regime segregacionista que privava a maioria negra da África do Sul de direitos políticos e sociais. Sob crescente pressão interna e internacional, o apartheid foi rompido nos anos 1990, levando à eleição de Nelson Mandela como o primeiro presidente negro da África do Sul em 1994.

Seu Impacto duradouro: A África do Sul tornou-se uma democracia multirracial, e Mandela se tornou um símbolo mundial de reconciliação e justiça.

Cumpre, ainda, exemplificar:

(i)  A dissidência de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht (1914), socialistas alemães que se opuseram à entrada da Alemanha na 1ª Guerra Mundial e ao militarismo. Embora tenham enfrentado perseguição e morte, lançaram as bases para a formação de movimentos anti-imperialistas.

Seu impacto duradouro: as ideias influenciaram gerações de pensadores como críticos fundamentais ao autoritarismo.

(ii) a dissidência de Vaclav Havel e a Revolução de Veludo (1989). Havel, escritor e ativista político da Tchecoslováquia, durante o domínio comunista, liderou movimentos de dissidência, como a Carta 77, que criticava o governo por violações dos direitos humanos. A Revolução de 1989 levou à queda do regime comunista, e Havel tornou-se o primeiro presidente democraticamente eleito da Tchecoslováquia pós-comunista.

Seu impacto duradouro: Havel é lembrado como um dos grandes líderes que ajudaram a encerrar a Guerra Fria e a promover transições pacíficas para a democracia na Europa Oriental.

Conclui-se, nessa primeira parte, que as dissidências que deram certo mostram que as ideias que pareçam radicais podem, com o tempo, se tornar o núcleo de transformações culturais, políticas e sociais profundas. O desafio ao “status quo” impõe mais que ideias, oferecem importantes mudanças em seus impactos.

Em sua seara, o Direito de Família tem evoluído bastante e grande parte desse avanço se deve às dissidências doutrinárias de juristas que questionam e reformulam seus conceitos tradicionais.

Entre tantos juristas notáveis, vale referir Flávio Tartuce, Luiz Edson Fachin, Paulo Luiz Netto Lobo, Rodrigo da Cunha Pereira, Maria Berenice Dias, José Fernando Simão, Mário Luiz Delgado, Silvio Neves Baptista, Giselda Hironaka, Giselle Groeninga, Luciana Brasileiro, Maria Rita Holanda, Lourival Serejo, Rodrigo Toscano e Rolf Madaleno.

De saída, registra-se a profunda mudança do conceito tradicional de família. Ampliado para incluir uniões estáveis, famílias monoparentais, famílias anaparentais (sem pais), mosaicos (reconstituídas, após separações) e mesmo famílias simultâneas.

A doutrina questionou a rigidez do modelo tradicional e influenciou decisões do STF e STJ, em reconhecendo-se essa diversidade.

Em até 2011, casais homoafetivos não tinham reconhecimento jurídico como entidade familiar. Dissidências doutrinárias foram fundamentais para ser admitida a união homoafetiva como entidade familiar (STF, ADPF 132 e ADI 4277). Em 2013, o CNJ determinou que cartórios não poderiam recusar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.

Anota-se quanto aos direitos de gênero e de nomeação de pessoas trans, que o reconhecimento da identidade de gênero foi impulsionado por dissidências doutrinárias, culminando na decisão do STF na ADI 4275/2018. Figurou como “amicus curiae” o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.

Assim também sucedeu com a despatrimonialização do Direito de Família. A família era então vista como entidade baseada em laços patrimoniais. Juristas dissidentes, como os acima citados, fortaleceram o entendimento de a afetividade ser-lhe um pilar jurídico relevante. Essa visão impactou temas como os da adoção, multiparentalidade e reconhecimento de filiação socioafetiva.

A guarda compartilhada e o poder familiar, exsurgente como autoridade parental, nos seus modelos jurídicos, constituem outros exemplos de mudanças significativas. O modelo tradicional de guarda favorecia a guarda unilateral, normalmente atribuída à mãe após a separação.

Doutrinadores críticos influenciaram mudanças legislativas, como a Lei 13.058/2014, que definiu a guarda compartilhada como regra. A lei alterou os artigos 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 Código Civil, para estabelecer o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre sua aplicação.

Inegável que o direito de família tem apresentado avanços significativos, especialmente a partir da Constituição Federal de 1988, que introduziu princípios fundamentais como a igualdade entre os cônjuges e entre os filhos, e a proteção à pluralidade das entidades familiares. Esses avanços têm sido impulsionados pelas contribuições das dissidências doutrinárias, que desafiam interpretações tradicionais, promovendo a adaptação do ordenamento jurídico às novas realidades sociais. Exemplo dessa postura é a revogação do crime de adultério, “uma raridade legal que só se mantinha por uma tradição legislativa”.

