Poucos civilistas lograram imprimir no direito privado brasileiro uma marca tão perene quanto Paulo Luiz Netto Lôbo. Com sua escrita refinada e visão sistemática, consolidou uma leitura do Código Civil à luz da Constituição da República, operando o que a doutrina consagrou como direito civil-constitucional. De sua orientação derivou uma verdadeira escola, da qual fazem parte civilistas do calibre de Maria Rita de Holanda, Marcos Ehrhardt Júnior, Catarina Oliveira e Fabíola Lôbo, entre tantos outros que, a seu modo, expandiram a tradição “lôbiana”.
Notoriamente conhecido pela defesa da força normativa dos princípios gerais do
direito, Paulo Lôbo sempre sustentou que seu caráter hermenêutico e irradiador contrasta com a insistência contemporânea do legislador em multiplicar positivações supostamente inovadoras.
O autor da célebre coleção Direito Civil em seis volumes – da parte geral ao direito
das sucessões – acrescenta agora mais um marco à sua trajetória intelectual com o lançamento de Direito Civil em princípios. Nesta obra, promove verdadeira mudança de paradigma, ao afastar a distinção ontológica entre regras e princípios. Em suas palavras, “princípio jurídico é norma jurídica, com a mesma natureza estrutural das demais normas jurídicas (‘regras’). As suas estruturas e funções, a nosso juízo, são iguais”. A tradicional ideia de que a regra é concreta e o princípio, ambíguo, cede lugar, para Lôbo, à concepção de que a ambiguidade é inerente (também) às normas concretas. Tome-se como exemplo a diuturna discussão do Superior Tribunal de Justiça acerca da definição do índice de juros que incide sobre as dívidas civis: ora àquele presente no Código Tributário Nacional, ora a taxa Selic[1].
É precisamente aqui que emerge o caráter de panaceia atribuído à reforma. Paradoxalmente, tanto os defensores quanto os críticos do projeto alimentam esse discurso inflacionário. De um lado, apresenta-se a inclusão da função social e da boa-fé como solução universal para todos os vícios negociais; de outro, reagem-lhe críticas exacerbadas, como se a proposta representasse um perigoso alargamento da dogmática da nulidade[2]. O que se esquece – em ambos os polos – é que o sistema já contém a regra essencial: o art. 2035, parágrafo único, que desde 2002 invalida convenções contrárias à função social e à Constituição.
A insistência em repetir o já consagrado não é inócua: ao disfarçar de inovação aquilo que se encontra em vigor desde 2002, cria-se a aparência de que a principiologia somente teria eficácia quando institucionalizada enquanto regra. Esse formato de técnica normativa não apenas reduz a autonomia hermenêutica da Constituição da República no diálogo com o Código Civil, como também rebaixa a força normativa dos princípios ao plano da retórica legislativa, esvaziando a organicidade do sistema.
Assim, a verdadeira ilusão não está apenas no texto do projeto, mas também nas
reações que provoca. A retórica da panaceia opera nos dois sentidos: ora como promessa de inovação redentora, ora como ameaça de ruptura indesejável. Em qualquer caso, ignora-se que a tarefa já foi cumprida pelo legislador de 2002 e que a missão atual não é legislativa, mas hermenêutica – interpretar coerentemente a principiologia já incorporada ao sistema.
Diante desse quadro, o presente ensaio pretende problematizar a retórica da
novidade. Sustenta-se que a reforma pouco acrescenta à lógica já instituída e corre o risco de banalizar a principiologia ao transformá-la em cláusula reiterada de validade. Por fim, busca-se reconhecer que o direito civil não precisa de hipertrofia textual, mas de coerência hermenêutica, para que os princípios cumpram, em sua inteireza, o papel de dar unidade e racionalidade ao sistema privado.
A Comissão de Juristas encarregada de apresentar proposta de atualização ao Código Civil brasileiro, sugeriu a inserção expressa da função social como elemento de validade dos negócios jurídicos. Em outras palavras, a novidade legislativa consistiria em acrescer ao rol do art. 166 – que já contempla hipóteses clássicas de nulidade – a violação a princípios, elevando-os à categoria de requisitos formais da validade negocial, em consonância com o proposto art. 422-A, que trata da boa-fé como elemento de validade.
O discurso que acompanha a proposta parte da premissa de que o Código Civil, em
sua atual redação, teria relegado à função social um papel de diretriz interpretativa, incapaz de projetar efeitos sobre a própria existência e validade dos negócios. A reforma, por se tratar de mudança radical à primeira vista, não escapou de críticas de abalizada doutrina:
O projeto de reforma do Código Civil parece ignorar as duas décadas de controvérsias que, à custa da segurança e da efetividade jurídicas, levaram a função social do contrato a um papel secundário, com nichos de aplicação mais definidos e uma utilidade reduzida, porém mais clara. A maior evidência disso é a previsão de que a violação da função social acarreta a invalidade do contrato e de suas cláusulas (art. 421, § 2º do Projeto). […] Ao introduzir essa mudança, o Projeto corre o risco de reativar o embate ideológico que, em grande parte, esvaziou a função social do contrato como ferramenta prática no Direito Contratual brasileiro. Além disso, insiste em trilhar um caminho inexplorado por outras nações de tradição romano-germânica, repetindo o equívoco do legislador de 2002, que gerou mais polêmica do que soluções concretas para as relações contratuais no Brasil.[3]
No entanto, ao propor repetir no plano da validade o que já está normativamente assegurado, não se ofereceu uma solução nova: o texto apenas desloca para o “palco principal” uma regra que, embora nos bastidores topográficos do Código, já cumpria seu papel. O resultado é paradoxal. Ao invés de fortalecer a principiologia, corre-se o risco de banalizá-la. É precisamente aqui que surge a metáfora da panaceia. A retórica legislativa apresenta a proposta como solução universal, apta a curar todas as patologias negociais; e as críticas que lhe são dirigidas, ao tratarem-na como ameaça inédita de alargamento da nulidade, reforçam o discurso da novidade.
