“Navegar é preciso; viver não é preciso.” (Fernando Pessoa, em verso tantas vezes atribuído à alma portuguesa — e à lógica tributária, talvez…)
A noção de que o crédito tributário seria absolutamente indisponível consolidou-se no imaginário jurídico brasileiro como uma verdade quase dogmática, sustentada por décadas de um discurso fiscalista que se escorou na ideia de supremacia do interesse público arrecadatório. Segundo essa perspectiva, o poder-dever do Estado de tributar seria indeclinável, e a própria noção de indisponibilidade estaria atrelada à ideia de legalidade estrita e da intangibilidade da receita pública. Sob tal ótica, admitir qualquer forma de renúncia, negociação ou flexibilização do crédito tributário significaria não apenas abdicar de recursos essenciais ao funcionamento do Estado, mas também violar os princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade.
Esse entendimento, embora ainda reverberante nos discursos administrativos e em algumas decisões judiciais, já não encontra plena correspondência no ordenamento jurídico pátrio, tampouco na lógica contemporânea da administração fiscal. Em tempos marcados por profundas transformações sociais, crises econômicas recorrentes, sobrecarga do Judiciário e exigência por soluções mais eficazes e colaborativas, torna-se urgente revisitar criticamente esse dogma, que muitas vezes se converte em obstáculo à efetividade, à racionalidade e à própria justiça fiscal.
O Código Tributário Nacional, desde sua promulgação pela Lei nº 5.172/1966, já dispunha de mecanismos que contradizem frontalmente a tese da indisponibilidade absoluta. O art. 151 prevê hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, entre as quais se destacam a moratória (inciso I), o depósito do montante integral (inciso II), a concessão de medida liminar em mandado de segurança (inciso IV), e o parcelamento (inciso VI), todas modalidades que, ainda que por razões distintas,
implicam afastamento temporário da exigibilidade. Já o art. 156, ao elencar as hipóteses de extinção do crédito, inclui figuras como o pagamento (inciso I), a compensação (inciso II), a transação (inciso III) e a remissão (inciso IV), todas elas formas legítimas de pôr fim à relação tributária, com ou sem satisfação integral do valor originariamente lançado. O art. 171, por sua vez, expressamente autoriza a transação tributária, condicionando sua celebração ao cumprimento dos requisitos legais e à existência de concessões recíprocas entre as partes envolvidas.
Portanto, mesmo na estrutura do CTN — elaborado em contexto histórico de menor flexibilização fiscal — já se antevia que a indisponibilidade não poderia ser lida como absoluto normativo. O que o Código consagra é uma noção de legalidade instrumental: as hipóteses de modificação, suspensão ou extinção do crédito devem estar previstas em lei, mas não são proibidas per se. O erro, muitas vezes deliberado, reside na interpretação rígida da legalidade como sinônimo de intransigência administrativa, ignorando que a própria norma legal traça margens para o exercício ponderado da autoridade fiscal.
A Constituição Federal também oferece fundamentos para uma compreensão mais contemporânea e responsiva da administração tributária. Ao consagrar no art. 37 o princípio da eficiência como vetor da atuação do Poder Público, o texto constitucional impõe à Administração o dever de buscar soluções que, além de legais, sejam eficazes e racionais. A perpetuação de execuções fiscais fadadas ao insucesso, a insistência em litigância inútil ou a negativa infundada de negociações sob o pretexto da indisponibilidade são práticas que colidem com o dever de eficiência, além de comprometerem a economicidade, a razoabilidade e a proporcionalidade da atuação estatal.
Essa reinterpretação do papel da Fazenda Pública no contencioso tributário dialoga com o que a literatura especializada denomina modelo fiscal responsivo. Em especial, destacase a obra de John Braithwaite e Valerie Braithwaite, que propõem uma abordagem regulatória pautada na responsividade, ou seja, na calibragem da resposta estatal em função da conduta do contribuinte. Essa racionalidade exige que o Estado diferencie, em sua atuação, o devedor ocasional do sonegador contumaz, o contribuinte colaborativo daquele que atua com dolo ou fraude. Ignorar tais distinções, tratando desiguais como se fossem iguais, além de injusto, compromete a eficácia do sistema, pois afugenta a conformidade voluntária e reforça comportamentos defensivos.