As dissidências têm atuado para a superação de dogmas e a adaptação do sistema jurídico às transformações sociais e culturais. Reconhecendo novas formas de organização familiar e a proteção dos direitos de todos os seus membros, em consonância com os princípios constitucionais.

A jurisprudência serve de referência a demonstrar um direito de família proativo, em latitudes desses avanços, a exemplo da contribuição do civilista Lourival Serejo, na vanguarda das diretivas. Bastante citar:

“DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM. CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL SIMULTÂNEOS. RECONHECIMENTO. POSSIBILIDADE. PROVIMENTO.

1. Ainda que de forma incipiente, doutrina e jurisprudência vêm reconhecendo a juridicidade das chamadas famílias paralelas, como aquelas que se formam concomitantemente ao casamento ou à união estável.

2. A força dos fatos surge como situações novas que reclamam acolhida jurídica para não ficarem no limbo da exclusão. Dentre esses casos, estão exatamente as famílias paralelas, que vicejam ao lado das famílias matrimonializadas.

3. Para a familiarista Giselda Hironaka, a família paralela não é uma família inventada, nem é família imoral, amoral ou aética, nem ilícita. E continua, com esta lição: Na verdade, são famílias estigmatizadas, socialmente falando. O segundo núcleo ainda hoje é concebido como estritamente adulterino, e, por isso, de certa forma perigoso, moralmente reprovável e até maligno. A concepção é generalizada e cada caso não é considerado por si só, com suas peculiaridades próprias. É como se todas as situações de simultaneidade fossem iguais, malignas e inseridas num único e exclusivo contexto. O triângulo amoroso sub-reptício, demolidor do relacionamento número um, sólido e perfeito, é o quadro que sempre está à frente do pensamento geral, quando se refere a famílias paralelas. O preconceito – ainda que amenizado nos dias atuais, sem dúvida – ainda existe na roda social, o que também dificulta o seu reconhecimento na roda judicial.

(…) 5. Apelação cível provida.

(TJ-MA – 3ª Câmara Cível, Apel. Cível n. 0190482013 MA 0000728-90.2007.8.10.0115, Relator.: Lourival de Jesus Serejo Souza, julgado em 29/05/2014, publicado em 15/07/2014)

Em outro giro, retenha-se questão suscetível de posições divergentes, quanto à necessidade ou não da autorização do companheiro(a) para efeito de alienação de bens imóveis adquiridos na constância da união estável, quando apenas registrado em nome de um deles.

Flávio Tartuce assinala que “a outorga só pode ser exigida por expressa previsão legal, o que não se verifica no tocante à união estável” (Direito Civil, v. 5: Direito de Família, p. 306).

O STJ assentou, em caso concreto, que “a invalidação da alienação de imóvel comum, realizada sem o consentimento do companheiro, dependerá da publicidade conferida a união estável mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência união estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, ou pela demonstração de má-fé do adquirente” (RESp. n. 24.275 – MT (2012/0075377-7), Rel. Min. Paulo de tarso Sanseverino, j. em 04.12.2014).

De outro turno, “não se pode olvidar, que existe precedente mais antigo em sentido diverso, indicando ser exigível a autorização convivencial também para a hipótese de união estável (REsp 755.830/SP, 2ª Turma, DJ 01/12/2006).

A dissidência doutrinária é reconhecida em julgados, valendo por todos:

“(…)1. É desnecessária a autorização do companheiro (a) para efeito de alienação de bens imóveis adquiridos na constância da união estável, posto que, de acordo com o regramento, dita situação não se equipara ao regime da comunhão parcial de bens consoante aquela previsão contida no art. 1.725 do CC/02. 2. Na dissidência doutrinária acerca da formalidade cotejada, cumpre considerar que a outorga uxória não repercute no ambiente social familiar, mas apenas manifesta caráter estritamente patrimonial para dirimir eventuais conflitos entre os conviventes. 3. Recurso desprovido.

(TJ-DF – 8ª Turma Cível – 07041306320188070010 DF 0704130-63.2018 .8.07.0010, Relator: Mário-Zam Belmiro, j. em 11/09/2019, DJE: 16/09/2019). (g.n.)

Seu impacto duradouro: a modernização continuada do Direito de Família, em doutrina avançada e por processos justos, que reflitam a verdade real (e não ficta) dos fatos.

De efeito, há dizer que as dissidências, provocam, mais das vezes e por essencial, mudanças fundamentais na história e no direito.

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