Em ambos os casos, esquece-se que o sistema já dispõe do instrumento necessário: o
art. 2035, parágrafo único. Assim, a verdadeira questão não é legislativa, mas hermenêutica.
A função social, desde o advento do Código Civil de 2002, consolidou-se como
cláusula estrutural do sistema privado. A par de previsões pontuais – como no art. 421, que delimita a liberdade contratual, e no art. 1.228, § 1º, que condiciona o exercício do direito de propriedade ao atendimento de sua função –, a codificação brasileira alçou a função social ao patamar de verdadeiro limite imanente à autonomia privada. Não se trata de limitação externa, mas de requisito interno de validade e eficácia do exercício dos direitos.
É nesse horizonte que se deve ler o art. 2035. Embora o caput tenha função nitidamente intertemporal, disciplinando a subsistência dos negócios celebrados antes da entrada em vigor do Código, o parágrafo único extrapola a moldura transitória e se projeta como norma autônoma de ordem pública. Ao prescrever que “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”, o legislador fixou cláusula permanente de integração principiológica, que limita a autonomia negocial em consonância com a Constituição da República.
Embora alocado topograficamente nas disposições finais e transitórias, o parágrafo
único não é transitório. Sua natureza é estrutural: funciona como verdadeira ponte entre a principiologia constitucional e o regime das nulidades previsto no art. 166. Se este último apresenta hipóteses tipificadas de invalidade, o art. 2035, parágrafo único, fornece a base principiológica para o reconhecimento de nulidades em casos de afronta à função social. A topografia, portanto, não deve induzir a erro hermenêutico: o dispositivo é norma permanente, cogente e autônoma.
Diante disso, percebe-se a inconsistência do discurso reformista. Ao pretender incluir
expressamente a função social como requisito de validade dos negócios jurídicos, o projeto não inaugura um novo regime; apenas repete, em outro espaço, regra que já está consolidada desde 2002. O problema não é apenas de redundância, mas de método: ao insistir na reiteração legislativa, cria-se a aparência de que a principiologia somente adquire força quando positivada de modo explícito e reiterado, esvaziando a organicidade do sistema.
O risco, em última análise, é o da banalização. Transformar a função social em mera fórmula de validade, reiterada exaustivamente, compromete a densidade de sua aplicação concreta, convertendo-a em recurso retórico disponível para todo tipo de litígio. A “panaceia” de odes ao projeto (bem como de suas críticas) oculta o que é essencial: o sistema já dispõe de instrumentos suficientes para conter abusos da autonomia privada. A verdadeira tarefa não é legislativa, mas hermenêutica, exigindo que se compreenda a força normativa do art. 2035, parágrafo único, em diálogo sistemático com o art. 166 e com a Constituição da República. O que se demanda não é a multiplicação de cláusulas, mas a interpretação sistemática que preserve a coerência do direito civil-constitucional.
A análise empreendida ao longo deste ensaio permite afirmar, com segurança, que a
proposta de reforma do Código Civil não introduz inovação substancial. A inclusão da função social no plano da validade não inaugura um novo regime dogmático; limita-se a um deslocamento topográfico da regra já consolidada no art. 2035, parágrafo único, do Código vigente. Tal deslocamento, embora formalmente perceptível, não altera a eficácia, a hierarquia normativa ou a interpretação judicial dos princípios envolvidos, limitando-se a criar a impressão de um avanço legislativo quando, na realidade, apenas se reiteram comandos já operantes.
A lição de Paulo Lôbo revela-se ainda mais atual nesse contexto. Ao sustentar que os princípios não dependem de onipresença textual para produzir efeitos, mas que sua força decorre da coerência sistêmica e da orientação constitucional, evidencia-se que a dogmática civil não deve submeter-se à hipertrofia normativa. A principiologia não se robustece pela repetição exaustiva de dispositivos, mas pela interpretação hermenêutica capaz de irradiar coerência em diálogo permanente com o sistema normativo existente. A função social, mesmo reiterada, já se encontrava operativa, conferindo orientação prática às relações jurídicas sem necessidade de reforço legislativo.
A verdadeira homenagem a Paulo Lôbo, portanto, não consiste em enaltecer o
legislador por uma inovação inexistente, mas em preservar a advertência central do autor: o direito civil se renova não pela multiplicação de comandos legais, mas pela interpretação constitucionalmente orientada, capaz de conferir unidade, racionalidade e segurança ao sistema. Reconhecer essa distinção é preservar a força dos princípios e a coerência do direito civil, reafirmando que a inovação dogmática se constrói no plano interpretativo, e não na repetição legislativa.
LÔBO, Paulo. Direito Civil em princípios. Belo Horizonte: Fórum, 2025.
[1] Confira-se o novo capítulo do imbróglio em:
[2] Tivemos a oportunidade de fazer tal ponderação outrora, para tanto, permita-nos remeter a FLUMIGNAN, Silvano José Gomes; BRASIL, Yan Lucas Ramos. Boa-fé e nulidade no projeto de reforma do Código Civil. Consultor Jurídico. Disponível em: , acesso em 31 ago. 2025.
[3] ARAÚJO, Paulo Doron R. de et al. Obrigações e Contratos. In: MARTINS COSTA, Judith; MELO, Diogo
Leonardo Machado de; ARAUJO, Paulo Doron R. de (coord.). Análise Preliminar do Anteprojeto de Reforma do Código Civil. Revista do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo. Vol. 38.1, Ano 27, São Paulo, jul. 2024, pp. 37-44.
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