A institucionalização da transação tributária, por meio da Lei nº 13.988/2020, representa um marco normativo relevante nesse sentido. A norma conferiu à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional instrumentos para celebrar acordos com contribuintes, tendo como critérios a capacidade de pagamento, a classificação do crédito quanto à recuperabilidade e a existência de concessões recíprocas. Em seu art. 3º, a lei estabelece que a transação será celebrada sempre que representar, de forma objetiva, maior expectativa de êxito na cobrança, seja pelo valor recuperado, pela diminuição do passivo, ou pela redução do custo operacional. A normatização posterior pela PGFN (como as Portarias nº 9.917/2020 e nº 6.757/2022) disciplinou modalidades de transação por adesão, individual e por proposta da Fazenda, conferindo transparência e segurança jurídica à prática.
Na esteira dessa legislação, verifica-se que o Estado brasileiro já admite, de forma expressa, a negociação de créditos tributários em diversas circunstâncias, inclusive com concessão de descontos, prazos diferenciados e critérios de seletividade. A atuação da PGFN passou a incorporar a lógica do custo-benefício, levando em consideração elementos como a situação econômica do contribuinte, o histórico de cumprimento de obrigações e o valor atualizado da dívida. Trata-se de uma ruptura com o modelo tradicional de cobrança inflexível, na medida em que valoriza a racionalidade econômica e a efetividade da recuperação.
Ainda assim, parcela significativa da doutrina e da burocracia fiscal insiste em sustentar a indisponibilidade como princípio absoluto, com base em uma leitura rígida do interesse público. Esse discurso, porém, mostra-se cada vez mais descolado da prática normativa e da realidade socioeconômica. O que se observa, em verdade, é que a indisponibilidade absoluta tem servido, muitas vezes, como um instrumento de poder — um mecanismo de blindagem da autoridade administrativa contra o controle jurisdicional e contra a abertura ao diálogo com o contribuinte.
Esse uso ideológico da indisponibilidade revela-se com especial nitidez em situações como: a recusa, sem justificativa plausível, à celebração de acordos com contribuintes em evidente estado de crise financeira; a insistência em manter ativos execuções fiscais de valores irrisórios, cujo custo de tramitação supera em múltiplas vezes o montante cobrado; e a manutenção de litígios prolongados que, embora formalmente legais, revelam-se materialmente inócuos. Como bem advertiu João Cabral de Melo Neto, “com faca só se corta o pão se a mão souber dirigir”. A legalidade, quando desprovida de discernimento, pode ferir exatamente o interesse público que pretende proteger.
A jurisprudência dos tribunais superiores, embora nem sempre uniforme, também vem reconhecendo que a indisponibilidade não é incompatível com a legalidade. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, tem admitido a remissão e a transação como formas válidas de extinção do crédito tributário, desde que previstas em lei. Ademais, reconhece a legitimidade da atuação da Fazenda Pública com base em critérios de conveniência e oportunidade, desde que não violados os princípios da legalidade e da moralidade administrativa.
O importante, nesse debate, é compreender que a disponibilidade do crédito tributário não implica arbítrio. Trata-se de uma disponibilidade regrada, subordinada à legislação e aos princípios constitucionais. A concessão de remissão, anistia ou transação deve observar critérios objetivos, transparência, controle institucional e finalidade pública. Mas não se pode confundir essa legalidade regulada com um dever absoluto de cobrança a qualquer custo.
A rigidez excessiva, além de ineficaz, compromete a função pedagógica e incentivadora do sistema tributário. Um Estado que pune indistintamente, que cobra com igual rigor o inadimplente eventual e o devedor contumaz, mina os incentivos à conformidade e contribui para o descrédito do próprio sistema. Por outro lado, um modelo responsivo, que reconhece a pluralidade de situações e oferece alternativas de regularização, fortalece o vínculo de confiança entre Fisco e contribuinte e promove, em última instância, maior justiça fiscal.
O desafio contemporâneo da tributação, portanto, não reside apenas na arrecadação de receitas, mas na construção de um sistema capaz de induzir comportamentos cooperativos, de preservar a atividade produtiva e de assegurar o cumprimento espontâneo das obrigações. Isso exige mais do que legalidade formal: exige inteligência institucional, sensibilidade social e compromisso com os valores constitucionais.
Entre a rigidez intransigente e a permissividade irresponsável, há um caminho possível — e necessário — de equilíbrio. Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, “no meio do caminho tinha uma pedra”. Que a indisponibilidade seja, cada vez mais, apenas isso: uma pedra no caminho — a ser superada com inteligência, humanidade e legalidade.
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